Psicose e justiça de massa: entre o espetáculo e o juízo universal

25 abril, 2010




Fotograma: Boulevard du Temple, de Louis Daguerre (1838/1839)

#Suscitar acontecimentos


Coluna mensal de Murilo Duarte Costa Corrêa n'O Pensador Selvagem
Editor do blog de Filosofia e Teoria do Direito A Navalha de Dalí




Antes que digam, esse texto não chega atrasado. Ao contrário, ele adianta; adianta os muitos julgamentos-espetáculo a que ainda assistiremos estarrecidos, indignados, maldizendo a justiça que não vem, ou comemorando a reação da horda ridícula, mirrada e cristã contra o indivíduo.
O caso Isabela é emblemático a respeito da relação entre a patologia coletiva, que combate uma sociedade criminogênica com mais crime e violência organizada, e a normalidade e generalidade que a violência dos poderes de estado (aí incluídos os mass media) podem alcançar.
Poucas semanas depois de a garota ter sido defenestrada, jornalistas de todo o Brasil davam sua sentença; lia-se em uma das capas da Veja: Foram eles. E Veja afirmava isso a partir de um simples inquérito policial – mero procedimento investigatório em que a ampla defesa e o contraditório sequer são admitidos, pois impertinentes diante da natureza jurídica naturalmente inquisitória da fase investigativa.
As restrições talvez fossem menores caso não se tratasse de um crime contra a vida, de apelo emocional, que seria, como foi, avaliado por um júri popular, e caso não houvesse esse movimento burguês anti-impunidade “para certos crimes, mas não para todos”; “para os crimes cujas vítimas são visíveis, não justiça para as vítimas invisíveis”. Não se vê ninguém fazer vigília na frente do Supremo, pedido a procedência da ADPF n. 153 – embora as organizações de proteção aos direitos humanos continuem acompanhando o caso; o fato é que ninguém se interessa pela invisibilidade dos mortos, mas pelas visibilidades, e pela incontornabilidade, do poder.
Esse é o caso de Isabela e, ao que tudo indica, deverá ser também o caso do assassinato de Glauco e de Raoni. A grande mídia usa a morte dos dois para questionar – veja bem, não a questão do tratamento psiquiátrico no Brasil, não os problemas sociais gravíssimos envolvidos pela doença mental, tampouco a falta de políticas públicas de amplo espectro para prevenção de desenvolvimento e agravamento de doenças mentais (como talvez fosse defensável), mas – a liberação, pelo governo federal, da utilização do chá do Santo Daime em cerimônias religiosas, o qual tem efeitos alucinógenos. A discussão é, pois, sobre a liberação do chá do Daime, que teria servido de fator desencadeante para um surto psicótico em um sujeito provavelmente portador de esquizofrenia, e não a radical exclusão dos doentes mentais, que só recebem alguma atenção quando cometem um crime de grande magnitude, ou quando nos falam sobre o fim do mundo e a vinda de algum messias nos centros das cidades.
Isso não justifica nem torna qualquer crime, tampouco a prematura morte de Isabela, Glauco ou Raoni, aceitáveis. Contudo, o retorno vingativo da cosidetta “justiça” sobre os criminosos não os reconhece mais do que como excluídos; estatísticas indicam que, no Brasil, há cerca de 1,6 milhões de pessoas (o que equivale a uma Capital do porte de Curitiba) portadoras de esquizofrenia – a maioria delas, em situação de mendicância. Constatar que esses números talvez sejam modestos é fácil: escolha uma grande cidade e ande pela sua cracolândia (toda grande cidade tem uma e, se não tem, em breve terá).

* * *

No curso da Segunda Dissertação de Genealogia da Moral, F. W. Nietzsche oferecerá uma curiosa, e vitalista, definição de direito. Nietzsche afirma que se considerássemos o direito sob uma perspectiva histórica, veríamos que ele representa precisamente “a luta contra os sentimentos reativos”.  No decorrer do tempo histórico, o direito teria implicado uma conduta agressiva voltada a conter os desregramentos do pathos reativo a fim de impor um acordo. Ao passo em que torna certos atos humanos, naturalmente produtores de ressentimento e motivadores de vingança em uma afronta à lei, a lei surgirá precisamente para tomar lugar à vingança, desviando esses sentimentos imediatamente orientados à revanche.
Contudo, os rebanhos se organizam apressadamente. Atualmente, organizam-se em congregações que permitem entrever a identidade entre justiça e desejo; o desejo de justiciamento e a justiça propriamente dita são uma e mesma coisa. A culpa, como em Na colônia penal, de Kafka, é sempre indubitável. “Foram eles”, ou “O psicótico e o Daime”, dizem as capas das revistas semanais.
Contudo, precisamente o que converte o desejo coletivo – como campo imanente da justiça – em um sentimento reativo, em uma vingança íntima mediada publicamente pela lei e pelas instituições, é a mediação do inconsciente coletivo pelas grandes máquinas semióticas contemporâneas: os mass media.
O mesmo ponto em que a culpa se torna indubitável (“foram eles”, “o réu psicótico, daimista e confesso” etc.), em que o julgamento se faz no corpo do socius, como uma emanação de uma sobre-regulação simbólica do inconsciente coletivo, termina por confundir-se com o momento em que o desejo ativo de justiça se torna um desejo reativo de vingança íntima e vergonhosa. Compartilhamos com os outros as nossas vergonhas, vamos dormir ao relento, assim como os psicóticos dos centros das cidades fazem todos os dias, e também por um delírio (que só é chamado “verdade”, porque é fruto do moralismo coletivo): para velar pela punição dos culpados, pela justiça das vítimas – pois os acusados são, sem dúvida, culpados.
O desejo toma, então, um caminho sem volta; a linha de fuga da justiça converte-se em linha de abolição absoluta – punição a todo custo, culpa a priori, expiação e conforto às vítimas. A perversão coletiva, que usa a lei para aplacar seu sentimento pessoal de vingança – e o brasileiro médio é tipicamente perverso em suas relações com a lei –, resultará, de tempos em tempos, na condenação de sujeitos submetidos aos ritos sacrificais contemporâneos. Os mass media encarnam a função de verdadeiros pontífices, hermeneutas da vontade divina, proclamadores da culpa; a lei e as instituições fazem as vezes dos instrumentos de suplício, legitimam a imposição da pena pelo próprio procedimento de apenamento; os condenados, culpados a priori, são sacrificados nas formas sancionadas do rito, do processo penal, a fim de auxiliar-nos a descarregar nosso pathos reativo, a fim de que possamos nos desvencilhar do castigo teológico e possamos expiar nossa própria culpa.
Porém, nós mesmos, não nos salvamos pelos ritos sacrificiais, pelo Juízo de Deus;  lembro-me de Il giorno del judizio, um belo texto de Agamben (2004) sobre um fotograma de Louis Daguerre, Boulevard du Temple, de 1838; nele, o Boulevard foi fotografado em horário de pico; massas de pessoas, carroças, passeantes, deveriam aparecer na imagem. Naquela época, porém, as máquinas fotográficas demandavam um longo tempo de exposição para captar as imagens. Por isso, nada aparece, senão um cenário urbano, imóvel; e ninguém aparece, à exceção de um vulto que permaneceu tempo suficiente parado, em pé, apoiado desconfortavelmente, tendo as botas engraxadas.
O fotograma daguerreano permitiria entrever a fotografia como lugar de um Juízo Universal, segundo Agamben: a multidão toda estava presente, mas não se pode vê-la; o juízo refere-se apenas a uma vida, radicalmente pessoal, surpreendida naquele que talvez tenha sido o mais banal dos gestos – ter os sapatos engraxados.
E nós? Ora, nós somos apenas aquela multidão invisível, cujo julgamento não chegou ainda; porque o tempo atual é um tempo teológico, e há mais deus do que nunca, nossa presença móvel e esmaecida no fotograma daguerreano profetiza e anuncia, como quisera Agamben, que “no instante supremo, o homem, cada homem, fica entregue para sempre a seu gesto mais ínfimo e cotidiano” (Agamben, 2004). Então, o gesto mais irrelevante pesa e compreende a totalidade de uma existência. Assim, enquanto as multidões invisíveis fazem seus julgamentos, deus continua medindo os homens – com a distração negligente de quem vai ter as botas lustradas.


[Texto originalmente publicado em 25 de abril de 2010, em minha coluna mensal,  "Suscitar Acontecimentos", na seção Ciências e Humanidades do site "OPS! - O Pensador Selvagem". Para ler no original, clique aqui!]

O que resta da ditadura?, por Vladimir Safatle

23 abril, 2010


Entrevista com Vladimir Safatle - Co-organizador do livro O que resta da ditadura - a exceção brasileira, saído pela Boitempo Editorial;  esta entrevista foi publicada originalmente pela Agência Brasil.

Agência Brasil: O Brasil tem alguma dificuldade com o seu passado?
Vladimir Safatle: Existe um esforço de vários setores da sociedade em apagar a ditadura, quase como se ela não tivesse existido. Há leituras que tentam reduzir o período à vigência do AI-5 [Ato Institucional nº 5], de 1968 a 1979. E o resto seria uma espécie de democracia imperfeita, que não se poderia tecnicamente chamar de ditadura.
Ou seja, existe mesmo no Brasil um esforço muito diferente de outros países da América Latina, que passaram por situações semelhantes, que era a confrontação com os crimes do passado. É a ideia de anular simplesmente o caráter criminoso de um certo passado da nossa história.
ABr: Há quem diga que o Brasil não teve de fato uma ditadura clássica depois de 1964, mas sim uma “ditabranda” se comparada à da Argentina e a do Uruguai, por exemplo.
Safatle: Essa leitura é do mais clássico cinismo. É inadmissível para qualquer pessoa que respeite um pouco a história nacional. Afirmar que uma ditadura se conta pela quantidade de mortes que consegue empilhar numa montanha é desconhecer de uma maneira fundamental o que significa uma ditadura para a vida nacional.
A princípio, a quantidade de mortes no Brasil é muito menor do que na Argentina. Mas é preciso notar como a ditadura brasileira se perpetuou.
O Brasil é o único país da América Latina onde os casos de tortura aumentaram após o regime militar. Tortura-se mais hoje do que durante aquele regime. Isso demostra uma perenidade dos hábitos herdados da ditadura militar, que é muito mais nociva do que a simples contagem de mortes.
ABr: Qual o reflexo disso?
Safatle: Significa um bloqueio fundamental do desenvolvimento social e político do país. Por outro lado, existe um dado relevante: a ditadura de certa maneira é uma exceção. Ela inaugurou um regime extremamente perverso que consiste em utilizar a aparência da legalidade para encobrir o mais claro arbítrio. Tudo era feito de forma a dar a aparência de legalidade.
Quando o regime queria de fato assassinar alguém, suspender a lei, embaralhava a distinção entre estar dentro e fora da lei. Fazia isso sem o menor problema. Todos viviam sob um arbítrio implacável que minava e corroía completamente a ideia de legalidade. É um dos defeitos mais perversos e nocivos que uma ditadura pode ter. Isso, de uma maneira muito peculiar, continua.
ABr: Então, a semente da violência atual do aparato policial foi plantada na ditadura?
Safatle: Não é difícil fazer essa associação, pois nunca houve uma depuração da estrutura policial brasileira. É muito fácil encontrar delegados que tiveram participação ativa na ditadura militar, ainda em atividade.
No estado de São Paulo, o ex-governador Geraldo Alckmin indicou um delegado que era alguém que fez parte do DOI-Codi [Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna].
Teve toda uma discussão, mas esse debate não serviu sequer para ele voltasse atrás na nomeação. Se você levar em conta esse tipo de perenidade dos próprios agentes que atuaram no processo repressivo, não é difícil entender por que as práticas não mudaram.
ABr: Estamos atrás de outros países, como Argentina e África do Sul, na investigação e julgamento de crimes cometidos pelo Estado?
Safatle: Estamos aquém de todos os países da América Latina. Nosso problema não é só não ter constituído uma comissão de verdade e justiça, mas é o de que ninguém do regime militar foi preso. Não há nenhum processo. O único processo aceito foi o da família Teles contra o coronel [Carlos Alberto Brilhante] Ustra, que foi uma declaração simplesmente de crime.
Ninguém está pedindo um julgamento e sim uma declaração de que houve um crime. Legalmente, sequer existiram casos de tortura, já que não há nenhum processo legal. E levando em conta o fato de que o Brasil tinha assinado na mesma época tratados internacionais, condenando a tortura, nossa situação é uma aberração não só em relação à Argentina e à África do Sul, mas em relação ao Chile, ao Paraguai e ao Uruguai.
ABr: Que expectativa o senhor tem quanto ao funcionamento da Comissão Nacional da Verdade, prevista no Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH 3), para apurar crimes da ditadura?
Safatle: Uma atitude como essa é a mais louvável que poderia ter acontecido e merece ser defendida custe o que custar. O trabalho feito pelo ministro Paulo Vannuchi [secretário dos Direitos Humanos, da Presidência da República] e pela Comissão de Direitos Humanos é da mais alta relevância nacional. Acho que é muito difícil falar o que vai acontecer.
A gente está entrando numa dimensão onde a memória nacional, a política atual e o destino do nosso futuro se entrelaçam. Existe uma frase no livro 1984, de George Orwell, que diz: “Quem controla o passado controla o futuro”. Mexer com esse tipo de coisa é algo que não diz respeito só à maneira que o dever de memória vai ser institucionalizado na vida nacional, mas à maneira com que o nosso futuro vai ser decidido.
ABr: Mas, antes mesmo da criação da Comissão da Verdade, os debates já estão muito acalorados.
Safatle: O melhor que poderia acontecer é que se acirrassem de fato as posições e cada um dissesse muito claramente de que lado está. O país está dividido desde o início. Veja a questão da Lei da Anistia. O programa do governo [PNDH 3] em momento algum sugeriu uma forma de revisão ou suspensão da lei.
O que ele sugeriu foi que se abrisse espaço para a discussão sobre a interpretação da letra da lei. Porque a anistia não vale para crimes de sequestro e atentados pessoais. A confusão que se criou demonstra muito claramente como a sociedade brasileira precisa de um debate dessa natureza, o mais rápido possível. Não dá para suportar que certos segmentos da sociedade chamem pessoas foram ligadas a esses tipos de atividades de “terroristas”.
É sempre bom lembrar que no interior da noção liberal de democracia, desde John Locke [filósofo inglês do século 17], se aceita que o cidadão tem um direito a se contrapor de forma violenta contra um Estado ilegal. Alguns estados nos Estados Unidos também preveem essa situação.
ABr: O termo “terrorista” é usado por historiadores que não têm qualquer ligação com os militares e até mesmo por pessoas que participaram da luta armada. Usar a palavra é errado?
Safatle: Completamente. É inaceitável esse uso que visa a criminalizar profundamente esse tipo de atividade que aconteceu na época. A ditadura foi um estado ilegal que se impôs através da institucionalização de uma situação ilegal. Foi resultado de um golpe que suspendeu eleições, criou eleições de fachada com múltiplos casuísmos. Podemos contar as vezes que o Congresso Nacional foi fechado porque o Executivo não admitia certas leis.
O fato de ter aparência de democracia porque tinham algumas eleições pontuais, marcadas por milhões de casuísmos, não significa nada. No Leste Europeu também existiam eleições que eram marcadas desta mesma maneira.Um Estado que entra numa posição ilegal não tem direito, em hipótese alguma, de criminalizar aqueles que lutam contra a ilegalidade. Por trás dessa discussão, existe a tentativa de desqualificar a distinção clara entre direito e Justiça.
Em certas situações, as exigências de Justiça não encontram lugar nas estruturas do Direito tal como ele aparecia na ditadura militar. Agora, existem certos setores que tentam aproximar o que aconteceu no Brasil do que houve na mesma época na Europa, com os grupos armados na Itália e na Alemanha. As situações são totalmente diferentes porque nenhum desses países era um Estado ilegal. E não há casos no Brasil de atentado contra a população civil. Todos os alvos foram ligados ao governo.
ABr: Os assaltos a banco não seriam atentados às pessoas comuns que estavam nas agências?
Safatle: Todos os que participaram a atentados a bancos não foram contemplados pela Lei da Anistia e continuaram presos depois de 1979. Pagaram pelo crime. Isso não pode ser utilizado para bloquear a discussão. Dentro de um processo de legalidade, de maneira alguma o Estado pode tentar esconder aquilo que foi feito por cidadãos contra eles, como se fossem todos crimes ordinários. Se um assalto a banco é um crime ordinário, eu diria que a luta armada, a luta contra o aparato do Estado ilegal, não é. Isso faz parte da nossa noção liberal de democracia.
ABr: Que democracia é a nossa que tem dificuldades de olhar o passado?
Safatle: É uma democracia imperfeita ou, se quisermos, uma semidemocracia. O Brasil não pode ser considerado um país de democracia plena. Existe uma certa teoria política que consiste em pensar de maneira binária, como se existissem só duas categorias: ditadura ou democracia. É uma análise incorreta. Seria necessário acrescentar pelo menos uma terceira categoria: as democracias imperfeitas.
ABr: O que isso significa?
Safatle: Consiste em dizer basicamente o seguinte: não há uma situação totalitária de estrutura, mas há bloqueios no processo de aperfeiçoamento democrático, bloqueios brutais e muito visíveis. Existe uma versão relativamente difundida de que a Nova República é um período de consolidação da democracia brasileira. Diria que não é verdade.
É um período muito evidente que demonstra como a democracia brasileira repete os seus impasses a todo momento. O primeiro presidente eleito recebeu um impeachment, o segundo subornou o Congresso para poder passar um emenda de reeleição e seu procurador-geral da República era conhecido por todos como “engavetador-geral”, que levou a uma série de casos de corrupção que nunca foram relativizados. O terceiro presidente eleito muito provavelmente continuou processos de negociação com o Legislativo mais ou menos nas mesmas bases.
Chamar isso de consolidação da estrutura democrática nacional é um absurdo. Os poderes mantêm uma relação problemática, uma interferência do poder econômico privado nas decisões de governo. Um sistema de financiamento de campanhas eleitorais que todos sabem que é totalmente ilegal e é utilizado por todos os partidos sem exceção.

* Hoje professor do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), Vladimir Safatle, concluiu a graduação na área em 1994. É formado também em comunicação social pela Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), possui mestrado em Filosofia pela USP (1997) e doutorado em Lieux et transformations de la philosophie (Espaços e transformações da filosofia, numa tradução literal) pela Universidade de Paris VIII (2002).

Safatle, também professor visitante das Universidades de Paris VII e VIII, desenvolve pesquisas nas áreas de epistemologia da psicanálise, desdobramentos da tradição dialética hegeliana na filosofia do século 20 e filosofia da música, além de ser um dos coordenadores da International Society of Psychoanalysis and Philosophy. (Fonte da biografia e da imagem: aqui).

Lançamento: Sopro #25

19 abril, 2010


[lançamento] - O Sopro n. 25 já está disponível! Essa edição conta com "Mensagem no Di Tella", panfleto escrito por Roberto Jacoby e distribuído no Experiências 68, no Instituto Di Tella em Buenos Aires, 1968 - com tradução assinada por Flávia Cera; e "Um requiém para a escrita?", resenha do livro A escrita, de Vilém Flusser, da pena de meu caro amigo Alexandre Nodari. Vale a pena conferir! Acesso aqui! Via blog do Nodari: Consenso, só no paredão!




Sorteio: Criação Imperfeita, de Marcelo Gleiser

16 abril, 2010




[Sorteio] - O blog A Navalha de Dalí sorteará, no dia 30 de abril de 2010, um exemplar de Criação Imperfeita, último livro de Marcelo Gleiser. Para participar, basta deixar um comentário nesse post, dizendo, “Quero ganhar o último livro de Marcelo Gleiser”, com um e-mail válido para contato. O nome do(a) ganhador(a) será divulgado aqui mesmo, no dia 1º de maio de 2010.


Mais além dos direitos do homem, de Giorgio Agamben

14 abril, 2010



Centro de órfãos do campo de refugiados Kilumba nº1 – Zaire – 1994
Foto de Sebastião Salgado

Tradução de Murilo Duarte Costa Corrêa··

           1. Em 1943, Hannah Arendt publicava em uma pequena revista hebraica em língua inglesa, “The Menorah Journal”, um artigo intitulado We refugees, “Nós, refugiados”. Ao final desse breve, mas significativo, escrito, depois de ter polemicamente esboçado o retrato de Mr. Cohn, o hebreu assimilado que, depois de ter sido 150% alemão, 150% vienense, 150% francês, ao cabo, deve dar-se conta, amargamente, de que on ne parvient pas deux fois, ele inverte a condição de refugiado e de apátrida que se encontrava vivendo, para propô-la como paradigma de uma nova consciência histórica. O refugiado que perdeu todo direito e cessa, porém, de querer-se assimilar a qualquer preço a uma nova identidade nacional para contemplar lucidamente a sua condição, recebe, em troca de uma segura impopularidade, uma vantagem inestimável: “a história não é mais, para ele, um livro fechado, e a política deixa de ser privilégio dos Gentios. Ele sabe que o banimento do povo hebraico na Europa foi seguida imediatamente do banimento da maior parte dos povos europeus. Os refugiados expulsos de país em país representam a vanguarda de seus povos”.
            Convém refletir no sentido dessa análise que, hoje, cinquenta anos distante, não perdera nada de sua atualidade. Não apenas o problema se apresenta na Europa e fora dela com igual urgência, mas, no declínio do Estado-Nação, atualmente impossível de deter, e na corrosão geral das categorias jurídico-políticas tradicionais, o refugiado é, talvez, a única figura do povo pensável em nosso tempo e, ao menos até nos aproximarmos da complementação do processo de dissolução do Estado-Nação e de sua soberania, a única categoria na qual, hoje, consentimos vislumbrar as formas e limites de uma comunidade política que vem. É possível, assim, que se quisermos estar à altura do trabalho absolutamente novo que temos à frente, devemos decidir abandonar sem reserva os conceitos fundamentais com que até então representamos os sujeitos do político (o homem e o cidadão com seus direitos, mas também o povo soberano, os trabalhadores etc.) e reconstruir nossa filosofia política a partir dessa única figura.

            2. A primeira aparição dos refugiados como fenômeno de massa tem lugar no fim da primeira guerra mundial, quando a queda do Império russo, austro-húngaro e otomano e a nova ordem criada por tratados de paz perturba profundamente a ordem demográfica e territorial da Europa centro-oriental. Em pouco tempo, mudam-se de seus países 1.500.000 russos brancos, 700.000 armênios, 500.000 búlgaros, 1.000.000 de gregos, centenas de milhares de alemães, húngaros e romenos. A essa massa em movimento, vai aderida a situação explosiva determinada pelo fato de que cerca de 30% das populações dos novos organismos estatais criados por tratados de paz sob o modelo do Estado-Nação (por exemplo, na Iugoslávia e na Tchecoslováquia) constituíam minorias que deveriam ser tuteladas por meio de uma série de tratados internacionais (isto é, Minority Treaties), que remanesceram,  grande parte, letra morta. Alguns anos mais tarde, a lei racial na Alemanha e a guerra civil na Espanha disseminaram pela Europa um novo e importante contingente de refugiados.
            Nós estamos habituados a distinguir entre apátridas e refugiados, mas nem então, nem hoje, a distinção é simples como pode parecer à primeira vista. Desde o início, muitos refugiados, que não eram tecnicamente apátridas, preferiram tornar-se a retornar à pátria (é o caso dos hebreus polacos e romenos que se encontravam em França ou na Alemanha no fim da guerra e, hoje, dos perseguidos políticos e daqueles para os quais o retorno à pátria significa a impossibilidade de sobreviver). De outra parte, os refugiados russos, armênios e húngaros foram prontamente desnacionalizados pelo novo governo soviético, turco etc. É importante notar como, a partir da primeira guerra mundial, muitos Estados europeus começaram a introduzir leis que permitiam a desnaturalização e a desnacionalização dos próprios cidadãos: primeiro a França, em 1915, em relação a cidadãos naturalizados de origem “inimiga”; em 1922, o exemplo foi seguido pela Bélgica, que revogou a naturalização dos cidadãos que haviam cometido atos “antinacionais” durante a guerra; em 1926, o regime fascista editou uma lei análoga com respeito aos cidadãos que se mostravam “indignos da cidadania italiana”; em 1933, foi a vez da Áustria e, dessa maneira, até 1935, quando a Lei de Nuremberg divisara os cidadãos alemães de pleno direito e cidadãos sem direitos políticos. Essa lei – e a apatrídia de massa em que resultou – marcam uma reviravolta decisiva na vida do Estrado-nação moderno e a sua definitiva emancipação das noções ingênuas de povo e de cidadão.
            Não é este o lugar para refazer a história dos diversos comitês internacionais por meio dos quais os Estados, a Sociedade de Nações e, mais tarde, a ONU procuraram fazer frente ao problema dos refugiados, desde o Bureau Nansen para os refugiados russos e armênios (1921), ao Alto Comissariado para os refugiados da Alemanha (1936), ou do Comitê intergovernamental para os refugiados (1938), passando pela International Refugee Organization da ONU (1946), até chegar ao atual Alto Comissariado para os refugiados (1951), cuja atividade não possui, segundo o estatuto, caráter político, mas apenas “humanitário e social”. O essencial é que, uma vez que os refugiados não representam mais casos isolados, mas um fenômeno de massa (como ocorre entre as duas guerras, e novamente agora), tanto essas organizações quanto os próprios Estados, malgrado a solene invocação dos direitos inalienáveis do homem, mostram-se absolutamente incapazes não apenas de resolver o problema, mas também, simplesmente, de enfrentá-lo de maneira adequada. A inteira questão fora, dessarte, transferida às mãos da polícia e das organizações humanitárias.

            3. As razões dessa impotência não estão apenas no egoísmo e na limitação dos aparatos burocráticos, mas na ambiguidade das próprias noções fundamentais que regulam a inscrição do nativo (isto é, da vida) no ordenamento jurídico do Estado-nação. H. Arendt intitulara o capítulo quinto do livro sobre o Imperialismo, dedicado ao problema dos refugiados, O declínio do Estado-nação e o fim dos direitos do homem. Necessário tentar levar a sério essa formulação, que vincula indissoluvelmente as sortes dos direitos do homem e do Estado nacional moderno, de modo que o ocaso deste implica necessariamente a obsolescência daqueles. O paradoxo é aquele em que a própria figura – o refugiado – que deveria encarnar por excelência os direitos do homem marca, ao contrário, a crise radical desse conceito. “A concessão dos direitos do homem”, escreve H. Arendt, “baseada sobre a suposta existência de um ser humano como tal, arruína não apenas aqueles que a professavam, mas se encontraram, pela primeira vez, defronte a homens que haviam verdadeiramente perdido qualquer outra qualidade e relação específica, exceto o puro fato de serem humanos”. No sistema do Estado-nação, os assim chamados direitos sagrados e inalienáveis do homem mostram-se desprovidos de qualquer tutela no momento em que não é mais possível configurá-los como direitos dos cidadãos de um Estado. Isso está implícito, se bem se reflete, na ambiguidade do próprio título da declaração de 1789: Declaração dos direitos do homem e do cidadão, em que não é claro se os dois termos nomeiam duas realidades distintas, ou formam, ao revés, uma díade na qual o primeiro termo é, em verdade, sempre, e desde logo, conteúdo do segundo.
            Que algo como o puro homem em si não possua, no ordenamento político do Estado-nação, qualquer espaço autônomo, isso é evidente ao menos pelo fato de que o estatuto do refugiado fora sempre considerado, ainda que no melhor dos casos, como uma condição provisória que deve conduzir ou à naturalização ou à repatriação. Um estatuto estável do homem em si é inconcebível no direito do Estado-nação.

            4. É tempo de deixar de olhar a Declaração dos direitos de 1789 até hoje como proclamação de valores eternos, meta-jurídicos, tendentes a vincular o legislador a seu respeito, e de considerá-la segundo aquela que é a sua função real no Estado Moderno. Os direitos do homem representam, em verdade, sobretudo a figura originária da inscrição da vida nua natural na ordem jurídico-política do Estado-nação. Aquela vida nua (a criatura humana) que, no Ancien Régime, pertencia a Deus e, no mundo clássico, era claramente distinta (como zoé) da vida política (bios), entra agora em primeiro plano no controle do Estado e se torna, por assim dizer, o seu fundamento terreno. Estado-nação significa: Estado que faz da natividade, do nascimento (isto é, da vida nua humana) o fundamento da própria soberania. Este é o sentido (sequer demasiadamente oculto) dos primeiros três artigos da Declaração de 1789: somente porque se inscrevera (arts. 1º e 2º) o elemento nativo no coração de toda associação política, essa pode unir inextricavelmente (art. 3º) o princípio da soberania à nação (em conformidade com o étimo, natio significa, na origem, simplesmente “nascimento”).
            As Declarações de direitos serão agora vistas como lugar em que se efetua a passagem da soberania régia de origem divina à soberania nacional. Essas asseguram a inserção da vida na nova ordem estatal que deverá suceder à queda do Ancien Régime. Que, por meio disso, o súdito se transforme em cidadão, significa que o nascimento – isto é, a vida nua natural – torna-se, aqui, pela primeira vez (com uma transformação cujas consequências biopolíticas apenas agora somos capazes de começar a mensurar) o portador imediato da soberania. O princípio de natividade e o princípio de soberania, separados no Ancien Régime, unem-se a partir de agora irrevogavelmente, a fim de constituir o fundamento do novo Estado-nação. O engodo implícito é que o nascimento torna-se imediatamente nação, de modo que não possa haver qualquer intervalo entre os dois momentos. Os direitos são, pois, atribuídos ao homem apenas na medida em que ele é pressuposto imediatamente evanescente (ainda que não deva vir a lume como tal) do cidadão.

5. Se o refugiado representa, no ordenamento do Estado-nação, um elemento de tal sorte inquietante é, sobretudo, porque ao estilhaçar a identidade entre homem e cidadão, entre natividade e nacionalidade, coloca-se em crise a invenção originária da soberania. Singulares exceções a esse princípio, naturalmente, sempre existiram: a novidade do nosso tempo, que ameaça o Estado-Nação em seu próprio fundamento, é que porções crescentes da humanidade não são mais representáveis em seu interior. Por isso, ao passo em que é destruída a velha trindade Estado-Nação-Território, o refugiado, essa figura aparentemente marginal, merece ser, ao revés, considerado como a figura central de nossa história política. É bom não esquecer que os primeiros campos foram constituídos na Europa como espaço de controle para os refugiados, e que a sucessão campo de internação-campo de concentração-campo de extermínio representa uma filiação perfeitamente real. Uma das poucas regras a que os nazistas se ativeram no curso da “solução final” era a de que apenas depois de terem sido completamente desnacionalizados (mesmo daquela cidadania de segunda classe que os aguardava logo depois da lei de Nuremberg), os hebreus e os ciganos podiam ser enviados aos campos de extermínio. Quando os seus direitos não são mais direitos do cidadão, agora o homem é verdadeiramente sacro, no sentido que esse termo tem no direito romano arcaico: entregue à morte.

            6. Necessário libertar resolutamente o conceito de refugiado daquele de direitos do homem, e cessar de considerar o direito de asilo (de resto, hoje em vias de drástica contração nas legislações dos Estados europeus) como a categoria conceitual na qual se inscreve o fenômeno (um olhar sobre o recente Tesi sul diritto d’asilo de A. Heller mostra que, hoje, isso não pode senão conduzir a confusões inoportunas). O refugiado é considerado por aquilo que é, ou seja, nada menos que um conceito-limite que põe em radical crise os princípios do Estado-nação e, conjuntamente, permite conduzir o campo a uma renovação categorial contemporaneamente inadiável.
            No entretempo, em verdade, o fenômeno da assim chamada imigração ilegal nos países da Comunidade Européia assumira (e assumirá cada vez mais nos próximos anos, com os previstos 20 milhões de imigrantes dos países da Europa Central) caracteres e proporções tais a justificar plenamente esse deslocamento de perspectiva. Tanto que os Estados industrializados estão, hoje, defronte a uma massa estavelmente residente de não-cidadãos, que não podem nem querem ser naturalizados ou repatriados. Esses não-cidadãos adensaram uma nacionalidade de origem, mas enquanto preferem não usufruir da proteção de seu Estado, vêm a encontrar-se, como os refugiados, na condição de “apátrida de fato”. T. Hammar propusera usar, para esses residentes não-cidadãos, o termo denizens, que tem o mérito de mostrar como o conceito citizen pode ser desde logo inadequado para descrever a realidade político-social dos Estados modernos. De outra parte, os cidadãos dos Estados industriais avançados (tanto nos Estados Unidos como na Europa) manifestam, através de uma crescente deserção em face das instâncias codificadas de participação política, uma propensão evidente a transformarem-se em denizensb imiscuindo-se, ao menos em certas faixas sociais, em uma zona de potencial indistinção. Paralelamente, em conformidade com o conhecido princípio segundo o qual a assimilação substancial em presença de diferenças formais exaspera o ódio e a intolerância, crescem as reações xenófobas e a mobilização defensiva.

            7. Antes que reabramos na Europa os campos de extermínio (o que está começando a ocorrer), é necessário que os Estados-nações encontrem coragem para colocar em questão o próprio princípio de inscrição da natividade e a trindade Estado-nação-território em que isso se funda. Não é fácil indicar desde logo os modos pelos quais isso poderá concretamente advir. Basta, aqui, sugerir uma possível direção. É sabido que uma das opções examinadas pela solução do problema de Jerusalém é que essa se torna, contemporaneamente, e sem repartição territorial, capital de dois diferentes organismos estatais. A condição paradoxal de recíproca extraterritorialidade (ou melhor, de aterritorialidade) que isso implica poderia ser generalizada como o modelo de novas relações políticas internacionais. Ao invés de dois Estados nacionais separados por incertas e ameaçadas fronteiras, seria possível imaginar duas comunidades políticas insistentes sobre uma mesma região, e ambas em êxodo, articuladas entre si por uma série de recíproca extraterritorialidade, na qual o conceito-chave não seria mais o ius do cidadão, mas o refugium do indivíduo. Em sentido análogo, podemos ver a Europa não como uma impossível “Europa das nações”, na qual já se entrevê a catástrofe a curto prazo, mas como um espaço aterritorial, ou extraterritorial, no qual todos os residentes dos Estados europeus (cidadãos e não-cidadãos) estariam em posição de êxodo ou de refúgio, e o estatuto de europeu significaria o estar-em-êxodo (obviamente ainda imóvel) do cidadão. O espaço europeu demarca, assim, um intervalo irredutível entre o nascimento e a nação, no qual o velho conceito de povo (que, como sabido, é sempre minoria) poderia reencontrar um sentido político, contrapondo-se decisivamente àquele de nação (que, até então, o teria indevidamente usurpado).
            Esse espaço não coincide com qualquer território nacional homogêneo, nem com a resultante topográfica, mas age sobre eles, perfurando-os e articulando-os topologicamente, como uma garrafa de Leyden ou uma banda de Moebius, em que externo e interno se indeterminam. Nesse novo espaço, a cidade européia, entrando em relação de recíproca extraterritorialidade, reencontraria a sua antiga vocação de cidade do mundo.
            Em uma espécie de terra de ninguém entre o Líbano e Israel, encontram-se, hoje, quatrocentos e vinte e cinco palestinos expulsos do Estado de Israel. Esses homens constituem certamente, segundo a sugestão de H. Arendt, “a vanguarda de seu povo”. Porém, não necessariamente, ou não apenas, no sentido segundo o qual esses formariam o núcleo originário de um futuro Estado nacional que resolveria o problema palestino provavelmente de modo tão insuficiente quanto Israel resolvera a questão hebraica. Ao contrário, a terra de ninguém em que esses são refugiados retroagira, já, sobre o território do Estado de Israel, perfurando-o e alterando-o de maneira que a imagem daquela pequena montanha coberta de neve é tornada mais interior que qualquer outra região de Heretz Israel. Apenas em uma terra em que os espaços dos Estados serão estados desse modo perfurados e topologicamente deformados, e nos quais o cidadão terá sabido reconhecer o refugiado que ele mesmo é, é pensável, hoje, a sobrevivência política dos homens.



[1] Tradução do original, em italiano, AGAMBEN, Giorgio. Al di là dei diritti dell’uomo. In: Mezzi senza fine: notte sulla politica. Torino: Bolatti Boringhieri, 1998, p. 20-29.
·· Professor do Curso de Direito do Centro de Ciências Sociais e Aplicadas da Fundação de Estudos Sociais do Paraná (CCSA/FESP) e advogado. Mestre em Filosofia e Teoria do Direito pelo Curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (CPGD/UFSC). Graduado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (FD/UFPR).

Giorgio Agamben e o mysterium disiunctionis

11 abril, 2010


Àqueles que desejem empreender uma pesquisa genealógica sobre o conceito de vida, Agamben alerta que, em nossa cultura, “esso non viene mai definito come tale”, mas articulado e dividido por meio de uma série de cesuras e oposições – como se, em nossa cultura, a vida fosse algo que não pudesse ser definido mas que, propriamente por isso, devesse sem articulado e dividido sem cessar.
            É o que encontramos nas páginas de De anima, de Aristóteles: quais as várias formas pelas quais o “viver” se diz. Ao invés de definir, de alguma forma, aquilo que é a vida, Aristóteles se limita a decompô-la graças ao isolamento de funções como a nutritiva para, depois, rearticulá-la em uma série de potencias ou faculdades distintas e correlatas como nutrição, sensação, pensamento, como expressão de seu procedimento de pensamento, que consiste em converter a questão “o que é?” em “através de que uma coisa qualquer pertence a outra coisa qualquer?”. Nesse sentido, de um elemento que vai ao fundo para servir de articulação à atribuição da vida aos seres ditos viventes, temos o isolamento da vida nutritiva – tão fundamental para as ciências ocidentais. Vemos essa separação ressoar em Bichat, em suas Recherches physiologiques sur la vie et la mort, quando distingue a vida animal (definida pela relação com um mundo externo) e uma vida orgânica (que não é outra senão uma sucessão habitual de assimilação e excreção), como a vida nutritiva de Aristóteles em seu percurso obscuro. Assim, Bichat falará que é como se em todo organismo superior convivessem dois animais: o de dentro (vida orgânica) e o de fora (vida animal).
            O que Agamben depreende é que a divisão da vida em vegetal e de relação, orgânica, animal e humana, passa, agora, ao interior do homem vivente como uma fronteira móvel e, sem essa última cesura, a própria decisão sobre o que é ou não humano não seria possível. Apenas porque uma coisa, como uma vida animal do homem, permanece separada no interior do homem, apenas porque a distância e a proximidade com o animal é misturada e reconhecida ainda mais no mais íntimo e vizinho, é possível opor o homem aos outros viventes e, também, organizar a complexa, e nem sempre edificante, economia de relações entre os homens e os animais.
            Se isso é verdade, seria hora de a própria questão do humano ser posta de maneira nova: não mais como a tradição, que pensa o homem como a conjunção e a articulação de um corpo e de uma alma, de um vivente e de um logos, de um elemento natural ou animal e de um elemento sobrenatural, social ou divino. Devemos, diz Agamben, começar a pensar o homem como aquilo que resulta da desconexão desses dois elementos, e investigar não o mistério metafísico da conjunção, mas o mistério prático e político da separação. Isso importa mais que tomar posição sobre valores e direitos humanos, e talvez mesmo a esfera de relações com o divino dependa mais daquela, mais obscura, que nos separa do animal.