A cada um, todos os sexos

25 fevereiro, 2013





“É sempre com mundos que fazemos amor. [...] Fazer amor não é fazer um, nem mesmo dois, mas cem mil”.

Deleuze & Gauttari


            1) Há poucos dias, um prostíbulo que funcionava em uma área de declarado interesse público federal foi desmantelado pela Polícia Civil de Altamira. Os números não são exatos, mas algo entre 14 e 17 mulheres, jovens menores de idade e travestis, provenientes da Região Sul do Brasil, com idades entre 16 e 23 anos, foram resgatadas. Eram mantidas em cárcere privado e sob regime de exploração sexual; é possível, aliás, que um esquema de tráfico de pessoas alimentasse a Boate Xingu. A Polícia apenas chegou ao local em virtude da denúncia de uma garota de 16 anos que, conseguindo fugir do local em que se encontrava encarcerada, procurou o Conselho Tutelar. A clientela habitual era formada por trabalhadores da Hidrelétrica de Belo Monte – que, longe de estar terminada, já mostra a ética perversa desenvolvimentista que lhe serve de fundo.

            2) Uma dentre as travestis, liberada, retornou ao seu Estado de origem e foi buscar auxílio em um órgão de proteção à mulher; seus “n” sexos imediatamente colocaram em questão a totalidade dos tecidos sociais. Os profissionais hesitavam em como se dirigir a ela; querendo ser educados, acolhedores, não sabiam se empregavam o masculino ou o feminino, perguntavam-se se um órgão de proteção à mulher tem competência para tutelar direitos de uma travesti; perguntavam-se, até mesmo, se a Lei Maria da Penha podia aplicar-se a ela; mesmo acolhendo-a, profundamente colocavam-se a questão “o que é uma travesti? – homem, mulher?”, mas jamais se colocaram a questão “o que é uma mulher?”.

            3) Eis a espessa realidade da sua figura que desperta mal-estares morais no seio de uma pulsão classificatória; sua figura híbrida explode os critérios comuns de designação sexual nas pessoas mais bem-intencionadas – é claro que órgãos de proteção de direitos humanos querem ajudar, mas, por vezes, não sabem como. Talvez não tenhamos sido educados para entender que somos portadores apenas de disjunções inclusivas: não mais masculino ou feminino, mas masculino e feminino e... n sexos”. O que acontece quando a alteridade mais radical nos interpela, uma diferença ontológica que não tem nada da abstração de uma Ideia, mas a espessura concreta de uma figura que cheira como um homem, apesar de estar coberto com perfume doce? Não fomos educados para lidar com essa diferença radical, mas com identidades, com mínimos de diferença, com classificações na zona das quais o estranho logo é transformado no outsider sem direitos. Para nós, nada de rapazes “de peitinho”, “bundinha”, “bolsa de couro e maquiagens” (que mais parecem ser extensões dos órgãos sexuais, como os caracteres sexuais secundários masculinos: pomo de adão, voz mais ou menos grave, queixo proeminente e maçãs do rosto, nem tanto). O que fazer quando “tudo isso estava ali, naquele corpo”?

            4) Esse pequeno caso é o sintoma de algo que se encontra em profunda mudança entre nós; do ponto de vista jurídico, passaremos, com o tempo, a termos direito a todos os sexos. Eis o que está em jogo: o nosso direito a todos os sexos. Os psicanalistas, em geral, ora hostilizam, ora suspeitam da ideia de uma mistura das repartições de gêneros; parecem amar as dualidades. No entanto, “homem” e “mulher” são significantes que podem ser interpretados como bem se entender para efeitos da união estável, bem como para efeitos da união civil - como alguns magistrados mais progressistas têm vindo a defender; ainda, quando se protegem seres humanos "de ambos os sexos "do fardo real da violência familiar (capaz de deixar marcas indeléveis) com base nas leis de proteção à mulher, é sinal de que está definitivamente aberta a báscula para um dos devires políticos mais potentes que devem encontrar no século XXI o esteio de sua efetuação histórica. Tornar-se-á um direito fundamental, imanente ao princípio da igualdade de gênero, o “Cada um tem direito a todos os sexos”. “A cada um seus sexos”, “A cada um todos os sexos”, eis o que está por baixo das lutas LGBTTTs, eis porque seus ativistas também lutam pelos direitos sexuais de heterossexuais, que cabem tão bem nas classificações - trata-se de delirar a igualdade e o bom senso, amplificar os mundos e a possibilidade de subverter as relações.

            5)  “Antes o delírio do bom senso do que sua banalidade”. A sexualidade está para muito além do familiarismo, na medida em que a energia sexual é objeto de investimento das massas, de grandes campos orgânicos e sociais. “[...] a sexualidade” – dizem Deleuze e Guattari – “está em toda parte: na maneira como um burocrata acaricia os seus dossiês, como um juiz distribui justiça, como um homem de negócios faz circular o dinheiro, como a burguesia enraba o proletariado etc. [...]. Hitler dava tesão nos fascistas. As bandeiras, as nações, os exércitos e os bancos dão tesão em muita gente”. Não falta nunca quem goze com a pica do mercado – e segundo as durações mais diversas: do day-trade-fucking (que, aqui, faz as vezes da trepada de uma noite só) ao long-term-screwing (quando o investidor, que, hoje, pode ser também o proletário, esposa uma empresa e faz de suas ações e distribuições de lucros a acionistas sua esperança de uma complementação de aposentadoria futura). Não cessamos de hipotecar os sexos por todos os lados – e, para isso, não nos importamos que os sexos efetuem, no mercado, sua potência não-antropomórfica. O mercado vive de capturá-la, de operar transformações na libido, de fazer-nos desejar servidão voluntária.

            6) No entanto, “Uma máquina revolucionária nada é enquanto não adquirir pelo menos tanta potência de corte e de fluxo quanto essas máquinas coercivas”. Se “É sempre com mundos que fazemos amor”, se o amor não passa pelo pessoal senão enquanto um ponto de conexão ou disjunção, é porque a escolha do que chamamos de objeto amado “[...]remete, ela própria, a uma conjunção de fluxos de vida e de sociedade que esse corpo, que essa pessoa interceptam, recebem e emitem, sempre num campo biológico, social, histórico, no qual estamos inicialmente mergulhados e com o qual comunicamos”, porque “nosso amor dirige-se a esta propriedade libidinal que o ser amado tem de se fechar ou abrir a mundos mais vastos, massas e grandes conjuntos” - lê-se no Anti-Édipo.

            7) Se na Crítica à filosofia do direito de Hegel, Marx afirmava que a diferença não está entre os sexos (as séries heterogêneas que derivam na ambivalência homem-mulher), mas entre o sexo humano e o inumano, é para implodir a representação antropomórfica do sexo, que permanecerá tão cara à psicanálise freudiana, e que permite definir cadeias heterogêneas de macho e fêmea designando a última como portadora de uma ausência constitutiva, reconduzindo tudo aos fantasmas e, em última análise, ao falo que lhe falta. Resultado dessa operação: falo transcendente e castração onipresente. Eis uma ideia que Deleuze e Guattari dizem ser perversa, demasiado humana, antropomórfica, proveniente da má-consciência, não do inconsciente. Tanto que “A representação molar antropomórfica culmina no que a fundamenta: a ideologia da falta”. E, todavia, o inconsciente ignora a falta, estende-se ao reino muito terreno das multiplicidades livres que designam a realidade positiva e plena dos objetos parciais. Eis o que aponta para muito além da Queer Theory, hoje: implodir a ideia da sexualidade e da questão de gênero como um mero constructo social ou cultural; encontrar sua raiz em uma ontologia da diferença radical que, informando domínios muito heterogêneos como o biológico, o natural, o social e o cultural, atravessam-nos integral e universalmente. Não  mais pensar o biológico em termos matemáticos (como determinismo), mas como campo virtual povoado de tendências e de efetuação de potenciais. Pensar e experimentar o sexo em conexão com o ontológico, o biológico e o político. Fazer do sexo e do gênero, em suas manifestações de múltiplos níveis, em sua diferença radical, o campo de batalha corporal, o dispositivo de variação biopolítica por excelência. Fazer o sexo colocar em questão o corpo e o gênero, a natureza e a cultura. Fazer variar as formas de vida e de existência, como Laerte Coutinho: o cross-dressing é uma estética da existência e uma forma de falar-verdadeiro que desafia o poder das disjunções exclusivas.

            8) Retornemos a uma questão simples a fim de definir seus contornos; perguntemo-nos, por um instante, o que uma travesti coloca em jogo diante de um órgão de Estado de proteção à mulher, quando vai defender seus direitos? Todas as separações, todas as distinções, todas as classificações que os múltiplos signos que seus sexos emitem e os infinitos mundos que a sua sexualidade envolve, e que ela nos abre; seu corpo masculino “com peitinhos”, e “bundinhas”, e “bolsas”, e “colares”, e “contas” é apenas o índice simbólico de algo maquínico que não cessa de atravessá-la, mas também não cessa de nos atravessar a todos, em comum e imperceptivelmente: “uma transexualidade microscópica em toda parte, que faz com que a mulher contenha tantos homens quanto o home, e o homem, mulheres, capazes de entrar, uns com os outros, umas com as outras, em relações de produção de desejo que subvertem a ordem estatística dos sexos” (Deleuze e Guattari, O Anti-Édipo). O que esses índices envolvem são máquinas desejantes, sexos inumanos, tanto reais quanto irrepresentáveis; mais do que quiseram Deleuze e Guattari, com sua fórmula esquizoanalítica revolucionária, já não se trata mais de bradar “a cada um, seus sexos!”, mas de interpretar todo direito relativo a gênero para além das divisões antropomórficas e binárias: kafkianamente diante da lei, “a cada um, todos os sexos”. Micropoliticamente, a tarefa da civilização continua a ser aquela que Simone de Beauvoir estabeleceu com precedência em O segundo sexo: “Não se nasce mulher, aprende-se a ser...”. Travestis, como os de Belo Monte, e cross-dressers, como Laerte, também ensinam coisas profundas com o simples fato de, não tendo nascido mulheres, terem aprendido a sê-lo: muito mais do que petinhos, e bundinhas, e bolsas, e colares de contas: trata-se da potência de descerrar um outro mundo por detrás deste, feito de platitudes tediosas e ambíguas; trata-se de descobrir, sob a pele e sob um corpo que não aguenta mais, o obscuro e imanente universo do desejo, em que já não fará mais sentido perguntar “como é seu nome?”, mas “quais são suas máquinas desejantes?”.




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@_mdcc, para A Navalha de Dalí: <http://murilocorrea.blogspot.com>



O oceânico e o poroso: Marina enredada no aberto

19 fevereiro, 2013





- A #Rede ou arreda?. Eis a posição maniqueísta e ideológica que alguns têm pretendido impor como se fosse, esta, a única forma de pensar o cenário político atual no Brasil em relação à articulação de forças políticas que reemerge com o novo partido capitaneado por Marina Silva, e que bem pode ser o esteio para sua candidatura à presidência em 2014. No entanto, os maniqueísmos em voga – politicamente tão perniciosos quanto metafisicamente impotentes para pensar o concreto, que só nos entrega mistos –, como governismo/antigovernismo, manirismo/antimarinismo, partidarismo/movimentismo, não servem para pensar Marina. Ela parece ser muito mais uma criatura de umbrais que de contradições – e não se trata, tampouco, de dizer que não as tenha...

     Forte e delicada, cosmopolita e regional, Marina e a #Rede querem fundir o mundo, mas sem fundá-lo: por isso, todo o neutro – que não é jamais imparcialidade negligente, mas ativo ensaio a fim de burlar o paradigma. Marina é barthesiana sem se dar conta quando diz que os partidos podem instrumentalizar os movimentos, não mais o inverso. Pode parecer desesperador ou arriscado, mas Marina está tentando amarrar um devir – quanto mais aguentará a democracia representativa partidária quando nossa indignação já não couber nas redes sociais? Que tudo isso possa parecer precipitado, pois partidos fisiológicos como PMDB, PSD, PPS e outros são bem-sucedidos eleitoral e estrategicamente, instrumentalizar um estado de coisas para justificar o impossível que um novo representa é usar as práticas que nós mesmos reprovamos com ideologia imobilista e conformadora.

        A #Rede é porosa, o movimento é oceânico – não há, aqui, nenhum pós-modernismo retórico capaz de levar um pouco de força às figurais tristes e mortuárias de Baumans e Edgares Morins. Há, sim, uma radicalização democrática em que os movimentos penetram e informam as estruturas institucionais – eis o que quer dizer o oceânico e o poroso. E, no entanto, há as contradições e os perigos, de que são portadores todos os seres de umbrais, todas as almas que se abrem; hoje, as duas principais parecem ser as seguintes: 1) a base de financiamento da #Rede, que tenta se purificar, defende o financiamento público de campanhas, mas não exclui expressamente empreiteiras ou empresas potencialmente poluidoras (em 2010, a campanha de Marina recebeu recursos da Andrade Gutierrez, da Camargo Corrêa e da Suzano, papel e celulose); 2) Há, também, certa grita acerca do fato de Marina professar a religião evangélica, o que não agrada em nada à esquerda e a alguns importantes movimentos sociais; para alguns, isso poderia colocar em dúvida a possibilidade de desejáveis avanços no campo dos direitos humanos no Brasil. Contudo, considerando o que o governo Dilma tem feito em matéria de direitos humanos no Brasil – sendo ela ateia ou católica inconfessa, isso prova indistintamente o argumento – me pergunto se Marina, que já expressou ter uma posição tão republicana em relação ao respeito ao princípio da laicidade do Estado, é, de fato, uma ameaça a avanços que, com o governo ateu, agnóstico, não-religioso ou, no limite, católico-envergonhado, de Dilma, sofreram certo retrocesso que só não foi maior em virtude de certo protagonismo do STF em alguns casos capitais – deixando muito a desejar em outros muitos, igualmente capitais. Isto é, tudo tende, nesse plano, a continuar o mesmo: são os movimentos sociais que devem impulsionar as demandas e furar as estruturas - caso elas não sejam suficientemente "porosas" para deixar passar o "oceânico" de que tais demandas provêm.

       Que, por ora, restem inconclusas essas duas grandes e precárias questões sobre Marina e sobre a #Rede, é preciso deixar ressoar, dela – como de qualquer outro movimento político –, aquilo que constitui abertura e radicalização democrática. Tentemos, em um sentido muito compreensivo – deitados ou não na #Rede de Marina –, efetuar aquilo que se insinua no por vir com nossas próprias forças – é a partir de nossas próprias trincheiras que travamos nossas guerras de guerrilha.

       Eis o que há de tardiana e inventivamente mimetizável  no gesto de Marina, porque é precisamente isso o que faz Marina, enredada em seus umbrais – como estamos, também nós, enredados nos nossos. A maior força de Marina é seu apelo, seu chamado heroico, obscuro e indeciso, como convém a toda alma mística. Não compreendam mal: como em Bergson, Marina é mística independentemente de conteúdos de crença; nesses termos, ela é, também, evangélica - como a própria democracia -, mas unicamente na medida em que seu apelo provém do universal, do imanente e do concreto que a própria vida, porosa e oceânica como o movimento ao qual Marina dirige seu apelo, descreve no fundo inaparente das formas de vida.

       Talvez eu não vote em Marina: isto não é um compromisso, nem uma declaração de voto. Esta não é, sequer, uma defesa de Marina; é uma defesa do aberto que – para além de todos os conteúdos acidentais e inessenciais – ela inspira: algo da ordem do supra-intelectual. E o élan vital que Marina nos faz aspirar, e que faz transpirar no corpo aberto do mundo e das formas de vida por vir, é divinamente ateu.

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