A rebelião da memória: os afetos da ordem e uma outra ordem dos afetos

23 novembro, 2012




Para #DesarquivandoBr

24.11.2012 – A data assinala o segundo aniversário da sentença da Corte Interamericana de San José da Costa Rica, que condenou o Brasil no caso Gomes Lund e outros vs. Brasil a uma série de obrigações positivas decorrentes de obrigações internacionais em matéria de Direitos Humanos, fundamentadas na Convenção Americana de Direitos Humanos. Eis o que move jornalistas, blogueiros, juristas, historiadores, filósofos, pesquisadores, intelectuais e outros a nos mobilizarmos uma vez mais, atendendo à convocação de Niara de Oliveria, a fim de trazer a público, por meio do projeto Desarquivando o Brasil, as questões que, a nosso ver – embora capitais no contexto democrático brasileiro contemporâneo –, permanecem em aberto em relação ao recente passado autoritário brasileiro e seu acerto de contas ainda hoje inconcluso.
           De minha parte, não farei nenhum balanço das políticas transicionais dos últimos anos; com a Comissão Nacional da Verdade – que, frisemos, visa a responder à necessária busca da verdade, imposta pela sentença da CADH no caso Araguaia –, e com a instalação de comissões estaduais análogas país afora, o que se espera é que tenhamos, ao cabo dos trabalhos, um relatório detalhado sobre as violações de direitos humanos cometidas pelo Estado e pelo aparato civil de apoio à ditadura militar brasileira (1964-1985, por convenção histórica).
            Meu papel, no entanto, é outro; o de lançar uma hipótese que afronta o fundo de boa parte dos discursos oficiais e não-oficiais negacionistas. Tais discursos possuem um amplo espectro, indo desde a simples negação (já escrevi sobre isso aqui e aqui) até a pura e simples afirmação do anacronismo da questão dos espectros ditatoriais na democracia contemporânea brasileira.
            Esta última assertiva – a do anacronismo do problema, da ditadura como um evento histórico delimitado no espaço-tempo e incomunicável com a atualidade – carrega-nos rapidamente à afirmação do primeiro negacionismo e ao seu imobilismo aparentemente pragmático. Da afirmação de que “não é preciso lembrar”, torna-se fácil passar à afirmação radicalmente negacionista de que “nada há para lembrar”, nada teria acontecido. O perigo do discurso puramente histórico, despido de toda preocupação genealógica com o real de que a história deve deixar-se penetrar, consiste precisamente na possibilidade de estabelecer o real violentamente e por meio dos discursos oficiais. O discurso histórico está sempre na iminência de ser capturado pelos dispositivos de poder vigentes, pelo Estado e por suas instituições, que visam, por definição, à estabilidade seja qual for o preço.
    Atualmente, toda a Teoria da Justiça de Transição estabelece-se ao redor da centralidade do conceito de memória, dos imperativos de lembrar e da distinção entre anistia, e seus efeitos jurídico-penais, e esquecimento. No entanto, a memória nunca aparece definida enquanto tal – sempre se está a falar de  um largo espectro conceitual que compreende desde as lembranças individuais até a constituição de uma memória social, ou coletiva, no sentido de Maurice Halbwachs, que, no entanto, se tudo – ou quase tudo – parece dizer a respeito de indivíduos, de um grupo ou de uma nação, bem como sobre seus valores constitutivos, rigorosamente nada é capaz de dizer sobre a própria memória como uma realidade independente.
            Ao mesmo tempo em que o conceito aparece como central a todas as outras dimensões pragmáticas das transições políticas e das concretas medidas de accountability que elas supõem – justiça, reparação, purgas e reformas institucionais, verdade pública – nada, a não ser uma prejudicialidade lógica da ordem do que é pressuposto e jamais enunciado até o fundo, parece capaz de justificar a essencialidade da memória às transições políticas.
            O lugar-comum segundo o qual as transformações institucionais só são possíveis através da memória mostra, finalmente, o fundamento infundado da centralidade do conceito de memória nessas transições. Mesmo Ruti Teitel criticará abertamente o caráter redentor de que se reveste a memória política em períodos de transição entre seus teóricos. É como se, no fim das contas, nem mesmo os teóricos da Teoria da Justiça de Transição soubessem muito bem do que estão a falar; intuem a centralidade da memória, mas confiam em sua autoposição empírica.
            Essa lacuna se deve, sobretudo, ao fato de que uma Teoria da Justiça de Transição é uma elaboração não apenas recente, mas sobretudo inacabada e, se quiser manter sua aspiração francamente imanente, deverá permanecer em construção e variação contínuas, atenta às singularidades em torno das quais se elabora. Disso deriva a circunstância, reconhecida por Paul Gready, da undertheorised nature da Teoria da Justiça de Transição, bem como da característica segundo a qual quase todos os seus conceitos são abertos às singularidades, parcialmente indefinidos e, quando elaborados, significados como decalques do empírico. Não à toa, praticamente todo escrito sobre justiça de transição baseia-se na metodologia, nem sempre apropriadamente empregada, de estudo de casos.
            É precisamente sobre esta lacuna teórica que me debruço atualmente: que ela seja empírica, a que se deve a centralidade do conceito de memória nas transições políticas e, sobretudo, de onde se extrai seu potencial transformador? Parece-me que um dos únicos pensadores capazes de dar a essa questão uma resposta adequada é Henri Bergson.
            Não é o caso de ensaiar uma resposta: ela é minha tese de doutorado, ainda por ser escrita. Trata-se, antes, de buscar hipóteses para responder àqueles que creem que realizamos uma discussão anacrônica – grandes teóricos (conservadores, é preciso dizer) de uma suposta consolidação democrática atemporal, “dada de uma vez por todas e toda de uma vez”, para parafrasear justamente a característica que Bobbio negava aos direitos humanos, essencialmente históricos.
            Mais profundamente, deveria preocupar-nos os efeitos imediatamente políticos e pragmáticos dessa lacuna teórica: não saber muito bem em que consiste a memória, reduzi-la à lembrança individual, à escritura histórica – que não está imune de girar no vácuo dos discursos monumentais –, à condição de fiador da coesão social de grupos nacionais pretensamente homogêneos, significa entregá-la à potência política negacionista. Sempre se pode dizer contra a vis memoralista: não há o que lembrar, a história está escrita, estamos reconciliados – argumento que, inclusive, apareceu na ADPF 153.
            Fala-se em memória todo o tempo e, no entanto, não há lugar para a memória pensada a partir de sua própria realidade, de uma imanência; não há espaço para compreender qual sua relação ontológica profunda com o aberto e com o devir: “como um futuro vem a ser”, é a grande questão colocada desde o fundo inconsciente da memória. Dinamismos virtuais sempre achatados por funções atuais que a memória deve desempenhar. Eis o que retira, à memória, sua realidade própria; ela se torna, então, memória antropológica estrita, quando, muito antes, é memória-mundo, memória-vida, memória-espírito (o que não significa nenhuma transcendência, mas a existência de um registro ontológico virtual), para dizê-lo em sentido bergsoniano.
          A mesma questão se coloca em termos sociológicos e políticos, isto é, respeitam à discussão presente das formas de vida. Como se pode compreender que jovens com seus vinte ou trinta anos de idade, que pouco ou sequer viveram a intensidade real da repressão, possam unir-se aos mais velhos, compreendendo profunda e inconscientemente o que significa pensar a democracia e os direitos humanos como um compromisso político m aberto e transgeracional? Como encontrar sentido no levantar-se contra...? Seria amor ao anacrônico, saudades do jamais vivido, déjà vu coletivo? Como explicar essa partilha mística que, pouco a pouco, penetra o seio social em camadas insuspeitáveis?
            Bergson, falando sobre as revoluções francesas, lembrava a afirmação de Émile Faguet, que dizia que a Revolução Francesa havia acontecido não pela igualdade e pela liberdade, mas por que se morria de fome. E por que, pergunta-se Bergson, de repente decidimos que não queremos mais morrer de fome? Por que nós, jovens de vinte e poucos anos, nos levantamos de repente? Por que, enfim, em determinado momento, quisemos trocar os afetos da ordem por uma outra ordem dos afetos?
            Porque a política, como a liberdade, é uma questão de profundidade, de desejo e de inconsciente; logo, por isso mesmo, de memória – virtual coalescente com o atual que o acaso deforma no devir: aparentemente, nada muda (atual), mas tudo mudou (virtual); “um prato racha”, dizia Deleuze, uma ruptura imperceptível acontece e nada mais é como antes; temos uma linha de fuga.
            Em Bergson, o devir e o aberto vêm da deposição inconsciente e infinitesimal dos eventos na memória do espírito (o virtual, a memória em profundidade). O místico – que Bergson afirma ser o grande homem de ação –, mas também o artista e o moralista – aquele que provoca intensas alterações de valores, que instaura, pelo exemplo, uma abertura na moralidade social – são indivíduos coextensivos a essa operação ontológica da memória mais profunda.
            É enganoso pensar o devir do ponto de vista individual: não é o devir que é produzido por indivíduos, são os indivíduos que dão vazão ao devir que, em Bergson, confunde-se com Deus – nada além de “um esforço criador” que não se encontra fora deste mundo, mas entranhado nele, seu motor inaparente sempre sujeito aos dinamismos do acaso –, o próprio elã vital, que não se confunde com a vida orgânica mais com a sombria operação do tempo universal. Nesse sentido, o místico, instrumento do Deus bergsoniano, é a prova de que o devir é da ordem das singularidades impessoais; não há sujeitos fixos, apenas ilusões superficiais, ficções de fixidez; em profundidade opera o acúmulo infinito das experiências e afetos na memória dessas individuações. Eis a personalidade bergsoniana atravessada pelo elã vital.
            Se os jovens hoje se levantam, se trocam os afetos da ordem por uma outra ordem dos afetos, é porque, de alguma forma – que, felizmente, não me cabe demonstrar aqui – há um encantamento rítmico de seus eus em profundidade e o daqueles que os precederam na luta pela transfiguração do real. Mas, para isso, é preciso saltar para o exterior dos códigos sociais, da ficção do indivíduo e do círculo teso da própria espécie e das tendências sociais e intelectuais naturais ao homem. Eis o super-homem bergsoniano, que já não adoece de normalidade, que dispensa a religião porque sente na profundidade de si o pulsar divino, o chamado heroico de um impulso criador que não oferecer garantias.
            Entre os jovens do Levante, a evocação dos nomes dos companheiros “tombados na luta” seguidos de um uníssono “- presente!” metaforiza nada mais do que o retorno e a rebelião de memórias profundas, inconscientes, de desejos selvagens incompreensíveis, mas cuja presença irresistível é evocada e aspirada pelo nome que contém um desejo inteiro. Todos vibram na mesma intensidade dessa presença, não raro inconsciente, mas sensível, da memória em comum: ponto de ressonância afetivo para, criando uma abertura no superficial, superar nossas formas de vida atuais (círculos sociais, individuais, inerentes à espécie), e saltar na ontologia: devolver ao virtual da memória o que ela tem de afeto real, de energia eficaz e de profunda liberdade de uma comunidade por vir, uma comunidade de eus profundos.

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Semadiáforo

15 novembro, 2012




No engarrafogamento
De um grande tráfego
Estasiadosdextáse
perceberemos, enfileirados,
Num'átimossobnossospésdançar
o imóvel
Corpo da terra
.
N’outro momento
Aberto o semáforo
- sanguessigno do progresso máximo
Mais rápido que o pensamento
As cabeças não mais vagamundam
E seguem
Em direção à morte
Que é a terra
de sua dança fora
E a cabeça,
de seu ritmo
subtraída,
No seu progresso imóvel,
Sem perceber
- se demora -
"Na morte
que nos carreguem"
/consentimos num fluxo exangue/
"a próxima
saída"-.

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Uma genealogia de "O Anti-Édipo"

09 novembro, 2012



É impossível não ler O Anti-Édipo deleuzo-guattariano sem se colocar em xeque a todo instante e sem sentir reverberar ao mesmo tempo no próprio corpo a intensa subversão que implica entrar em contato com os afetos do esquizofrênico - figura-limite, aquela "mais próximo do real", não o farrapo autístico em que as instituições quase sempre o convertem. O discurso sem estrutura, o vomitório de palavras, fatos e de todos os nomes da história. Aos poucos compreendemos que o gesto de Deleuze e Guattari é mais profundamente bergsoniano do que kantiano - embora a introdução à edição italiana de Mil Platôs sugira insistentemente o contrário. Fazer uma síntese das multiplicidades inconscientes, pois sim, mas com que positividade profunda e inaparente dotar essas multiplicidades inconscientes que, em Bergson, se confundem com o "espírito" - palavra bouleversante para qualquer materialista, para qualquer filósofo político, que crê que todo espírito seja ainda demasiadamente metafísico...? E, no entanto, por cada poro do imenso corpo furado antiedipiano sopra um ar bergsonista, uma energia espiritual indomável pela matéria que, por sua vez, não passa da interrupção e do limite atuais de um fluxo virtual incessante, que não para de jorrar (imanência, de manare, "jorrar"). Como então se definem as máquinas desejantes, senão como máquinas de cortes-fluxos arranjadas segundo três sínteses (produção, registro, consumo)? Eis aqui as operações mais físico-política (e, ao mesmo tempo, em um sentido exclusivamente bergsoniano, mais metafísicas) do desejo: profunda repulsão do eu, magmática recusa a adoecer de normalidade:

“[...]há estados mórbidos ou anormais que parecem somar-se à vida normal e enriquecê-la em vez de diminuí-la. Um delírio, uma alucinação, uma ideia fixa são fatos positivos. Consistem na presença, e não mais na ausência, de algo. Parecem introduzir no espírito certas maneiras novas de sentir e de pensar. Para defini-los é preciso considerá-los no que são e no que trazem consigo, em vez de ater-se ao que não são e ao que tiram” (Bergson, H. L'Énergie spirituelle, 1919, em um texto originalmente publicado em 1908).

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