O uso dos prazeres (I): Michel Foucault

31 março, 2010




Jeune Fille se Defendant Contre L'amour (1880).
Pintura de  William-Adolphe Bouguereau (1825-1905).


Entre a publicação de A vontade de saber (1976) e O uso dos prazeres (1982), decorreram-se longos seis anos, devido à viragem na pesquisa foucaultiana; precisamente, o momento em que Foucault descobre o biopoder e vê, nos modos de subjetivação, a possibilidade de resistência em relação ao biopoder. Isso o conduz à Antiguidade Grego-romana do Alto Império na busca pelos modos de subjetivação gregos, da constituição de uma tekhné toû bíou (uma arte da vida). O uso dos prazeres será, nesse sentido, o primeiro livro em que Foucault trabalhará com a noção de modo de subjetivação a partir da tradição greco-romana. Ao finalizar seu Nascimento da Biopolítica – curso proferido entre os anos de 1978-1979, ao cabo do curso do biênio de 1979-1980, Foucault apercebe-se de que toda a problemática de seu trabalho voltava-se não meramente para a questão do poder, ou das disciplinas, ou mesmo da loucura – os quais, inequivocamente, representam grande feixes de temas contemplados em sua obra; o curso daquele ano, ainda não publicado, abre, a partir da análise do poder pastoral e da condução da vida – problema intrinsecamente relacionado com o problema da governametalidade, que aparece em sua obra no seminário do biênio de 1977-1978, Securité, Territoire, Population –, a possibilidade de retornar à questão que, quase imperceptivelmente havia conduzido toda a sua pesquisa. É apenas no trânsito que se faz entre o sujeito, a subjetividade e a verdade – enfim, da relação do sujeito com a verdade – que apareceriam temas como o poder, as disciplinas, a normalização, o controle, o governo, a governamentalidade, a loucura etc. É a conclusão a que chega em Le gouvernement de soi et des autres I (1982-1983), quando admite a possibilidade de pensar, a título de história dos sistemas de pensamento, a análise das representações em função do conhecimento considerado como critério de verdade.
            Em O uso dos prazeres, Foucault dedica uma introdução a fim de fixar esse deslocamento em sua obra, bem como de apresentar o novo fio condutor do tema da sexualidade. Ali, Foucault revela que tinha em mente realizar uma história da sexualidade enquanto experiência – se entendemos por experiência “a correlação, numa cultura, entre campos de saber, tipos de normatividade e formas de subjetividade”. Isso tudo, evidentemente, renegando a hipótese repressiva; vale dizer, evitando colocar a sexualidade como invariante que sofre alterações em função dos diversos mecanismos de repressão encontrados na sociedade em um dado período.
            Ao notar que falar da sexualidade implicaria dispor de instrumentos para analisar a formação dos saberes referente a ela, os sistemas de poder que regulam suas práticas e as formas pelas quais os indivíduos podem reconhecer-se como sujeitos de uma tal sexualidade – temos, portanto, sobre a sexualidade, três eixos analítico: poder, saber e subjetividade –, o faz ter de rever o projeto inicial, pois não dispunha de instrumentos de análise sobre o último ponto, a subjetividade. Parecendo-lhe estranha a noção de um sujeito de desejo que pareceia ter sido, à primeira vista, herdada de uma longa tradição cristã que vai desaguar na sexualidade moralizada e medicalizada dos séculos XIX e XX, Foucault vê-se obrigado a descer às raízes das práticas de si cristãs e, assim, chega ao mundo greco-romano, tendo de organizar muito lentamente, como confessa, seus estudos ao derredor da formação de uma hermenêutica de si na Antiguidade.
            Justamente as formas de relação do sujeito consigo é lhe chamam a atenção, e a anotação de que muito dessas tecnologias de si teriam sido aproveitadas pelo cristianismo, mas com um fundo redecorado.
            Entre os gregos, com o auxílio de muitos intelectuais que tinham por objeto de estudo a filosofia antiga (e.g., P. Hadot e Peter Brown), Foucault  aproxima-se lentamente de textos pelos quais, apesar de não ter muita intimidade, logo se afeiçoa, e sai à busca de analisar os jogos de verdade, do verdadeiro e do falso, por meio dos quais o ser se constitui historicamente. Não se trata de admitir a priori o sujeito como sujeito de desejo, mas de perguntar-se “Através de que jogos de verdade o ser humano se reconheceu como homem de desejo?”. Em seguida, perguntar-se exatamente por que motivo o comportamento sexual, as atividades relacionadas ao prazer, tornaram-se objeto de uma preocupação moral – mesmo entre os gregos?
            Para responder a tais questões, Foucault conceitua as artes de existência como “praticas refletidas e voluntárias através das quais os homens não somente fixam regras de conduta, como também procuram se transformar, modificar-se em seu ser singular e fazer dessa vida uma obra que seja portadora de certos valores estéticos e responda a certos critérios de estilo”. Foucault reconhece que tais técnicas perdem muito de sua centralidade a partir do momento em que são integradas, com o cristianismo, a um certo poder pastoral e, mais tarde, em práticas de tipo pedagógico, médico, psicológicos. Nesse sentido é que o estudo do regime dos aphrodísia gregos podem constituir um capítulo dessa história geral das técnicas de si, participando de um certo modo de problematizar, próprio à Antigüidade, os prazeres sexuais pondo em jogo uma estética da existência.
            Pontualmente, O uso dos prazeres destina-se a compor a maneira pela qual os filósofos e os médicos na cultura grega clássica, no século IV a.C., problematizavam a questão da sexualidade; segue-se, assim, O cuidado de si, que se dedica a tal problematização entre os gregos e latinos nos séculos I e II d.C. e, por fim, em um livro que se chamaria As confissões da carne, Focault trataria da formação da doutrina e da pastoral da carne. Livro, esse, a cujo respeito ainda hoje se assomam as mais diversas especulações.
            Tendo em presença que os textos antigos eram textos para serem lidos, meditados, utilizados, postos à prova e visavam, de modo geral, a constituir a armadura da vida cotidiana dos sujeitos, Foucault pretende dedicar-se a textos práticos e, em certo nível, prescritivos, que participam, no dizer de Plutarco, de uma função etopoética ao formarem os sujeitos e colocaram suas condutas à prova.

O presente e os devires, sobre alguns nomadismos

27 março, 2010



#Suscitar acontecimentos


Coluna mensal de Murilo Duarte Costa Corrêa n'O Pensador Selvagem
Editor do blog de Filosofia e Teoria do Direito A Navalha de Dalí


Hoje iniciamos uma coluna mensal em O Pensador Selvagem, e nada melhor do que nos dedicarmos a falar um pouco sobre a unio mystica entre esses elementos: o pensamento e o selvagem; elementos que unimos sob o caráter unívoco e, a um só tempo, diferencial (e plural), de alguns nomadismos. A violência que força a pensar é da mesma ordem de uma violência que vem de fora; Michel Maffesoli, já há alguns anos, dissera que é isto um bárbaro: aquele que vem de fora para fecundar um corpo social já esgotado. A barbárie, o nomadismo, como devires micropolíticos, apontam para uma potência selvagem em conexão com um certo vitalismo e com a própria vida, que constitui suas infinitas e contínuas possibilidades de variação de modos de vida; assim é para o antropólogo francês, Michel Mafesolli, bem como para alguns de seus mais importantes predecessores, Friedrich Nietzsche (e seu conceito de vontade de poder) e Gilles Deleuze (e os conceitos de vida e imanência, que se confundem no título de seu último escrito, publicado em 1995, L’immanence: une vie...).

O nômade povoa um espaço em contínuo deslocamento pois vive de entretempos, em entretempos; ser nômade, diziam Deleuze e Guattari, é viajar com a potência selvagem de uma linha de fuga; é um modo de existência de alguém que não está lá ou cá, mas continuamente entre-dois. Assim, o nômade está sempre entre um ponto de água, um ponto de caça, um ponto de assembleia, ou um ponto de descanso. A vida do nômade é rizomática, intermezzo. Em seus caminhos, existem apenas pontos, mas os pontos não se sobrepõem às linhas – ao contrário, os pontos, singulares, apenas existem para serem abandonados pela linha, que é, já, uma linha de fuga ou de ruptura, como preferiria a literatura de F. S. Fitzgerald. Entre dois pontos há sempre um trajeto, e o entre-dois, a linha, o traço que vem de fora, tomou consistência, e goza de autonomia e direção próprias.

Na medida em que o nômade é territorial, e distribui-se em um espaço liso, Deleuze e Guattari alertam que seria falso defini-lo pelo movimento. O nômade é aquele que, agarrado a um espaço liso, não parte, não quer partir. O nômade sabe esperar e tem uma paciência infinita. Daí, ser necessário, desde Kleist, distinguir velocidade e movimento; o movimento é extensivo (deslocamento relativo ao espaço, que vai de um ponto a outro), e a velocidade é intensiva – de caráter absoluto, como um corpo cujas partes e átomos preenchem um espaço liso à maneira de um turbilhão, como aprazia a física de Lucrécio, podendo surgir em um ponto qualquer. Esse movimento turbilhonar é próprio da máquina de guerra nômade; sua errância é uma questão de fuga, que pode dar-se até mesmo sem sair do lugar em que se está.

Pierre Clastres lembrara a precedência etnológica da existência, entre certas tribos nômades, de uma sociedade contra o Estado. A cada vez que um poder potencialmente totalizador se formava, dando mostras de querer formar Estado, povoados inteiros inseriam-se em uma série de pequenos e tumultuosos combates. Assim, acompanhavam uma linha de fuga desorganizando, desarticulando as linhas de segmentariedade dura ou molar (ou de Estado), em benefício de “n” articulações, de uma multiplicação de possibilidades, ainda que aparentemente a empiria mostrasse exclusivamente destruição, abolição e decadência civilizacional.

Então, por que falar em alguns nomadismos? Por que reivindicar como abertura – como me parece que O Pensador Selvagem tenciona – um espaço micropolítico nômade a partir do qual pensar? Contemporaneamente, trata-se de questionar-se a respeito das trincheiras que temos cavado no tempo presente e no próprio real; que linhas nos atravessam: de segmentariedade molar ou molecular? Quais delas servem a um devir, quais delas servem a uma prudente desarticulação? De que devires somos capazes? Como temos afrontado o presente, e de que forma poderíamos fazer uso da memória e da história para confrontar o atual? Não se trata de negar o atual, mas de entrevê-lo desde uma perspectiva do contemporâneo – aquela em que a experiência é como a descrita por Agamben: arrostar o feixe de trevas que, longe de constituírem uma negatividade, nos afetam e concernem. Tudo se torna uma questão de prudência na fuga de velocidades, pois as trevas daquilo que vem não constituem uma pura ausência de luz, mas intensidades presentes em uma velocidade absoluta, indiscernível, imperceptível.

Por isso, alguns se espantam ao se depararem com perguntas deleuzianas aparentemente sem sentido. Uma das mais correntes é “O que se passou?”. Não se trata da interrogação de um absorto, mas de um perscrutador de devires, de um suscitador de acontecimentos, que asculta a positividade potente daquilo que ainda não...; isto é, do virtual, de um presente ou de um contemporâneo aberto aos devires. O que significa dizer: cumpre-nos um tempo presente não separado daquilo que o nosso tempo pode; e não seria precisamente isso a abertura - suscitar acontecimentos?

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[Texto originalmente publicado em 27 de março de 2010, em minha coluna mensal,  "Suscitar Acontecimentos", na seção Ciências e Humanidades do site "OPS! - O Pensador Selvagem". Para ler no original, clique aqui.]

Cosmo, vida e velamento: “Criação imperfeita”, de Marcelo Gleiser

26 março, 2010


  


[resenha / lançamento] - O físico e professor da Dartmouth University, Hanover, nos Estados Unidos, Marcelo Gleiser, lançou, há pouco, o livro Criação imperfeita: cosmo, vida e código oculto da natureza, pela Editora Record. O prefácio e o primeiro capítulo podem ser lidos em PDF aqui. Gleiser é doutor em física pela University of London, realiza pesquisas na área de filosofia das ciências, e é conhecido por buscar tornar acessíveis ao grande público algumas investigações científicas que possuem raízes no seio da cultura ocidental, e que podem ser consideradas como uma espécie de extensão dela: “quem somos?”, “de onde viemos?” e “para onde vamos?”.
A sofisticação das funções e proposições científicas, sua linguagem própria, apela à partilha do saber preconizada por Gleiser. Para isso, o professor de filosofia natural utiliza uma linguagem que mistura o poético, o concreto e o quotidiano, envolvendo o leitor desde a primeira página em uma leitura agradável e interessante. Esses problemas (“quem somos?”, “de onde viemos?” e “para onde vamos?”), aparentemente tão ingênuos, mas ao mesmo tempo, insolvidos até hoje por nossa tradição ocidental de pensamento – que já apelou desde a soluções metafísicas e impalpáveis até a obturação dos possíveis pela proposição de uma realidade confundida com o puramente atual – nos permitem atravessar, ombro a ombro com Gleiser, em direção a uma outra margem; precisamente, a das funções e proposições próprias ao conhecimento epistêmico.
A proposta é das mais instigantes: abandonarmos definitivamente, ao pensar cientificamente, a noção de uma ordem transcendente à natureza, organizadora, para conceber uma espécie de imperfeição imanente, caótica, plena de possibilidades, sempre-aberta ao novo. Evidentemente, trata-se de um ponto de partida filosófico para passar à ciência, que já não pleiteia uma objetividade absoluta, mas tampouco admite a ingerência da subjetividade racionalista e organizadora do caosmos, para utilizar uma expressão cara a F. Guattari.
Ao contrário de apegar-se à razão como uma forma organizadora daquilo que existe, procurando uma lei ou uma ordem para o mundo natural, supondo-o exterior à natureza humana, o livro de Gleiser nos auxilia a perceber que, no fundo da natureza-naturante - o movimento, a um só tempo, criador e destruidor que a filosofia de Heráclito supunha, e que nos fora legado em um seu fragmento insólito (physis philein krypthestai) [1] -, há uma solidariedade unívoca com o organismos e com os verdadeiros acidentes que são o plaeta terra, os homens e a vida inteligente no corpo inorgânico do cosmos.
Matéria organizada e inorganizada, orgânica e inorgânica, como já as encontramos na filosofia de Henri Bergson, não passam de duas linhas divergentes que expressam diferencialmente um só movimento do cosmo; movimento, esse, que se confunde com a radical imprevisibilidade dos devires. A intuição dessa íntima e singular solidariedade entre os homens, o pensamento e a natureza permite a Gleiser dar-nos algo em que pensar: como essa reformulação de uma solidariedade imanente e íntima entre cosmo, vida e velamento da natureza poderiam auxiliar-nos a repensar a fundamentação das ciências, da ética e da ecologia, já que são precisamente os acidentes de que participamos no seio da natureza que nos fazem absolutamente singulares?


[1] Como Pierre Hadot observa, physis philein krypthestai, pode ter significado tanto “a natureza ama/tende a ocultar-se” quanto “aquilo que nasce deve perecer”. HADOT, Pierre. O véu de Ísis. Ensaio sobre a história da ideia de natureza. Tradução de Mariana Sérvulo. São Paulo: Loyola, 2006, p. 27-34.

Do uso da violência contra o Estado ilegal, de Vladimir Safatle

20 março, 2010

Do uso da violência contra o Estado ilegal
Por Vladimir Safatle


Nenhum país conseguiu consolidar a democracia sem acertar contas com os crimes de seu passado

A meu pai

"Quem controla o passado, controla o futuro"
George Orwell, "1984"


Os fascistas fizeram de Auschwitz o paradigma da catástrofe social. Contra ele, o século XX cunhou o imperativo “fazer com que Auschwitz nunca mais ocorra”. Mas talvez não seja supérfluo perguntar, mais uma vez: o que exatamente aconteceu em Auschwitz que sela este nome com o selo do que nunca mais pode retornar?

É verdade que, diante da monstruosidade do acontecimento, colocar novamente uma questão desta natureza pode parecer algo absolutamente desnecessário. Pois, afinal, sabemos bem o que aconteceu em Auschwitz, acontecimento que sela este nome com a marca do nunca visto. Todos conhecem a resposta padrão. Auschwitz é o nome do genocídio industrial, programado como se programa uma meta empresarial quantitativa. Ele é o nome do desejo de eliminar o inumerável de um povo com a racionalidade instrumental de um administrador de empresas.

Mas, se devemos recolocar mais uma vez esta questão é para insistir na existência de um aspecto menos lembrado da lógica em operação nos campos de concentração. Até porque, infelizmente, a história conhece a recorrência macabra de genocídios. Começo com este ponto apenas para dizer que é bem provável que a dimensão realmente nova de Auschwitz esteja em outro lugar. Talvez ela não esteja apenas no desejo de eliminação, mas na articulação entre esse desejo de eliminação e o desejo sistemático de apagamento do acontecimento.

Devemos ser sensíveis ao caráter absolutamente intolerável do desejo de desaparecimento. Lembremos, neste sentido, desta frase trazida pela memória de alguns sobreviventes dos campos de concentração, frase que não terminava de sair da boca dos carrascos: “Ninguém acreditará que fizemos o que estamos fazendo. Não haverá traços nem memória”. O crime será perfeito, sem rastros, sem corpos, sem memória. Só fumaça que se esvai no ar saída das câmaras de gás. Pois o crime perfeito é aquele que não deixa cadáveres e o pior cadáver é o sofrimento que exige justiça. Valeria trazer, a este respeito, uma frase precisa de Jacques Derrida: “O que a ordem da representação tentou exterminar não foi somente milhões de vidas humanas, mas também uma exigência de justiça, e também nomes: e, primeiramente, a possibilidade de dar, de inscrever, de chamar e de lembrar o nome"1.

Foi nesse sentido que Auschwitz teve o triste destino de expor como o núcleo duro de todo totalitarismo se transforma em ação ordinária. Pois o totalitarismo não é apenas o aparato político fundado na operação de uma violência estatal que visa a eliminação de todo e qualquer setor da população que questiona a legalidade do poder, violência que visa criminalizar sistematicamente todo discurso de questionamento. Na verdade, o totalitarismo é fundado nesta violência muito mais brutal do que a eliminação física: a violência da eliminação simbólica. Assim, ele é a violência da imposição do desaparecimento do nome. No cerne de todo totalitarismo, haverá sempre a operação sistemática de retirar o nome daquele que a mim se opõe, de transformá-lo em um inominável cuja voz, cuja demanda encarnada em sua voz não será mais objeto de referência alguma.

Este inominável pode, inclusive, receber, não um nome, mas uma espécie de “designação impronunciável”, que visa isolá-lo em um isolamento sem retorno. “Subversivo”, “terrorista”. A partir desta designação aceita, nada mais falaremos do designado, pois simplesmente não seria possível falar com ele, porque ele, no fundo, nada falaria, haveria muito “fanatismo” nestes simulacros de sons e argumentos que ele chama de “fala”, haveria muito “ressentimento” em suas intenções, haveria muito “niilismo” em suas ações. Ou seja, haveria muito “nada”.

Claro está que este inominável nada tem a ver com as estratégias (tão presentes na política do século XX) de recusar o nome atual, o regime atual de nomeação, isto a fim de abrir espaço a um nome por vir2. Antes, ele é a redução daquele colocado na exterioridade à condição de um inominável sem recuperação ou retorno3.

Que a violência simbólica do desaparecimento do nome, da anulação completa dos traços seja o sintoma mais brutal do totalitarismo, eis algo que explica porque, no momento em que a experiência da democracia ateniense começava a chegar ao fim, o espírito do povo produziu uma das mais belas reflexões a respeito dos limites do poder. Ela é o verdadeiro núcleo do que podemos encontrar nesta tragédia que não cessa de nos assombrar, a saber, "Antígona"4.

Muito já se foi dito a respeito desta tragédia, em especial seu pretenso conflito entre leis da família e leis da pólis. No entanto, vale a pena lembrar como no seu seio pulsa a seguinte ideia: o Estado deixa de ter qualquer legitimidade quando mata pela segunda vez aqueles que foram mortos fisicamente, o que fica claro na imposição do interdito legal de todo e qualquer cidadão enterrar Polinices, de todo e qualquer cidadão reconhecê-lo como sujeito apesar de seus crimes.

Pois não enterrá-lo só pode significar não acolher sua memória através dos rituais fúnebres, anular os traços de sua existência, retirar seu nome. Uma sociedade que transforma tal anulação em política de Estado, como dizia Sófocles, prepara sua própria ruína, elimina sua substância moral. Não tem mais o direito de existir enquanto Estado. E é isto que acontece a Tebas: ela sela seu fim no momento em que não reconhece mais os corpos dos “inimigos do Estado” como corpos a serem velados.

É neste sentido que algo de fundamental do projeto nazista e de todo e qualquer totalitarismo alcançou sua realização plena na América do Sul. A Argentina forneceu uma das imagens mais aterradoras desta catástrofe social: o sequestro de crianças filhas de desaparecidos políticos. Porque a morte física só não basta. Faz-se necessário apagar os traços, impedir que aqueles capazes de portar a memória das vítimas nasçam. E a pior forma de impedir isto é entregando os filhos das vítimas aos carrascos.

O desaparecimento deve ser total, ele deve ser objeto de uma solução definitiva. Não são apenas os corpos que desaparecem, mas os gritos de dor que têm a força de cortar o contínuo da história. “Não haverá portadores do seu sofrimento, ninguém dele se lembrará, nada aconteceu”, são as palavras que as ditaduras sul-americanas não cansaram de repetir àqueles que elas procuraram exterminar.

No entanto, na maioria dos casos, esse desejo de desaparecimento não teve força para perdurar. Na Argentina, por exemplo, amplos setores da sociedade civil foram capazes de forçar o governo de Nestor Kirchner a anular o aparato legal que impedia a punição de torturadores da ditadura militar. A Justiça não teve medo de novamente abrir os processos contra militares e de mostrar que era possível renomear os desaparecidos, reinscrever suas histórias no interior da história do país.

Da mesma forma, no Chile, graças à mobilização mundial produzida pela prisão de Augusto Pinochet em Londres, carrascos como Manuel Contrera foram condenados à prisão perpétua. O Exército foi obrigado a emitir nota oficial em que reconheceu não se solidarizar mais com seu passado. Em uma decisão de forte significado simbólico, mesmo o soldado que assassinou o cantor Victor Jara no Estádio Nacional também será processado. Nesse sentido, o único país que realizou de maneira bem sucedida as palavras dos carrascos nazistas foi o Brasil: o país que realizou a profecia mais monstruosa e espúria de todas. A profecia da violência sem trauma.

Lançamento. Editora Cultura e Barbárie

14 março, 2010


[lançamento] - Iniciativa dos estimados amigos Alexandre Nodari, Leonardo d'Ávila de Oliveira, Diego Cervelin, Flávia Cera e de Rodrigo de Barros Oliveira, lançou-se a Editora Cultura e Barbárie há cerca de dois dias.

Ainda, Emanuele Coccia estará na Universidade Federal de Santa Catarina no dia 18 de março de 2010, quinta-feira, às 18 horas, no Auditório da Reitoria, para o lançamento da versão brasileira de seu livro A vida sensível, traduzido por Diego Cervelin e publicado pela Editora Cultura e Barbárie. O outro lançamento da editora, igualmente disponível para aquisição on line, é A tela do cinema como prótese de percepção, da pena de Susan Buck-Morss, com tradução de Ana Luiza Andrade, ambos integrantes das coleção Parrhesia dessa nova e promissora editora.


O excerto abaixo é do Blog do Alexandre Nodari, Consenso, só no paredão!


"Finalmente, depois de muitos anos, um projeto antigo, que vem desde os tempos de graduação, quando conheci Rodrigo Lopes de Barros Oliveira, Leonardo D'Ávila, Diego Cervelin e, last but not least, Flávia Cera, sai do papel: a Editora Cultura e Barbárie. Nossos dois primeiros títulos - A tela do cinema como prótese de percepção, de Susan Buck-Morss, e A vida sensível, de Emanuele Coccia - já estão a venda no site (e haverá o lançamento de A vida sensível quinta-feira, às 18 horas, aqui em Florianópolis, no Auditório da Reitoria da UFSC, com a presença do autor). Os dois títulos integram a nossa primeira coleção, PARRHESIA, dedicada a ensaios de pensadores contemporâneos". 


    


Panóptica #18 e Ensaio: Direito como interpretação

12 março, 2010



[Lançamento e Ensaio] - Segue o editorial do n. 18/2010, da Revista Panóptica (Vitória-ES), dos Professores Bruno Costa Teixeira e Julio Pinheiro Faro Homem de Siqueira. Contribuí para nesta edição com um ensaio sobre o plano de organização do direito como interpretação, a partir das teorias do direito de Ronald Dworkin e Robert Alexy. Abaixo, clicando em "Continuar lendo", vocês encontram o PDF do ensaio na plataforma scribd.
MDCC.
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O novo número de Panóptica já está disponível online no endereço eletrônico da revista.

O número 18 é o primeiro de 2010, trazendo oito trabalhos bastante interessantes, todos eles aprovados por nosso Conselho, no sistema double blind peer review (análise por pares em duplo-cego), garantindo a qualidade dos trabalhos.

Murilo Duarte Costa Corrêa escreve sobre O plano de organização do direito como interpretação: uma hermenêutica do juízo a partir de Ronald Dworkin e Robert Alexy, discutindo a possibilidade teórica de reunir sob um mesmo plano de organização as teorias de Dworkin e Alexy sobre o direito, traçando, então, a partir de uma proposta não-reducionista, o plano de organização do direito como interpretação.

J. Alberto del Real Alcalá, por sua vez, trata sobre o Deber judicial de resolución y casos difíciles, em que traz a discussão sobre o processo de tomada de decisão pelos operadores jurídicos nos casos em que o direito aplicável é indeterminado a partir de mecanismos e técnicas que são também imprecisas.

Erinaldo Ferreira do Carmo em O debate político no espaço micropúblico descreve e analisa a transformação ocorrida no espaço público e o surgimento do espaço micropúblico como consequência da intensa urbanização, da universalização do acesso à informação e da ampliação da participação política.

Silvio Gambino, com Diritti fondamentali, fra Unione Europea e Costituzione italiana, discorre sobre a questão dos efeitos jurídicos e das consequências da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia nos ordenamentos jurídicos da UE e dos Estados-membros, particularmente acerca da primazia e da aplicabilidade direta dos dispositivos legais comunitários nas ordens jurídicas dos Estados-membros e em relação a princípios fundamentais e direitos fundamentais garantidos pelas Constituições nacionais.

Luis Henrique Urquhart Cademartori Raísa Carvalho Simões demonstram com A sobrevivência do modelo patrimonial na reforma administrativa gerencial do Estado brasileiro que, apesar de oportuna a estratégia do governo na década de 90 de estruturar a administração pública sob um modelo gerencialista, como uma forma de superação da crise fiscal que atingia o Estado, a reforma administrativa nasceu fadada a ser um retrocesso institucional em virtude da persistência de um modelo existente desde o colonialismo e que nesse momento vinha revestido de um moderno aparato de gestão, o patrimonialismo.

Marcelo A. Riquert discorre em América Latina: modelos de política criminal y derecho penal del enemigo sobre o desafio trazido com o retorno das velhas ideias do direito penal do inimigo de entender a realidade atual sem abrir mão dos princípios básicos do direito penal clássico, ou ainda sem que passe desapercebida a imensa intromissão que a legislação antiterrorista das potências dominantes têm sobre os direitos fundamentais, tais quais a intimidade e a privacidade.

Kai Ambos, em A liberdade no Ser como dimensão da personalidade e fundamento da culpa penal – sobre a doutrina da culpa de Jorge de Figueiredo Dias, trabalha com o correto entendimento da doutrina da culpa do professor português Jorge de Figueiredo Dias e com as críticas e objeções a ela endereçadas. Segundo o autor: a teoria da culpa baseada no ser-livre e na doutrina da personalidade conduz a descobertas que abrem caminho à compreensão da culpa penal.

Francisco Reyes Villamizar trata em Responsabilidad de los administradores en la sociedad por acciones simplificada sobre uma recente lei colombiana sobre sociedades por ações simplificada que, seguindo a perspectiva liberalizante do direito empresarial, reduziu diversas formalidades quanto a essas sociedades. O autor, que criou o projeto que originou a lei, ocupa-se, neste trabalho, de analisar a responsabilidade dos administradores nesse tipo societário.

Conselho Editorial: Adam Kowalik (Polônia); Adriano Sant’Ana Pedra; André de Abreu Costa; André Ramos Tavares; António José Avelãs Nunes (Portugal); António Manuel Hespanha; Brian H. Bix (Estados Unidos); César Fiúza; Cláudio de Oliveira Santos Colnago; Cristina Pazó; Daury César Fabriz; Eduardo C. B. Bittar; Ernesto Grün (Argentina); Flávia Trentini; Flávio Quinaud Pedron; Flávio Sarandy; Flávio Tartuce; Giuseppe Martinico (Itália); José Emílio Medauar Ommati; Letícia Ludwig Möller; Marcelo A. Riquert (Argentina); Oreste Pollicino (Itália); Pablo Rodrigo Alflen da Silva; Paolo Comanducci (Itália); Valdeciliana da Silva Ramos Andrade.

Conselho Revisor: Giovanna Maria Sgaria Morais; Marcelo Sant’Anna Vieira Gomes; Stephan Holanda Pandolfi.



Bruno Costa Teixeira
Julio Pinheiro Faro Homem de Siqueira
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*Disponibilizo o ensaio "O plano do direito como interpretação: uma hermenêutica do juízo a partir de Ronald Dworkin e Robert Alexy" na plataforma scribd. Basta clicar em "Continuar lendo..."



Entrevista com François Dosse

11 março, 2010



Tras una filosofía del acontecimiento
Entrevista con François Dosse. 


Los franceses Gilles Deleuze y Félix Guattari forjaron la pareja intelectual más exuberante de los últimos tiempos. En este diálogo, el historiador François Dosse, responsable de una monumental biografía cruzada, recupera genio y figura de los autores de "El antiedipo". 


Un humorista los llamó "Guattareuze". O no los llamó, sino que lo llamó: la dupla siempre dijo que, siendo uno, eran mucho más que dos. En todo caso, las parejas de pensado res o de escritores no abundan. La más célebre es Marx-Engels. En el siglo XX se puede hablar de Ador no-Horkheimer. En nuestro país, Borges-Bioy Casares. Pero no hay dudas de que la más reciente y exuberante de los últimos tiempos es la que componen los franceses Gilles Deleuze y Félix Guattari, fallecidos a mediados de los 90. El historiador francés François Dosse, que ha reconstituido en varios libros buena parte de la vida intelectual de su país desde los 60 en adelante, consagra a "Guatta reuze" una biografía cruzada de 700 páginas donde hay lugar para todo: historias de infancia, varia dos relatos sobre su encuentro y su forma de escribir y de inter venir políticamente, amistades y enemistades variables, capítulos de análisis de sus obras ("El antie dipo", "Kafka: para una literatura menor", "Mil mesetas" y "¿Qué es la filosofía?") y pasajes que por momentos componen un vertigi noso fresco de época, a la manera de la gran biografía de Didier Eri bon sobre Michel Foucault, amigo de Deleuze. 


Rizoma, agenciamiento, des territorialización y plano de in manencia son algunos de los con ceptos de Deleuze y Guattari que se expanden en todos los campos. La publicación de Gilles Deleuze y Félix Guattari. Biografía cruzada no podría ser más oportuna en un país, como el nuestro, en el que algunas obras de Deleuze deben ser reimpresas regularmente. Quien no conozca nada de Deleu ze y Guattari, encontrará hasta un análisis somero de algunas líneas fundamentales de los pensamien tos de ambos. Para los conocedo res, a quienes este análisis podrá parecer demasiado sumario, los datos y las historias del libro son imperdibles. Quizás allí resida la mayor virtud de esta biografía: es para todos y para nadie. 


Gilles Deleuze, profesor de filosofía que descolló desde muy joven en la academia francesa, y Félix Guattari, ex lacaniano fer viente que realizó notables expe riencias psiquiátricas sin títulos universitarios, se encontraron en 1969, en la estela del Mayo Fran cés, y produjeron una obra absolu tamente original que según Dosse se debe a lo singular e improbable de su encuentro. En diez años, de 1970 a 1980, escribieron juntos mientras poco hacían por sepa rado. Antes y después, sus obras corrieron por carriles diferentes. A principios de los 90, ¿Qué es la filosofía? se transformó en su deslumbrante testamento intelec tual. Dosse relata las peripecias de estos acercamientos y alejamien tos y, fundamentalmente, busca captar la producción en común, más que lo que cada uno aporta al otro; busca en definitiva a "Guatta reuze". En este camino, aunque mantenga siempre una distancia profesional respecto de sus bio grafiados y evidencie que su obra no le es íntima, el autor termina fascinándose con su objeto. Esto se ve claramente cuando el tono austero de la biografía se exaspera ante los contendientes más céle bres de este Jano bifronte, como Jacques Lacan y Alain Badiou. 


Dosse conversó con Ñ sobre el carácter político de la obra de Deleuze y Guattari y sobre su in fluencia en el pensamiento y el arte contemporáneos. 


Usted reivindica la figura de Guattari, que suele ser desesti mada con relación a la de Deleu ze. ¿Por qué ocurre esto? 
Hay dos razones esenciales. Por un lado, el carácter inclasificable de Guattari, que es al mismo tiempo psicoanalista y practicante de la psiquiatría, pero no psiquia tra, porque no siguió los estudios; escritor sin una verdadera obra li teraria, apenas con manuscritos no publicados; filósofo sin diplo ma de filosofía; militante político pero en los márgenes. Tiene múl tiples competencias pero no se le puede asignar un saber o una dis ciplina. En cambio, Deleuze, aun que muy abierto a toda forma de expresión creativa, es claramente reconocido como un filósofo pro fesional. La segunda razón es la voluntad de algunos de edulcorar su obra común, de sacarle vida a la fuerza innovadora de ambos "desguattarizando" el pensamien to de Deleuze para sacarlo de ese cascarón izquierdista. 


Está claro que ambos fueron protagonistas de la izquierda europea en aquellos años. Pero llama la atención la mención que hace sobre el hecho de que la obra de Deleuze y Guattari fue algo así como "un freno al ex tremismo".
Ocurre que el pensamiento de Deleuze y Guattari es un intento de comprender lo que pasó en el llamado Mayo Francés. De hecho, lo que suscitó el encuentro entre ambos es el esfuerzo por hacer inteligible la ruptura instituyen te que fue ese acontecimiento, y que dio lugar en 1972 a El antie dipo . Se trata de un pensamiento crítico que pretende conservar la radicalidad, la inventiva y el ima ginario que se expresó en aquel mayo. Y al hacerlo, El antiedipo también se inscribe como una crítica radical de las tentativas de cierta ultraizquierda de elegir las armas y comprometerse con el te rrorismo. En este sentido, coinci do con quienes afirman que este pensamiento, en pleno reflujo de la izquierda en 1972, resguarda la herencia del Mayo Francés de una vía terrorista que es mortífera, so bre todo en países que siguieron siendo democráticos, a pesar de sus insuficiencias, y no pasaron por dictaduras como en América Latina. 


Sin embargo, en la Francia ac tual existe una reacción contra 
La transformación social en las revo luciones traicionadas, confiscadas. Se trata para Deleuze y Guattari de hacer proliferar lo molecular, de multiplicarlo al infinito para que las instituciones oficiales, molares, pierdan su razón de ser frente a las microrredes molecu lares. La máquina de guerra está vinculada con el nomadismo, con su desplazamiento y su velocidad potencial, un espacio sin estrías ni puntos de referencia en el cual esa máquina se puede mover sin tensiones. 


En relación con la "influencia subterránea" de la que habló an tes, en la Argentina y en buena parte del mundo la influencia de Deleuze y Guattari es mayor en el terreno artístico, o en el filo sófico no institucional, que en la academia. ¿A qué se debe? – 
Se debe a lo que llamo una "filosofía artista". Todo el movi miento de esta filosofía apunta no sólo a definir qué es pensar, o sea, crear un concepto, sino tam bién a elaborar un vitalismo que busca favorecer y comprender el acto creativo. En mi investigación pude darme cuenta, recogiendo el testimonio de pintores, músi cos y escritores, que la influencia de este pensamiento en el arte es la más intensa, una fuente directa de inspiración.– 


¿En qué medida esa "filosofía artista" fue posible por el esce nario creado por el Mayo Fran cés o por la singularidad de los propios Deleuze y Guattari? 
La originalidad de ambos es que tenían una escritura a cua tro manos. No es la primera vez que hay obras escritas por dos au tores, pero en este caso no hubo jamás una relación del tipo fusio nal o una ósmosis. Un signo de esta distancia que mantuvieron es que se trataban de usted, algo sorprendente en ellos y más en esa época. Ahora bien, su méto do, su dispositivo de reflexión y escritura descansa justamente en la escucha de sus diferencias: trabajan dentro de esa disyunción, en la que cada uno radicaliza la posición del otro cuando utilizan un concepto. Pero mientras Félix Guattari tenía la costumbre de trabajar en grupo, Gilles Deleu ze rechazaba categóricamente la participación de otras personas. También llevaron a cabo un vín culo único entre la elaboración del concepto y su experimentación en la práctica social. De todos modos, no hay que pensar que su relación intelectual pasaba por un Deleuze que se ocupaba del concepto y un Guattari que lo experimentaba luego en la clínica de La Borde –donde trabajó Guattari duran te décadas– o en otro lado. Por el contrario, Deleuze impone a Guattari, a quien todo el tiempo se le ocurren nuevas ideas, poner las en papel en bruto y enviárselas todos los días para retomarlas y re trabajarlas. Deleuze emplea las fi guras del descubridor (Guattari) y el tallador de diamantes (él). Lue go, experimentan sus conceptos cada uno en su ámbito, en lugares como La Borde o en sesiones de trabajo con investigadores, antes de reencontrarse y comparar sus experiencias, corregir y mejorar sus escritos. 


Usted escribió muchos libros de historia intelectual. ¿Cuál es el lugar que ocuparía la obra de Gilles Deleuze y Félix Guattari en el pensamiento del último medio siglo? 
Creo que expresa las esperanzas de cambio que se expresaron a fi nes de los 60 y durante toda la dé cada del 70. Al mismo tiempo, el interés de esta obra no es sólo his tórico o arqueológico, porque es una obra de anticipación, casi pro fética. Cuando este pensamiento común destaca conceptos como el plano de inmanencia y rizoma, con sus conexiones significantes en todos lados, cuando Deleuze analiza en 1990 el pasaje de una sociedad disciplinaria a una socie dad de control, a la vez más abier ta y más eficaz en el seguimiento de los individuos, se ve que este pensamiento es particularmente esclarecedor de lo que es nuestra modernidad, y mucho más aún de lo que está siendo este siglo XXI, que para Michel Foucault iba a ser un siglo deleuziano. Sin dudas, y agregando a Guattari, lo será.