Carta a um crítico severo, de Gilles Deleuze

30 janeiro, 2011


Deleuze e seus textos impossíveis de não amá-los. Carta a um crítico severo, surgido em 1973, posteriormente republicado como o primeiro dos textos de Pourparlers (ed. bras. Conversações, da Editora 34, com tradução de Peter Pál Pelbart), é um dos textos de Deleuze de que mais gosto. Leio-o como a experiência exemplar de uma certa ascese filosófica espinosana que parece habitar o coração do trabalho filosófico de Gilles Deleuze.
Por ascese, no entanto, devemos compreender algo diferente da negação de si; o momento em que se cria um si impessoal para si mesmo. Uma ascese filosófica que poderia ser encontrada nos últimos trabalhos de Michel Foucault, tão inspirados pelas pesquisas de Pierre Hadot: ascese como o trabalho de si sobre si mesmo.
Na Carta... persiste uma assinatura impessoal que parece marcar o ponto de viragem em que todo o pathos reativo, pessoal, subjetivo, que poderia impregnar uma carta endereçada a um desafeto – um crítico severo – torna-se um empreendimento afirmativo, positivo. Deleuze não se vitimiza, não procura lançar ardilosamente seu interlocutor a uma armadilha; ao contrário, Deleuze explica como construir um si, um corpo-sem-órgãos, talvez muito mais simplesmente que em Mil Platôs (“Como criar para si um corpo sem órgãos”).
Isso se deve a dois gestos filosóficos impessoais. Primeiro, a vagarosa e prudente desconstrução do argumento do ressentimento de seu interlocutor. Para além do conceito de corpo-sem-órgãos, derivado das leituras de Antonin Artaud, eis, aqui, outro motivo pelo qual chamo o gesto deleuziano total contido nesse texto de uma espécie muito singular de ascese: pelo menos desde os estóicos, conhecemos toda uma literatura que vincula ascese, como relação de si para consigo mesmo, e uma certa duração muito lenta no uso e na destruição do discurso do mestre. Uso do discurso do mestre no sentido de intermediação de uma relação de si para consigo, de criação de uma dobra de subjetivação impessoal no discípulo; destruição do discurso do mestre, porque a palavra do diretor das consciências – bem o vemos em Foucault –, não substitui ou supera essa relação de si para consigo.
Se Agamben estiver certo, e só se puder filosofar entre amigos, e sob a condição de a amizade significar uma espécie de condivisione (partilha) do mundo, eis um dos liames invisíveis entre as vidas filosóficas de Foucault e Deleuze, um conceito impessoal de ascese, especialmente espinosano (cf. Spinoza et le Problème de l’Expression, de Deleuze, nesse sentido) em Deleuze, é um conceito teórico, não-abstrato e potente, cuja genealogia Foucault busca reconstituir como política de si e da amizade entre os anos de 1978-1984. Em Foucault, a ascese é a operação prática de si capaz de dar forma a uma vida (Lebensform, Bíos etc.).
Apesar de Deleuze utilizar a todo momento a primeira pessoa do singular (“a maneira de me safar”, “minhas unhas”, “Meu livro sobre Bergson”, “Foi Nietzsche quem me tirou disso tudo”, etc.), o pessoal só retorna ao texto a fim de desagregar-se em si impessoal, em dobra subjetiva, em escritura sem sujeito que, ao dissolvê-lo, devolve o sujeito como um resto ao lado da máquina desejante. É apenas ao preço de desterritorializar o sujeito que, de um lado, anula-se o ressentimento ao pôr o desejo à frente da má-consciência.
Como segundo gesto filosófico, formando um duplo do gesto da prudência, aprofunda-se a ascese quando o si impessoal torna-se objeto de uma afirmação sem precedentes. Já não somos nós que atravessamos pela filosofia; com maior razão, a filosofia nos atravessa de um lado a outro e vai derramar-se além.
O si é a dobra interior do mundo; daí, provavelmente, a retomada de Leibniz e do conceito de mônada em Le pli : Leibniz et le barroque (ed. bras. A dobra, com tradução de Luiz B. L. Orlandi) ou o conceito de outro como um mundo possível já em Proust et les Signes, mas também mais tarde, em O que é a filosofia?. O sujeito envolve-se no mundo, do mundo, e nesse envolver-se, o reino da singularidade irredutível, a paixão da diferença, recomeçar o novo no cosmos como ressonância singular das séries disparatadas, dessemelhantes, dos signos no sujeito. E o sujeito, como o pensamento – vê-se bem em Diferença e Repetição, mas também na monografia sobre Proust –, constituem-se de com a violência dos signos. Assim, junto a Proust, mesmo o amor se torna uma conversa silenciosa; os signos desenvolvem-se no exterior e não requerem um sujeito senão a fim de afectá-lo; e essa afecção é o próprio pathos, a paixão em si mesma. O livro é o Fora; o outro é o Fora; o amor é o Fora que redobramos por dentro.
Ao tornar o afecto – da arte ou do outro, pouco importa – objeto de uma afirmação pura, e ao passo em que o campo de individuação que produz um sujeito joga consigo mesmo, varia, deixa passar algumas intensidades, bloqueia outras, seleciona as qualidades e os afectos segundo uma imanência que vive e ondula destruindo a iminência a cada vez que a assiste principiar, Deleuze torna a filosofia o campo do singular, de uma guerra de guerrilhas, de uma guerra sem batalha, em uma conversa intermédia: tal como um rizoma, sem começo e sem fim, envolvendo toda exterioridade.
Se assim for, a história da filosofia não pode permanecer a mesma; fazer história da filosofia implicaria uma perversão, uma traição – "uma enrabada ou, o que dá no mesmo, uma imaculada concepção", como zombava Deleuze. 
Nascimento sem mácula nem má-consciência, porque apropriar-se do absolutamente exterior – um conceito, um signo, uma imagem – não se faz sem envolvê-lo, já, na própria existência, sem jogar com as séries contingentes e plurais da diferença: eu, o outro, o si, o impessoal, o campo de individuações, o Fora, a diferença, a vontade de poder – princípio genealógico de toda diferença, inclusive do desejo, em Nietzsche. Assim, por dentro e por fora tornada objeto de uma afirmação singular, a única voz da diferença parece murmurar ao mundo em segredo: “Eu não lhe peço nada, mas gosto muito de você’.
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* Abaixo, segue Carta a um crítico severo, escrita por Deleuze, e publicada em 1973. 




Carta a um crítico severo
Gilles Deleuze

{ arquivo } - Você é encantador, inteligente, malevolente, quase ruim. Mais um esforço… afinal, a carta que você me manda, invocando ora o que se diz, ora o que você mesmo pensa, e os dois misturados, é uma espécie de júbilo pela minha suposta infelicidade. Por um lado, você diz que estou acuado, em todos os sentidos, na vida, no ensino, na política, que me tornei uma vedete imunda, que aliás isso não dura muito, e que não tenho saída. Por outro lado, você diz que eu sempre estive a reboque, que sugo o sangue e degusto os venenos de vocês, os verdadeiros experimentadores ou heróis, e que eu mesmo fico à margem, só observando e tirando proveito. Para mim não é nada disso. Já estou tão cheio de verdadeiros ou falsos esquizos que me converteria com prazer à paranóia. Viva a paranóia! O que você pretende me injetar com sua carta é um pouco de ressentimento (você está acuado, você está acuado, “confessa”…) e um pouco de má consciência (não tem vergonha, está a reboque…); se era só isso, não valia a pena me escrever. Você se vinga por ter feito um livro sobre mim. Sua carta está repleta de uma comiseração fingida e de uma real sede de vingança.
Primeiro, é bom lembrar, apesar de tudo, que não fui eu quem desejou este livro. Você diz porque quis fazê-lo: “Por humor, acaso, sede de dinheiro ou de ascensão social.” Não vejo como vai satisfazer todas essas coisas assim. Ainda uma vez, é problema seu, e desde o começo eu avisei que este livro não me concernia, que eu não o leria ou só o leria mais tarde, e como um texto referente exclusivamente a você. Você veio me ver pedindo não sei o que de inédito. E na verdade, só para agradá-lo propus uma troca de cartas; seria mais fácil e menos cansativo do que uma entrevista no gravador. Com a condição de que essas cartas fossem publicadas separadas de seu livro, como uma espécie de apêndice. Você já se aproveita disso para distorcer um pouco o nosso acordo, e me censurar por ter reagido como um oráculo, como uma velha Guermantes dizendo “havemos de escrever-lhe”, ou como um Rike recusando seus conselhos a um jovem poeta. Paciência!
É verdade que a benevolência não é o forte, em vocês. Quando eu já não souber amar e admirar pessoas ou coisas (não muitas), me sentirei morto, mortificado. Mas vocês, parece que nasceram completamente amargos, é a arte da piscadela, “comigo não… faço um livro sobre você, mas você vai ver…”. De todas as interpretações possíveis, em geral vocês escolhem a mais maldosa ou a mais baixa. Primeiro exemplo: eu gosto de Foucault e o admiro. Escrevi um artigo sobre ele. E ele sobre mim, onde está a frase que você cita: “Um dia talvez o século será deleuzeano”. Seu comentário: eles se jogam confete. Não passa pela sua cabeça que minha admiração por Foucault seja cômica, feita para divertir os que gostam de nós e enfurecer os demais. Um texto que você conhece explica essa malevolência inata dos herdeiros do esquerdismo: “Se tiver peito, tente pronunciar diante de uma assembléia esquerdista a palavra fraternidade ou benevolência. Eles se entregam com extrema aplicação ao exercício da animosidade sob todos seus disfarces, da agressividade e ridicularização a propósito de tudo e de todos, presentes ou ausentes, amigos ou inimigos. Não se trata de compreender o outro, mas de vigiá-lo”. Sua carta é isto: alta vigilância. Lembro de um cara da Fhar (Frente Homossexual de Ação Revolucionária) declarando numa assembléia: se a gente não estivesse aqui para ser a má consciência de vocês… Estranho ideal policialesco, o de ser a má consciência de alguém. Também para você, pareceria que fazer um livro sobre (ou contra) mim lhe dá algum poder sobre minha pessoa. Nada disso. Repugna-me tanto a possibilidade de ter má consciência como a de ser a má consciência dos outros.
Segundo exemplo: as minhas unhas, que são longas e não aparadas. No final da carta você diz que minha jaqueta de operário (não é verdade, é uma jaqueta de camponês) corresponde ao corpete plissado de Marilyn Monroe, e minhas unhas, os óculos escuros de Greta Garbo. E você me inunda com conselhos irônicos e maldosos. Já que você volta tantas vezes ao assunto das unhas, eu explico. Sempre dá para dizer que minha mãe as cortava, e que tem a ver com Édipo e a castração (interpretação grotesca, mas psicanalítica). Também dá para notar, observando a extremidade dos meus dedos, que me faltam as impressões digitais normalmente protetoras, de tal modo que tocar um objeto com a ponta dos dedos, e sobretudo um tecido, me dá uma dor nervosa que exige a proteção das unhas longas (interpretação teratológica e selecionista). Dá para dizer ainda, e é verdade, que o meu sonho é ser não invisível, mas imperceptível, e que compenso esse sonho com unhas que posso enfiar no bolso, pois nada me parece mais chocante do que alguém olhando para elas (interpretação psicossociológica). Enfim dá para dizer: “não precisa comer as unhas só porque são suas; se você gosta de unha, coma a dos outros, se quiser ou puder” (interpretação política, Darien). Mas você escolhe a pior interpretação: ele quer se singularizar, se fazer de Greta Garbo. De qualquer modo, é curioso que de todos os meus amigos nenhum jamais tenha notado minhas unhas, achando-as inteiramente naturais, plantadas aí ao acaso, como que pelo vento, que traz as sementes e não faz ninguém falar.
Chego então à sua primeira crítica, onde você diz e repete com todas as letras: você está cercado, você está acuado, confessa. Procurador geral! Não confesso nada. Já que se trata por sua culpa de um livro sobre mim, gostaria de explicar como vejo o que escrevi. Sou de uma geração, uma das últimas gerações que foram mais ou menos assassinadas com a história da filosofia. A história da filosofia exerce em filosofia uma função repressora evidente, é o Édipo propriamente filosófico: “Você não vai se atrever a falar em seu nome enquanto não tiver lido isto e aquilo, e aquilo sobre isto, e isto sobre aquilo.” Na minha geração muitos não escaparam disso, outros sim, inventando seus próprios métodos e novas regras, um novo tom. Quanto a mim, “fiz” por muito tempo história da filosofia, li livros sobre tal ou qual autor. Mas eu me compensava de outras maneiras. Primeiro, gostando dos autores que se opunham à tradição racionalista dessa história (e entre Lucrécio, Hume, Espinosa, Nietzsche, há para mim um vínculo secreto constituído pela crítica do negativo, pela cultura da alegria, o ódio à interioridade, a exterioridade das forças e das relações, a denúncia do poder…, etc.). O que eu mais detestava era o hegelianismo e a dialética. Meu livro sobre Kant é diferente, gosto dele, eu o fiz como um livro sobre um inimigo, procurando mostrar como ele funciona, com que engrenagens – tribunal da Razão, uso comedido das faculdades, submissão tanto mais hipócrita quanto nos confere título de legisladores. Mas minha principal maneira de me safar nessa época foi concebendo a história da filosofia como uma espécie de enrabada, ou, o que dá no mesmo, de imaculada concepção. Eu me imaginava chegando pelas costas de um autor e lhe fazendo um filho, que seria seu, e no entanto seria monstruoso. Que fosse seu era muito importante, porque o autor precisava efetivamente ter dito tudo aquilo que eu lhe fazia dizer. Mas que o filho fosse monstruoso também representava uma necessidade, porque era preciso passar por toda espécie de descentramentos, deslizes, quebras, emissões secretas que me deram muito prazer. Meu livro sobre Bergson me parece exemplar nesse gênero. E hoje tem gente que morre de rir acusando-me por eu ter escrito até sobre Bergson. É que eles não conhecem o suficiente de história. Não sabem o tanto de ódio que Bergson no início pôde concentrar na Universidade francesa, e como ele serviu – querendo ou não, pouco importa – para aglutinar todo tipo de loucos e marginais, mundanos ou não.
Foi Nietzsche, que li tarde, quem me tirou disso tudo. Pois é impossível submetê-lo ao mesmo tratamento. Filhos pelas costas é ele quem faz. Ele dá um gosto perverso (que nem Marx nem Freud jamais deram a ninguém, ao contrário): o gosto para cada um de dizer coisas simples em nome próprio, de falar por afetos, intensidades, experiências, experimentações. Dizer algo em nome próprio é muito curioso, pois não é em absoluto quando nos tomamos por um eu, por uma pessoa ou um sujeito que falamos em nosso nome. Ao contrário, um indivíduo adquire um verdadeiro nome próprio ao cabo do mais severo exercício de despersonalização, quando se abre às multiplicidades que o percorrem. O nome como apreensão instantânea de uma tal multiplicidade intensiva é o oposto da despersonalização operada pela história da filosofia, uma despersonalização de amor e não de submissão. Falamos do fundo daquilo que não sabemos, do fundo de nosso próprio subdesenvolvimento. Tornamo-nos um conjunto de singularidades soltas, de nomes, sobrenomes, unhas, animais, pequenos acontecimentos: o contrário de uma vedete. Comecei então a fazer dois livros nesse sentido vagabundo, Diferença e repetiçãoLógica do sentido. Não tenho ilusões: ainda estão cheios de um aparato universitário, são pesados, mas tento sacudir algo, fazer com que alguma coisa em mim se mexa, tratar a escrita como um fluxo, não como um código. E há páginas de que gosto em Diferença e repetição, aquelas sobre a fadiga e a contemplação, por exemplo, porque são da ordem do vivido bem vivo, apesar das aparências. Não fui muito longe, mas já era um começo.
E depois houve meu encontro com Félix Guattari, a maneira como nós nos entendemos, completamos, despersonalizamos um no outro, singularizamo-nos um através do outro, em suma, nos amamos. Isso deu O anti-Édipo, e foi um novo progresso. Eu me pergunto se uma das razões formais para a hostilidade que às vezes surge contra esse livro não é justamente por ter sido feito a dois, uma vez que as pessoas gostam de brigas e partilhas. Então tentam separar o indiscernível ou fixar o que pertence a cada um de nós. Mas visto que cada um, como todo mundo, já é muitos, isso dá muita gente. E sem dúvida não se pode dizer que O anti-Édipo esteja livre de todo aparato de saber: ele ainda é bem acadêmico, bastante comportado, e não chega a ser a pop’filosofia ou a pop’análise sonhadas. Mas surpreende-me o seguinte: os que acham sobretudo que este livro é difícil são aqueles com mais cultura, principalmente cultura psicanalítica. Eles dizem: o que é isso, o corpo sem órgãos, o que quer dizer máquinas desejantes? Ao contrário, os que sabem pouca coisa, os que não estão envenenados pela psicanálise têm menos problemas, e deixam de lado o que não entendem sem preocupação. É por isso que dissemos que este livro, pelo menos de direito, se dirigia a pessoas com idade entre quinze e vinte anos. É que há duas maneiras de ler um livro. Podemos considerá-lo como uma caixa que remete a um dentro, e então vamos buscar seu significado, e aí, se formos ainda mais perversos ou corrompidos, partimos em busca do significante. E trataremos o livro seguinte como uma caixa contida na precedente, ou contendo-a por sua vez. E comentaremos, interpretaremos, pediremos explicações, escreveremos o livro do livro, ao infinito. Ou a outra maneira: consideramos um livro como uma pequena máquina a-significante; o único problema é: “isso funciona, e como é que funciona?” Como isso funciona para você? Se não funciona, se nada se passa, pegue outro livro. Essa outra leitura é uma leitura em intensidade: algo passa ou não passa. Não há nada a explicar, nada a compreender, nada a interpretar. É do tipo ligação elétrica. Corpo sem órgãos, conheço gente sem cultura que compreendeu imediatamente, graças a seus próprios “hábitos”, graças à sua maneira de se fazer um. Essa outra maneira de ler se opõe à anterior porque relaciona imediatamente um livro com o Fora. Um livro é uma pequena engrenagem numa maquinaria exterior muito mais complexa. Escrever é um fluxo entre outros, sem nenhum privilégio em relação aos demais, e que entra em relações de corrente, contra-corrente, de redemoinho com outros fluxos, fluxos de merda, de esperma, de fala, de ação, de erotismo, de dinheiro, de política, etc. Como Bloom, escrever na areia com uma mão, masturbando-se com a outra – dois fluxos, em que relação? Nós, o nosso fora, pelo menos um deles, foi uma certa massa de gente (sobretudo jovens) que estão fartos da psicanálise. Eles estão “acuados”, para falar como você, pois continuam mais ou menos se analisando, já pensam contra a psicanálise, mas pensam contra ela em termos psicanalíticos. (Por exemplo, tema de gracejo íntimo, como é que os rapazes do Fhar, as moças do movimento de Libertação das Mulheres – MLF, e muitos outros ainda, podem fazer análise? Isso não os incomoda? Acreditam nisso? O que será que procuram no divã?) É a existência dessa corrente que tornou possível O anti-Édipo. E se os psicanalistas, dos mais estúpidos aos mais inteligentes, têm em geral uma reação hostil a esse livro, embora mais defensiva do que agressiva, evidentemente não é só por causa do seu conteúdo, mas em razão dessa corrente que vai crescer, de pessoas que estão cada vez mais cheias de se ouvirem dizendo “papai, mamãe, Édipo, castração, regressão”, e de se verem propor da sexualidade em geral, e da sua em particular, uma imagem propriamente imbecil. Como se diz, os psicanalistas deverão levar em conta as “massas”, as pequenas massas. Recebemos belas cartas nesse sentido, vindas de um lumpemproletariado da psicanálise, muito mais belas que os artigos da crítica.
Essa maneira de ler em intensidade, em relação com o fora, fluxo contra fluxo, máquina com máquinas, experimentações, acontecimentos em cada um nada têm a ver com um livro, fragmentação do livro, maquinação dele com outras coisas, qualquer coisa…, etc., é uma maneira amorosa. Ora, você leu exatamente assim. E o trecho da sua carta que me parece belo, maravilhoso, até, é onde você conta como o leu, como o usou para os seus próprios fins. Mas que pena! Infelizmente você volta rápido demais às recriminações: você não vai se sair dessa, vamos ver vocês no segundo tomo, estamos de olho, só esperando… Não, não é nada disso, já temos nossa posição. Vamos continuar porque gostamos de trabalhar juntos. Mas não será de modo algum uma continuação. Com a ajuda do fora, faremos uma coisa tão diferente em termos de linguagem e de pensamento, que as pessoas que nos “esperam” serão obrigadas a dizer: eles ficaram completamente loucos, ou são safados, ou foram incapazes de continuar. Decepcionar é um prazer. Nem de longe queremos nos fingir de loucos, mas enlouqueceremos à nossa maneira e na nossa hora, não precisam nos empurrar. Sabemos que O anti-Édipo primeiro tomo ainda está cheio de concessões, entulhado de coisas ainda eruditas e que se parecem com conceitos. Pois bem, mudaremos, já mudamos, vamos de vento em popa. Alguns pensam que vamos continuar no mesmo embalo, houve até quem acreditasse que formaríamos um quinto grupo psicanalítico. Que pobreza! Nós sonhamos com outras coisas, mais clandestinas e mais alegres. Não faremos mais concessão alguma, já que necessitamos menos delas. E sempre encontraremos aliados que queiramos ou que nos queiram.
Você me julga acuado. Não é verdade: nem Félix nem eu nos tornamos os subchefes de uma subescola. E se alguém usa assim O anti-Édipo, que se dane, visto que já estamos bem longe. Você me quer acuado politicamente, reduzido a assinar manifestos e petições, “super-assistente social”: não é verdade, e entre todas as homenagens que se deve a Foucault, está a de ter por si só e pela primeira vez quebrado as máquinas de cooptação, e de ter tirado o intelectual de sua situação política clássica de intelectual. Vocês, por sua vez, ainda estão na provocação, na publicação, nos questionários, nas confissões públicas (“confessa, confessa…”). Sinto chegar, ao contrário, a idade próxima de uma clandestinidade meio voluntária meio imposta, que será o mais jovem desejo, inclusive político. Você me quer acuado profissionalmente, porque dei aula por dois anos na Universidade de Vincennes, e porque dizem, diz você, que ali não faço mais nada. Você acredita que enquanto eu dava aula estava na contradição, “recusando a posição do professor mas condenado a ensinar, retomando a rédea quando todo mundo a havia largado”: não sou sensível às contradições, não sou uma bela alma vivendo o trágico de sua condição. Falei porque o desejava muito, fui apoiado, injuriado, interrompido, por militantes, falsos loucos, loucos de verdade, imbecis, gente muito inteligente, era uma farra viva em Vincennes. Isso durou dois anos, foi o suficiente, é preciso mudar. Então, agora que já não falo nas mesmas condições, você diz ou conta que se diz que já não faço nada, e que estou impotente, gorda rainha impotente. Não é menos falso: eu me escondo, continuo fazendo minhas coisas com o mínimo de gente possível, e você, em vez de me ajudar a não virar vedete, vem pedir que eu preste contas, e me deixa a opção entre a impotência e a contradição. Por último, você me quer acuado no plano pessoal, familiar. Aí você não voa muito alto. Explica que tenho uma mulher, e uma filha que brinca de boneca e triangula pelos cantos. E acha isso engraçado em relação a O anti-Édipo. Você também poderia acrescentar que tenho um filho logo em idade de se analisar. Se você acredita que são as bonecas que produzem o Édipo, ou o casamento por si só, é estranho. Édipo não é uma boneca, é uma secreção interna, é uma glândula, e nunca se luta contra as secreções edipianas sem lutar contra si mesmo, sem experimentar contra si mesmo, sem se tornar capaz de amar e de desejar (em vez da vontade choramingona de ser amado, que nos conduz, todos, ao psicanalista). Amores não-edipianos não é pouca coisa. E você deveria saber que não basta ser celibatário, sem filhos, bicha, membro de grupos, para evitar Édipo, já que há o Édipo de grupo, homossexuais edipianos, MLF edipianizado…, etc. Testemunha disso é um texto, “Os árabes e nós”, que é ainda mais edipiano que minha filha.
Portanto, não tenho nada a “confessar”. O sucesso relativo de O anti-Édipo não nos compromete, nem a Félix nem a mim; de certo modo não nos diz respeito, já que estamos em outros projetos. Passo então à sua outra crítica, mais dura e mais penosa, que consiste em dizer que sempre estive a reboque, poupando meus esforços, me aproveitando das experimentações dos outros, bichas, drogados, alcoólatras, masoquistas, loucos…, etc, degustando vagamente suas delícias e seus venenos sema jamais arriscar nada. Você usa contra mim um texto que eu mesmo escrevi, onde pergunto como não tornar-se um conferencista profissional sobre Artaud, um amador mundano de Fitzgerald. Mas o que sabe você de mim, uma vez que eu acredito no segredo – quer dizer, na potência do falso – mais do que nos relatos que revelam uma deplorável crença na exatidão e na verdade? Se não me mexo, se não viajo, tenho como todo mundo minhas viagens no mesmo lugar, que não posso medir senão com minhas emoções, e exprimir da maneira mais oblíqua e indireta naquilo que escrevo. E minha relação com as bichas, os alcoólatras ou os drogados, o que isso tem a ver com o assunto, se obtenho em mim efeitos análogos aos deles por outros meios? O que interessa não é saber se me aproveito do que quer que seja, mas se tem gente que faz tal ou qual coisa em seu canto, eu no meu, e se há encontros possíveis, acasos, casos fortuitos, e não alinhamentos, aglutinações, toda essa merda em que se supõe que cada um deva ser a má consciência e o inspetor do outro. Eu não devo nada a vocês, nem vocês a mim. Não há nenhuma razão para que eu frequente seus guetos, já que tenho os meus. O problema nunca consistiu na natureza deste ou daquele grupo exclusivo, mas nas relações transversais em que os efeitos produzidos por tal ou qual coisa (homossexualismo, droga, etc.) sempre podem ser produzidos por outros meios. Contra os que pensam “eu sou isto, eu sou aquilo”, e que pensam assim de maneirapsicanalítica (referência à sua infância ou destino), é preciso pensar em termos incertos, improváveis: eu não sei o que sou, tantas buscas ou tentativas necessárias, não-narcísicas, não-edipianas – nenhuma bicha jamais poderá dizer com certeza “eu sou bicha”. O problema não é ser isto ou aquilo no homem, mas antes o de um devir inumano, de um devir universal animal: não tomar-se por um animal, mas desfazer a organização humana do corpo, atravessar tal ou qual zona de intensidade do corpo, cada um descobrindo as suas próprias zonas, e os grupos, as populações, as espécies que o habitam. Porque não teria direito de falar da medicina sem ser médico, já que falo dela como um cão? Por que razão não falar da droga sem ser drogado, se falo dela como um passarinho? E por que eu não inventaria um discurso sobre alguma coisa, ainda que esse discurso seja totalmente irreal e artificial, sem que me peçam meus títulos para tal? A droga às vezes faz delirar, por que eu não haveria de delirar sobre a droga? Para que serve essa sua “realidade”? Raso realismo, o de vocês. E então por que você me lê? O argumento da experiência reservada é um mau argumento reacionário. A frase de O anti-Édipo que eu prefiro é: não, nós nunca vimos esquizofrênicos.
Afinal de contas, o que há em sua carta? Nada seu mesmo, exceto o tal belo trecho. Um conjunto de rumores, diz-que-diz, apresentados com agilidade como se viessem dos outros ou de você mesmo. Talvez você a quisesse assim, uma espécie de pastiche de boatos ressoando entre si. É uma carta mundana, bastante esnobe. Você me pede um “inédito”, depois me escreve maldades. Minha carta, por causa da sua, parece uma justificação. Assim não se vai longe. Você não é um árabe, é um chacal. Você faz de tudo para que eu me transforme nisso que você critica, pequena vedete, vedete, vedete. Eu não lhe peço nada, mas gosto muito de você – para pôr fim aos rumores.



"L'eterna rivolta", a história de Antonio Negri

27 janeiro, 2011







* Obs.1: Esse vídeo, infelizmente ainda sem legendas em português, é um documentário do History Channel sobre a vida política e a obra do Filósofo italiano Antônio Negri.
* Obs.2: Hugo Albuquerque, do blog O Descurvo, escreveu um belo texto sobre esse documentário, os anos de chumbo italianos e sua relação com o caso Cesare Battisti aqui.
Up-to-date >> encontrei uma versão com legendas em inglês. Um tanto imperialista, mas quebra o galho da multidão. 8-)

-- @_mdcc

Tradução: "Ética", de Giorgio Agamben

18 janeiro, 2011




Ética
Giorgio Agamben
  
* Tradução de Murilo Duarte Costa Corrêa••


O fato do qual todo discurso sobre ética deve partir é aquele de que não existe nenhuma essência, nenhuma vocação histórica ou espiritual, nenhum destino  biológico que o homem deveria cumprir ou realizar. Essa é a única razão pela qual qualquer coisa como uma ética pode existir: pois é claro que se o homem fosse ou devesse ser esta ou aquela substância, este ou aquele destino, não haveria qualquer experiência ética possível – não haveria senão deveres a cumprir.
Isso não significa, todavia, que o homem não seja ou não deva ser algo, que ele esteja condenado ao nada e possa, por isso, decidir a seu bel-prazer ser ou deixar de ser, atribuir-se tal ou qual destino (niilismo e decisionismo encontram-se nesse ponto). O homem, com efeito, é e deve ser algo, mas esse “algo” não é uma essência, nem mesmo, propriamente, uma coisa: é o simples fato de sua existência como possibilidade ou potência. Porém, é precisamente porque tudo se complica que a ética se torna efetiva. Posto que o ser mais próprio do homem é ser sua própria possibilidade ou potência, somente por essa razão (dito de outro modo, na medida em que seu ser mais próprio em certo sentido lhe falta, pode não ser; é, portanto, privado de fundamento, e ele nunca está já em sua posse), ele é e se sente em dívida. O homem, ao ser potência de ser e de não, é sempre já endividado, tem sempre má consciência antes mesmo de ter cometido qualquer ato culpável.
Tal é o único conteúdo da antiga doutrina teológica do pecado original. A moral, por seu lado, interpreta essa doutrina em referência a um ato culpável que o homem cometera e impede, assim, sua potência ao dirigi-la ao passado. A manifestação do mal é mais antiga e mais original que todo ato culpável, e não repousa senão sobre o fato de que sendo e não devendo ser senão sua possibilidade ou potência, em certo sentido o homem falta a si mesmo; ele deve apropriar-se dessa falta, ele deve existir como potência. Assim como Perceval no romance de Chrétien de Troyes, ele é culpado daquilo que lhe falta, de uma falta que ele não cometera.
É porque a ética não dá lugar algum ao arrependimento, é porque a única experiência ética (que, como tal, não soubera ser nem uma tarefa, nem uma decisão subjetiva) consiste em ser sua (própria) potência, em deixar existir sua (própria) possibilidade; em expor, dito diferentemente, em cada forma sua própria amorfia e em cada ato sua própria inatualidade.
A única forma do mal que pode haver reside, ao contrário, no fato de decidir permanecer em dívida vis-à-vis da existência, de se apropriar da potência de não como uma substância ou um fundamento exterior à existência; ou então (e é este o destino da moral), reside em considerar a potência mesma, que é o modo mais próprio de existência do homem, como uma falta que lhe convém em toda circunstância reprimir.

• Tradução da versão francesa. AGAMBEN, Giorgio.La communauté qui vient. Théorie de la singularité quelconque. Tradution par Marilène Raiola. Paris : Éditions du Seuil, 1990, p. 47-49. [Original italiano: AGAMBEN, Giorgio.La comunità che viene. Turin: Einaudi, 1990.] "Ética" é o capítulo XI da citada obra de Agamben.

•• Professor de Filosofia do Direito e Teoria Geral do Direito, vinculado ao Departamento de Propedêutica do Direito da Faculdade de Direito do Centro Universitário Curitiba (DPDFDC/UNICURITIBA); Professor do Curso de Direito do Centro de Ciências Sociais e Aplicadas da Fundação de Estudos Sociais do Paraná (CCSA/FESP-PR). Doutorando em Filosofia e Teoria Geral do Direito (USP). Mestre em Filosofia e Teoria do Direito (UFSC). Graduado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Os Militares e a Comissão da Verdade

16 janeiro, 2011



Chega-me hoje a pergunta de uma pessoa que não quis identificar-se acerca de um post que gerou um debate relativamente amplo, “Uma disputa pelos signos”, em que comento rapidamente as recentes declarações do General José Elito e do Deputado Federal Jair Bolsonaro (PP-RJ) acerca da Comissão da Verdade. Escrevo um post para respondê-la não porque seja preciso, mas porque a questão me parece de todo exemplar, e sob diversos aspectos. Além disso, porque a pergunta do leitor anônimo – como toda boa pergunta - tem o dom da singeleza; o leitor disparou:

“Mas, enfim, você não acha justo que os militares também tenham direito de participar da Comissão da Verdade? Ou a verdade é uma coisa de momento, o momento de quem manda?”

Tento responder rapidamente. No Brasil, o texto do PNDH-3 (Programa Nacional de Direitos Humanos, em PDF), no Eixo orientador VI, “Direito à Memoria e à Verdade”, Diretriz n. 23, “Reconhecimento da memória e da verdade como Direito Humano da cidadania e dever do Estado”, determina a criação de uma comissão da verdade a fim de atender ao Objetivo Estratégico I: “Promover a apuração e o esclarecimento público das violações de Direitos Humanos praticadas no contexto da repressão política ocorrida no Brasil no período fixado pelo artigo 8º do ADCT da Constituição, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional”.
A primeira das ações programáticas consiste em designar  “Grupo de Trabalho composto por representantes da Casa Civil, do Ministério da Justiça, do Ministério da Defesa e da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, para elaborar, até abril de 2010, projeto de lei que institua Comissão Nacional da Verdade, composta de forma plural e  suprapartidária, com mandato e prazo definidos, para examinar as violações de Direitos Humanos praticadas no contexto da repressão política no período mencionado” (PNDH-III, p. 173).
Isto é, segundo a previsão do PNDH-III, tão criticado por Bolsonaro, não há participação direta nem de vítimas, nem de militares, como antagonistas entrincheirados na disputa pela verdade; em acréscimo, o PNDH-III prevê a participação de instâncias governamentais plurais, suprapartidárias, representantes da Casa Civil da Presidência da República, do Ministério da Justiça, do Ministério da Defesa, da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, do presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, criada pela Lei nº 9.140/95 e de representante da sociedade civil, indicado por esta Comissão Especial.
 Visto isso, logo se conclui que não apenas há participação institucional dos militares (institucional, não classista e “paritária” como parece querer Bolsonaro), via Ministério da Defesa, como ainda há expressa previsão para que haja colaboração entre o Grupo de Trabalho chamado de Comissão da Verdade e Grupo de Trabalho instituído pela Portaria nº 567/MD, do Ministro de Estado da Defesa, criada por sugestão da AGU acerca do caso Araguaia – caso pelo qual, aliás, o Brasil sofreu recente condenação junto à Corte Interamericana de Direitos Humanos.
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Portanto, a(s) resposta(s) ao prezado leitor anônimo é (são):
(1) Em uma democracia, os militares tem tanto direito de participar da comissão da verdade quanto as vítimas, mas nunca como classe. Em uma democracia, o governo eleito representa a todos, incluídos os militares, servidores públicos, profissionais da iniciativa privada, políticos, artistas etc.
(2) Se os militares, ou ex-militares, a exemplo de Bolsonaro, não se sentem representados, e querem a participação direta de clubes da aeronáutica, navais e do exército - como se fosse plausível a participação de entidades de classe enquanto tais -, é porque, naturalmente, ainda não compreenderam o que signfica democracia. Isso, por si só, já deveria ser suficiente par estarmos cônscios da fragilidade das instituições democráticas no Brasil;
(3) A verdade não é coisa de momento, mas, ao menos desde Nietzsche, de perspectiva. Isso não significa relativizar a verdade a fim de aceitar qualquer coisa. A única verdade aceitável é aquela vista por múltiplos olhos. Colocar a questão “Serão esses os olhos de A ou de B ?”, como faz Bolsonaro, é indiciária de uma má-compreesão até mesmo do significado liberal de democracia e de suas instituições;
(4) A verdade está, sim, inexoravelmente enredada nas tramas do poder; no entanto, ser ou não parte do governo não importa tanto quanto ter o monopólio de produzir os signos ou reverter seu significado. O poder atravessa a totalidade do campo social (para ficarmos com um breve conceito de Foucault), de sorte que essa disputa sobre os signos é tão nossa quanto de Bolsonaro, Ives Gandra Martins, Dilma Rousseff, os assassinados do Araguaia ou os massmedia.
(5) Finalmente, como tal, a verdade não é nada que possa ser tocada pelo relato histórico. Isso, no entanto, não deve impedir-nos de tentar elaborá-la coletivamente, tanto quanto possível. O impossível, deixemos para o desejo e para o Real, que, no fundo, são uma só e mesma coisa.
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Direito e Ditadura: videoteca

12 janeiro, 2011




O PET-Direito/UFSC publicou há pouco uma coleção com os vídeos gravados durante o Seminário Direito & Ditadura, organizado pelo PET no fim de outubro de 2010, e do qual tive o prazer de participar junto a amigos queridos como Alexandre Nodari, Flávia Cera, Pádua Fernandes, Alexandre Morais da Rosa, dentre outros.

Como convite a que os leitores do Navalha os assistam e se deixem perder um pouco por esses documentos, vinculo acima o vídeo da apresentação que fiz com o casal de amigos Flávia-Nodari, com saudosos abraços aos dois.

Alexandre Nodari fala sobre “A censura como instrumento da guerra psicológica: o caso 'O Rei da Vela'"; Flávia Cera fala sobre “Fantasia de liberdade: o corpo na encruzilhada autoritária”;e meu tema foi "A memória como murmúrio da multidão".

Da videoteca, indico fortemente os seguintes encontros:
5. E todos os demais, a escolher, aqui.

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Uma disputa sobre os signos

11 janeiro, 2011


Hoje pela manhã, chega-me o e-mail de um amigo de São Paulo com o artigo de Jair Bolsonaro, intitulado “Comissão da Inverdade”, saído hoje na Folha de São Paulo, um dos jornais diários de maior tiragem no Brasil.
Nele, Bolsonaro, que além de Deputado Federal pelo Partido Progressista do Estado do Rio de Janeiro é Capitão da Reserva do Exército, queixa-se de uma suposta manobra da esquerda brasileira consistente em tentar “inverter o papel dos militares”; queixa-se, ainda, da ausência de representantes das forças armadas nas comissões de verdade e de sua nomeação pela Presidenta da República, “logo ela, uma das atrizes principais dos grupos armados daquele período”, escreve Bolsonaro. Por isso, continua o autor, “Ninguém pode acreditar na imparcialidade dessa comissão”, que segue as regras do que chama de “democracia dos companheiros”.
Não bastassem as declarações do general José Elito Siqueira, ministro-Chefe do GSI, devidamente rechaçadas por Pádua Fernandes, declarações como as de Bolsonaro revelam uma enraizada incompreensão de História do Brasil (no repetido e sempre rebatido argumento paroxístico de que o Golpe de 64 foi essencialmente democrático), História Política e das Instituições (ao afirmar que houve clamor nacional antes do Golpe e um consenso nacional por anistia depois), e bem assim de Direito e Legislação (ao afirmar a absoluta amplitude dos diplomas anistiadores pós-79) – só para exemplificar alguns dentre os muitos enganos históricos, lógicos, políticos e jurídicos do texto de Vossa Excelência, o deputado Bolsonaro.
A fundar a impressionante raccolta de disparates, o texto que vai assinado por Bolsonaro – e a julgar pelo profundo conhecimento de história que demonstra, não me impressionaria se, de fato, Bolsonaro o tivesse escrito ou ditado a alguém – a teoria conspiratória de que a ex-esquerda armada, que teria transformado o Brasil em um satélite soviético se pudesse, tenta, por intermédio da Comissão da Verdade, inverter a figura dos militares.
Em menos de uma semana, dois sujeitos, que hoje tomam parte em instituições pretensamente democráticas, resolvem despojar-se dos deveres implicados por suas funções institucionais para lembrar, de uma forma ou de outra, que “a democracia brasileira nada mais é do que o resultado dos ‘20 anos de ordem e progresso’” comtiano do período militar, segundo Bolsonaro. Esso já parece ser suficiente para fazer sintoma social.
Tal sintoma pode fazer-nos perceber que a democracia brasileira contemporânea é atravessada de um lado a outro por uma disputada acerca do valor dos signos e da valência das imagens. No entanto, a esquerda “terrorista”, como quisera Bolsonaro, que chegou ao poder no Brasil, chegou ao poder pelo voto popular, não pelo Golpe, como os terroristas de Estado da “Revolução” de 1964. O discurso performativo de Bolsonaro exalta a democracia nacional conseguida ao preço da perseguição, da tortura e do assassinato de civis por agentes do Estado. Assim, a democracia brasileira não passaria de uma continuidade das instituições autoritárias do período militar. Democracia e ditadura, na leitura de Bolsonaro, não teriam sofrido qualquer solução de continuidade.
Assim, Bolsonaro parece fazer crer, por um lado, que a democracia é o último desenvolvimento de um golpe de Estado; por outro, que o Golpe de Estado constituiu a condição de possibilidade da democracia contemporânea. De fato, como quisera Bolsonaro, a verdade está para o militar assim como a fé está para o cristão. A verdade só se atinge pela crença infundada, e o paraíso, pela vigorosa negação de si mesmo, como as contradições performativas de Vossa Excelência dão a ver.
* Para ler o derrisório texto de Bolsonaro na folha de São Paulo, clique aqui. (Bizarramente,  no site institucional das FAB).
** Segue abaixo “Dois Demônios”, texto também saído hoje na Folha, da autoria de Vladimir Safatle.
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@_mdcc




Os delírios de pensar a terra: para ler “Périclès et Verdi”

06 janeiro, 2011


"L’universel n’a jamais couru ni nagé, mais fait les mouvements de la nage sur le sable sec, et ceux de la course sur place, parce qu’il ne s’occupe que des fins. Tout autre est l’acte de la raison singulière qui saut dans l’immanence de la vie, parce qu’elle se donne des mobiles". (Gilles Deleuze, Périclès et Verdi, p. 21-22).

Deleuze-Châtelet
        Pode parecer paradoxal que Deleuze, que na década de oitenta já havia escrito os dois grossos volumes de Capitalismo e Esquizofrenia com Guattari, venha a ocupar-se, em 1988, de um racionalista como François Châtelet (1925-1985). Chamado pelo Collège International de Philosophie para compor a última das mesas redondas dedicadas à morte do amigo e filósofo da história, Deleuze encontra na recusa châteletiana de Deus e de toda transcendência um dos mais interessantes ateísmos tranqüilos depois de Nietzsche.
      Châtelet realiza seus estudos de Filosofia na Sorbonne, e ali entra em contato com Deleuze pela primeira vez, bem como com grupos da esquerda trotskista; tal contato será constituinte de sua projeção como filósofo da história bem assim como filósofo político. No pós-Maio de 1968, Châtelet passa a trabalhar juntamente com Michel Foucault e Gilles Deleuze na implantação do Departamento de Filosofia da Universidade de Vincennes (Paris-VIII), que Châtelet dirigirá por aproximadamente dez anos; em 1983, colaborará com a criação do Collége International de Philosophie, vindo a falecer em 1985.
         Isso seria suficiente para explicar o interesse de Deleuze pela filosofia de Châtelet. Foucault morrera em 1984; Châtelet, em 1985, e Deleuze parece, aos poucos, refazer a trajetória filosófica dos amigos e intercessores, seja como forma de conjurar sua morte, seja como modo de lhes render uma homenagem póstuma por sua ressonância na própria filosofia deleuziana.
        Contudo, para um filósofo para o qual a criação de cada conceito constitui um acontecimento absolutamente singular, como Deleuze, e para quem a literatura e a escritura poderiam funcionar como um relógio que adianta, outras explicações seriam igualmente plausíveis.
    Nesse sentido, não deve passar despercebido de que modo a noção foucaultiana de “dobra”, desenvolvida paralelamente na monografia sobre Foucault (1986), antecipa uma preocupação com o conceito de dobra em Le pli: Leibniz et le barroque (1988). Por outro lado, Deleuze é repetidamente apresentado como um historiador da filosofia incomum, que não acredita em recenseamentos conceituais, mas que engendra no seio da história da filosofia a diferença finalmente emancipada do conceito em geral, da abstração e das formas decaídas da identidade; isto é, a história da filosofia deleuziana responde ao chamado de recolocar sob uma forma nova, sob outras determinações, o ser do problemático – daí a marcante liberdade expressiva da filosofia deleuziana. 
Ainda que nos limitemos a falar de Deleuze como monografista, Périclès et Verdi é um texto frequentemente esquecido, reputado menor em sua bibliografia. Talvez por Châtelet não ter alcançado a celebridade de Foucault, ou p texto ter exatas vinte e oito páginas, o que constituiria mais um ensaio que propriamente uma monografia sobre a filosofia de Châtelet. Se a idéia de dobra, em Foucault, é tão importante a ponto de ter podido ser estendida e repensada a partir de Leibniz alguns anos mais tarde, talvez não fosse despropositado recuperar o Périclès et Verdi deleuziano a fim de estimar que sorte de antecipações o ensaio monográfico sobre Châtelet – com todas as peculiaridades de um Deleuze a fazer História da Filosofia – engendra.

Imanência, Potência, Razão
Ao afirmar que, para Châtelet, ato e razão constituem o mesmo, Deleuze (1988, p. 09) indica a intranscendência singularizante do racionalismo châteletiano.  Assim como Nietzsche, Châtelet não pensa a existência ou a morte de Deus como um problema, mas, sim, como as condições para pensar os verdadeiros problemas. Contra as outrecuidances (presunções, pretensões, insolências) das transcendências, o pensamento de Châtelet é humilde e, portanto, terreno. Segundo Deleuze (1988, p. 07), “Jamais uma filosofia se instalara mais firmemente sobre um campo de imanência”. 
        A singularidade do racionalismo aristotélico de Châtelet pode ser estimada precisamente a partir das relações Potência-Ato; a recusa de Deus e de toda transcendência afasta o aristotelismo de Châtelet do tomismo, aproximando-o do que Deleuze chama de um certo “fascínio” pela Potência, pelo homem como potência e matéria.
A passagem da potência ao ato, a um ato que é a própria razão, não constitui uma faculdade, mas antes um processo, a atualização de uma potência ou a formação de uma matéria (Deleuze, 1988, p. 09). Criam-se processos de racionalização a cada vez que estabelecemos relações humanas com uma matéria qualquer. Eis o que faz com que o ato “enquanto relação” seja “sempre política” (Idem, loc. cit.).  A potência, por sua vez, constitui uma certa passividade, uma receptividade inumana imanente ao homem, um pathos indissociável do próprio ato: “exercido ou submetido, o poder não é apenas a atividade da existência social do homem sem ser também a passividade de sua existência natural” (Deleuze, 1988, p. 11).
      Châtelet reencontra em Marx os temas da Razão e de sua irracionalidade, e Deleuze afirma que a suposição de uma Razão pura constituiria, segundo Châtelet, uma impolidez metafísica, uma outrecuidance, isto é, para Châtelet, sinônimo de transcendência. É entre os gregos, e essencialmente na Atenas de Péricles, que Châtelet se encontraria com Foucault; Atenas, portanto, não significaria o advento de uma razão eterna, universal e teológica, mas “o acontecimento singular de uma racionalidade provisória, notável” (Deleuze, 1988, p. 17).

Universal, singular
    O racionalismo empírico e plural de Châtelet assenta-se em uma dupla negação do universal; primeiro, do universal como o que seria capaz de explicar qualquer coisa; segundo, a inexistência do universal como tal – só existiriam singularidades. Precisamente essas duas fórmulas “O universal nada explica; ao contrário, é ele quem deve ser explicado” e “o universal não existe, só há singularidades” terão ressonância mais tarde em Qu’est-ce que la philosophie (1991), livro que, como atestado por François Dosse (Gilles Deleuze e Félix Guattari, biografia cruzada, Artmed, 2010), fora majoritariamente escrito por Deleuze, embora tenha contado também com a assinatura de Félix Guattari. As quatro ilusões que envolvem o plano de imanência (Deleuze; Guattari, 1991, p. 50 e ss.) parecem mimetizar a recusa châteletiana dos universais. 
       Em Périclès et Verdi, Deleuze (1988, p. 19) conceitua: “A ‘singularidade’ não é o individual, é o caso, o acontecimento, o potencial, ou antes, a repartição de potenciais em uma dada matéria”; mesmo os indivíduos mais insignificantes, continua Deleuze, não passariam de “um tal campo de singularidades que não recebe seu nome próprio senão das operações que empreende sobre si e na vizinhança [...]” (Idem, loc. cit). 
      Para Châtelet, os processos de atualização e singularização são chamados de “decisão”, em oposição aos universais da comunicação, da reflexão etc., que esboçam movimentos unicamente abstratos e, portanto, irreais. Produzir movimentos reais passa a ser a questão; atualizar os potenciais, decidir, racionalizar torna-se, então, singularizar. Sua filosofia passa a ser, assim, uma filosofia da decisão como movimento natural de singularização. 
       Tal produção material e molecular de movimento e singularização, Châtelet encontra na ópera de Giuseppe Verdi. Segundo Deleuze, a vizinhança musical faz recordar que a razão não possuiria uma função representativa, mas atualizadora das relações entre homem e matéria sonora, em que as qualidades sonoras e suas combinações tornam sensível toda a superfície do corpo.
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