Por um movimento antidisciplinar dos movimentos

18 junho, 2013





         1. A estratégia de soberania - porrada, porrada e mais porrada eufemisticamente “não-letal”, prisões arbitrárias e para averiguação - deu errado. Seus ideólogos, do Estadão à Globo, de Alckmin a Pondé, da Folha a Haddad, rapidamente voltaram atrás numa demonstração do potencial deslegitimador de um movimento que, em profundidade, coloca em que xeque o próprio sistema político representativo, e o faz de maneira acéfala e horizontal. Numa guerra de posições, isso é uma vitória dos movimentos e uma derrota significativa dos “arrependidos”.

         2. Nos últimos dias, a mídia amenizou o discurso, mas isso não é uma vitória dos movimentos; é uma estratégia dos massmedia. Basta assistir ao GloboFuckingNews por alguns momentos para perceber o que está por baixo da espetacularização dos movimentos. Os analistas de primeira hora – que assistem a tudo pela tevê - não cessam de fazer proliferar clivagens e classificações; isto é, tentar individualizar e segmentar os corpos das ruas: há os manifestantes pacíficos, ordeiros, de bem, contra a corrupção (geralmente anti-Dilma e anti-PT) e os demais; há os manifestantes de início de protesto, que levam cartazes e faixas, que são da paz, que vestem branco, limpinhos, ordeiros, cívicos e os demais - vândalos, sujos e - esta teoria paranoide surgiu no DF, por exemplo – “provavelmente pagos para desestabilizar governos com atos de vandalismo e depredação dos patrimônios privado” (claro, este sempre vem antes) “e público”. Há os nacionalistas, que se enrolam imbecilmente em bandeiras, cantam o hino e acham que só ontem “o Brasil acordou para dar um basta"; de outro lado, os anarquistas antinacionalistas, os punks psolistas que não respeitam nada nem ninguém e só querem ver grassar a violência gratuita e injustificável.

         3. Essas tipificações infinitas e classificações morais são indiciárias de uma mudança concreta: alterou-se uma estratégia de violência baseada na soberania (porrada, repressão e espetáculo descontínuo de crueldade) para uma estratégica mais sutil de controle disciplinar (contínua e virtual), segundo a qual já não se torna mais necessário reprimir violentamente. Um pequeno e concreto exemplo de como tudo se passa - ao mesmo tempo, esse exemplo é o reflexo local de uma estratégia que, nas mídias, começa a circular globalmente. Ontem, no Rio, os que foram presos por atos de vandalismo o foram por policiais infiltrados no movimento. Ou seja, o Estado já não confronta: segue os fluxos, controla-os de perto e tenta axiomatizá-los; se não funciona, reprime quando eles estão na iminência de sair de controle. Eles "previnem a violência" virtual com violência efetiva.
         É na virtualidade do gesto que esse controle se aplica; não precisa depredar, basta esboçar o ato de pichação; não precisa atear fogo a um carro, basta que se ateie fogo a um monte de lixo. O controle e a repressão passam a ser exercidos localmente e têm por efeito criar uma clivagem disciplinar global entre “os bons manifestantes” – os que “são da paz”, se enrolam na bandeira do Brasil e cantam o hino – e os vândalos, criminosos, truculentos sem respeito por nada que devem ser reprimidos, inclusive em nome da suposta segurança dos demais manifestantes pacíficos. Esse sistema é em tudo análogo àquele que permite repartir os presos em presos de bom e mau comportamento; alunos disciplinados ou indisciplinados; doentes mentais que tomam seus remédios ou não.

         4. As televisões e jornais desdobram essas clivagens simbolicamente. Nas entrelinhas, dizem até como os manifestantes devem se vestir, como devem se portar, o que podem ou não fazer, ou dizer. O Batalhão de Choque espera ali próximo, mas invisível, já não os acompanha; por outro lado, há policiais militares que seguem os fluxos da multidão e reprimem os fluxos desorganizantes; os policiais de trânsito “fazem a segurança do movimento” – na verdade, ordenam que se vá mais ou menos rápido porque “já é hora de liberar a rua” - e isso ficou claro em Curitiba, tarefa dada a policiais à paisana.
         Junto com uma potência de desordem e contestação, surge um rígido código de ética e disciplina, mas ele não é auto-organizado e gerido pelos movimentos das ruas e sim pela violência sutil e insensível dos signos que vêm de fora. “Vista branco”, “faça protesto limpinho”, “faça protesto ordeiro”, “seja da paz”, “não provoque os policiais”, “não xingue a mãe do governador”, “não piche o palácio do governo”, “não beba antes, durante ou depois”, “cante o hino”, “peça isso”, “demande aquilo”.

         5. Como esse código disciplinar entra em um movimento? Pela via demasiadamente real do simbólico. Ontem à noite, no GloboFuckingNews, a jornalista Mariana Godoy defendia os manifestantes pacíficos afirmando que “estavam conscientes de que deveriam se manifestar pacificamente a fim de não deslegitimar o movimento”. Isso só mostra o grande medo, o grande terror que a multidão, que precisa ser contida ou disciplinada, inspira no poder. Ora, o que o mea culpa de Pondé, Jabor, Alckmin, Globo, Haddad e suas cáfilas jornalísticas e políticas provam é, justamente, que os movimentos se autolegitimam. Eles são o único e imanente critério de legitimidade, não o Estado, não a mídia, nem nenhuma forma crítica transcendental. Isso é pós-revolta, refechamento do aberto.
         A mídia tenta, desesperadamente, se reapropriar da cisão que os protestos de quinta-feira (14.06) criaram: surgiu um fosso entre a opinião pública real, das ruas, e a opinião pública que as mídias tentam axiomatizar. Por que as mídias passaram a apoiar os movimentos? Porque as ruas criaram essa cisão, explodiram as margens de crítica social que as mídias não cessam de tentar controlar, e as redes sociais – que também são um instrumento de controle e vigilância – terminaram por instrumentalizar essa explosão em uma geração de jovens de 14 a 28 anos desacostumada a ver televisão ou a ler jornais. “A única forma de vencê-los é, então, juntando-se a eles; fazendo-os passar para o nosso lado, passando para o lado deles”, teriam pensado as mídias.

         6. Eis toda a conversão das estratégias de soberania das primeiras semanas em estratégia disciplinar sutil e docilizadora – por essa razão, mais insidiosa e perigosa. O vocábulo revolta, repentinamente, saiu de circulação e se tornou “protesto” ou “manifestação”. O que está acontecendo nas ruas é, sem dúvida, uma acumulação primitiva de democracia, é impossível negar. E ela surge sobretudo sob a insígnia forte do direito à cidade e da reapropriação do espaço público; com as repressões, a pauta logo se altera para incluir, contra a soberania, a reapropriação do direito não apenas à livre manifestação, mas à circulação e ao espaço público. Um sem número de pessoas, nas redes sociais, postou seus relatos de participação nos movimentos das ruas; muitos orgulhosos de seu próprio pacifismo e nacionalismo, de terem seguido o código de ética e disciplina que os poderes impuseram. Mistificação, engodo, estratégia de despotenciação e disciplina dos corpos indóceis e inúteis. Tentativa de conter a revolta profunda de todos os corpos, de obturar a emoção criadora e de obliterar as emergências de uma comunidade de eus profundos. A repressão torna-se desnecessária quando assimilada, introjetada nas almas e transformada em exercício de subjetividade, pelo qual nos distinguimos dos outros e nos erigimos acima deles. As mídias tentam forjar um simulacro de opinião pública e, para tanto, procuram funcionar como instância de exame disciplinar.
         Hoje, quando as disciplinas parecem retomar sobre os corpos um controle tanto mais insidioso quanto eficaz, trata-se de, contra a disciplina, exercer o direito à revolta, o direito a liberar o poder que circula nos corpos, nas ruas e no espaço público do qual os movimentos já se reapropriaram. Na noite de ontem, por todo o Brasil, algumas manifestações entraram pela madrugada. Trata-se, agora, de ocupar, de tornar a revolta contínua: nada de horários, trajetos, rotas, código de conduta imposto como “etiqueta do manifestante de bem/da paz/cidadão brasileiro”. Como quisera Oswald de Andrade, apenas “roteiros... roteiros... roteiros... roteiros...”. Nenhum nacionalismo faz sentido porque nós somos, hoje, o efeito de acúmulo local de uma demanda global: basta de democracia representativa significa que desejamos mais! Queremos tudo. Conquistar o Estado é ainda muito pouco. Os manifestos de apoio às revoltas locais mundo afora são indiciários dessa globalidade.

         7. Quando Foucault dizia “não caia de amores pelo poder” significa, entre outras coisas, “não renuncie àquilo que um corpo pode”; “cuide de não desejar sua própria sujeição”, seu próprio aniquilamento ou domesticação. A liberdade só deixa de ser um conceito abstrato na medida em que se converte em revolta profunda e real. Eis toda a barbárie, que Renato Janine Ribeiro crê denunciar – mas, curiosamente, são raros os momentos em que ele identifica essa barbárie do lado do Estado e da “autoridade”. Diz ele que "Quem for violento perde o apoio da sociedade”, como se os movimentos sociais fossem algo diferente da própria sociedade. O tira na cabeça de Janine também quer fazer o exame, quer fazer a sociedade transcender os enxameamentos constituintes da multidão nas ruas – gesto filosófico que, ao que tudo indica, dá direito a publicar no clipping do Ministério do Planejamento.
         Seja como for, o momento é de cuidado político: identificar e rasurar, com a fina lima da prudência, esse código de ética e disciplina que impuseram à revolta profunda de todos corpos. Isso não se faz sem insurgência, sem se rebelar contra a própria possibilidade de ter nossos corpos indóceis e inúteis ainda uma vez docilizados e utilizados por quem quer que seja – o Estado ou o tira(no) na cabeça de Renato Janine Ribeiro. Eis o que causa o grande medo dos aparelhos de Estado: a mais profunda indisciplina. As lutas também se constituem, a partir de agora, por um movimento antidisciplinar que deve se tornar imanente aos próprios movimentos: jamais renunciar àquilo que podem os corpos. Cuidar de produzir continuamente sua insurreição e seu carnaval.

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Indóceis e inúteis: o que podem os corpos?

15 junho, 2013




Primeiro foi Porto Alegre; depois, Natal, São Paulo, Goiânia e o Rio de Janeiro... Uma multidão de corpos indóceis e inúteis impede as vias públicas, para o tráfego eternamente estagnado das seis da tarde das grandes capitais e, paradoxalmente – dirão alguns –, em nome da liberdade de circular insujeitos pela cidade. Quem teria lhes dado esse direito – por tanto tempo exclusivo dos automóveis?
Os corpos jovens, liberados e frenéticos que nos últimos dias ocuparam as praças e as principais avenidas de grandes cidades em um movimento meta-regional interromperam os fluxos do capital que as sucessivas isenções de IPI tornaram possível. É a potência e a virtù desses corpos indóceis e inúteis, insubmissos e nada comportados, que constitui o princípio de desarticulação das estratégias de poder que se dissimulam sob a questão da tarifa do transporte público nas grandes metrópoles. Eis o que torna urgente tentar lançar luzes sobre os protestos que se espalham pelo Brasil, para muito além das frases efectistas e midiáticas, das gritas reativas de um Arnaldo Jabor – ou de qualquer outro ex-comunista arrependido que hoje ocupa os postos discursivos por meio dos quais a grande mídia, a serviço do Estado e, sobretudo, dos interesses corporativos, tenta incessantemente controlar as margens de crítica social.
As vidraças quebradas – alvo aparentemente preferido desses corpos anarquistas – forma, ao lado das máscaras de “V, de Vingança” e do lixo incendiado,  o conjunto das grandes marcas simbólicas – ou melhor, demasiadamente inconscientes e reais – das passagens revoltas dos corpos pelas cidades. Eis alguns dos signos que permitem produzir uma genealogia dos acontecimentos de superfície que visa a romper com os quadros de inteligibilidade dados, e enxergar um pouco além do que, no movimento pelo passe livre e pela tarifa zero, parece ser meramente acidental. Trata-se de desentocar a própria potência política vital de que a coragem crua desses corpos se tornou depositária.
As vidraças estilhaçadas – nem sempre pelos manifestantes – nada mais são do que o acontecimento de superfície de um atentado contra o princípio de uma sociedade disciplinar e de controle em que os corpos são constantemente vigiados e controlados nas margens virtuais de seus gestos; basta um esboço ou um descuido para que o poder que transforma cada corpo em um sujeito, ou em um indivíduo, torne-se sutilmente eficaz e maquinal. Assim, a disciplina vai moldando cotidiana e continuamente, em um nível infralegal e infrajudiciário, os corpos dóceis e úteis. À luz das patologias da normalidade que o poder implanta no coração das subjetividades que produz, tudo o que ameaça a tranquila normalidade do retorno para casa após um dia extenuante de trabalho só poderia significar um atentado à liberdade dos “cidadãos de bem” – esses efeitos do poder – que se comprazem em se comprimir uns contra os outros nos infinitos engarrafamentos das metrópoles ou no interior dos coletivos abarrotados; porém, esta não passa da perspectivação do fenômeno pela sensibilidade estrábica dos doentes de normalidade, os sujeitos constituídos pelas finas malhas de poder dos panoptismos que jamais deixaram de integrar as estratégias das sociedades disciplinares ou de controle. Como as vidraças estilhaçadas, deixadas para trás pelos corpos revoltos, não seriam, também, o signo do contrapoder que circula em corpos que se desejam anônimos, impessoais e inindividualizáveis?
Não se trata de fazer um elogio da violência; porém, tampouco se trata de sacralizá-la nas ilegalidades cometidas pelas Polícias e pelos Estados pseudodemocráticos – como o Brasil revela ser. O poder circula pelos corpos das multidões. Assim como ele explode contra elas, nas ações criminosas legalizadas em aparência pelas formas jurídicas do Estado e do capital-dinheiro, ele explode a partir delas também. É nesse sentido que Negri pudera afirmar que um protesto pode ser não-violento, mas jamais será pacífico – é com o poder que circula nos corpos que os contra-poderes, até então sujeitados, produzem sua rebelião profunda e mística.
Esses corpos indóceis usam máscaras. “Estratégia de terroristas e bandidos que não querem ser reconhecidos e identificados” – logo dispararam alguns. No entanto, o gesto de dissimular o rosto no espaço público não consiste em outra coisa senão na mais radical afirmação de democracia – especialmente quando um Estado que se pretende democrático reprime tão sistematicamente qualquer manifestação pública que não deixa outra alternativa a seus cidadãos senão a de dissimular o rosto para ganhar as ruas e ver o enxame amorfo que pouco a pouco receberá o nome impronunciável, impessoal e politicamente monstruoso de multidão. Dissimular o rosto: a única forma de pela qual essa multidão pode reapropriar-se do espaço público quando toda forma de dissidência parece ter se tornado virtualmente impossível. Tecida apenas de singularidades impessoais e precárias, é a própria multidão, constituída pela revolta profunda dos corpos que relança suas potências, que ocupa as ruas, negando as identidades que o poder não cessou de tentar fixar sobre seus corpos agora libertos.
Eis as táticas simbólicas, afetivas e, a um só tempo, inconscientes mobilizadas a fim de liberar os corpos do jugo normalizante dos poderes de uma sociedade de controle que ainda conserva muitos dos aparatos de poder das disciplinas. Romper seu princípio de transparência (as vidraças, os rostos, as identidades), destruir seu princípio de registro e controle contínuo (depredar câmeras de segurança ou a iluminação pública), apor seus signos e palavras de ordem que denunciam que, no limite, a partição entre o lícito e o ilícito, das formas jurídicas do Estado esconde, sob sua pele verminal, a repartição maquinal em que o poder seleciona ativamente certas ilegalidades para receberem a forma legalizadora e a despesa do direito de Soberania. Eis a macro-operação de poder capitalística que cobre com o véu da legalidade o infinito mapa de ilegalidades que essa comunidade de eus profundos coloca em questão: da máfia dos transportes públicos, à das montadoras de automóveis; da máfia dos empresários do petróleo às atitudes censoras que constituem a práxis da mídia; das violações de direitos civis que o Estado a Polícia cometem sistematicamente às ilegalidades do direito de exceção que já vige no país, mesmo antes da realização dos “grandes eventos”.
Quando os corpos destroem o princípio de controle sutil a que se encontravam submetidos – as disciplinas infinitesimais que produzem o sujeito e sua belle âme, que os colam a uma singularidade orgânica como efeito da insidiosa inscrição desses poderes nos corpos, e que classificam o bom e o ruim, repartem o normal e o anormal –, tudo o que resta aos poderes constituídos é fazer valer as estratégias de prerrogativas de um direito de Soberania. Isto é, só resta ao Estado – e as afirmações cínicas de Haddad, direto de Paris (corpo ausente do soberano), não poderiam prová-lo melhor – aplicar à massa informe, rebelde e perigosa na qual os indivíduos dóceis subitamente se converteram as prerrogativas de violência, fiadoras de primeiro tempo das disciplinas fustigadas pelos contrapoderes que corpos indóceis e inúteis descobriram sob a superfície artificial e verminal de seus eus sociais. Assim, o Estado pode transformar-se em máquina de abolição – como não raro se transforma – e fazer da justiciabilidade dos “vândalos, anormais e insubmissos” um desnecessário e, sob todos os aspectos, injustificável e criminoso espetáculo de crueldade.
Sob o eu social – superfície construída por mil e uma microssujeições (como viajar em ônibus lotados, pagar mais do que um serviço público vale, dar-se conta dos lucros astronômicos dos empresários do setor de transportes, conhecer as grandes ilegalidades convalidadas pelo direito que tornam essas malhas de poder cada vez mais tesas e “naturais”...) – não cessam de se acumular e renovar nossas potências rebeldes, os contrapoderes de corpos indisciplinados, indóceis e, do ponto de vista dos poderes que se organizam para sujeitá-los, inúteis.
Na medida em que, contra o Estado, produz-se a revolta profunda de todos os corpos, esses corpos transformam sua fenomenologia da revolta em uma ontologia da liberdade. Descobrem que a única consistência da liberdade é a práxis da rebelião e, ao mesmo tempo, que a única forma de fazer uma rebelião que seja também uma festa de destruição de todos os valores contestados é tomando parte nessa experiência de liberdade. Sob a práxis está a descoberta revolucionária de todos os corpos indisciplinados: jamais fomos sujeitos! O poder que circula pelos nossos corpos – seus fluxos domados e axiomatizados pelo capital, pelo Estado, pelos aparatos micrológicos e microfascistas das sociedades de controle – é desejo esquizo, potência revolucionária. Rebelando-se contra as disciplinas, todos os corpos poderão, um dia, descobrir-se profundamente anarquistas, questionando a repartição do lícito e do ilícito a partir das ações borderlines como a de quebrar vidraças, usar máscaras, incendiar lixo ou pichar palavras de ordem – travar discursivamente, também, esse combate pelo sentido e pelos signos.
O lixo incendiado é o signo último desse combate: de um lado, a recusa das dejeções que o sistema de exploração capitalista amontoa e produz sem cessar; de outro, o princípio incendiário e contaminador que comunica a indisciplina e a insubmissão como princípio de abertura e questionamento radical de um corpo a outro; já não podermos falar em comunicação do aberto entre almas, porque a alma foi queimada com o fogo. Ela também é, de alguma forma, um dejeto incendiado que o poder fabricou.
Eis o que todo corpo insubmisso, indócil e inútil que ocupa – e ainda ocupará por muito tempo – os espaços públicos coloca em jogo: um devir indomável de nossas formas de viver e de pensar para o mercado. Uma forma de reabrir o que parecia fechado, de combater o fechamento e as estases que o poder produz nos corpos sujeitados. Impedindo o trânsito violentamente com a mesma intensa doçura de quem escreve em um cartaz: “Desculpe o transtorno. Estamos lutando por seus direitos.”, é o devir de todo um modelo de exercício de poder que esses corpos jovens, indóceis e inúteis tentam precipitar no aberto. O devir é o novo, o interessante, o vital que jamais cessa de estar em jogo – mesmo quando os corpos cedem ao poder. O devir é o princípio vital, virtual e inorgânico que essas indomáveis existências políticas mobilizam. Eis o próprio tempo a colocar em xeque e a afetar irremediavelmente a totalidade das formas de vida que o poder produziu, e produz, como seus dejetos cotidianos: sujeitos, resto ao lado. Viva a rebelião profunda de todos os corpos: saímos às ruas e só encontramos máquinas desejantes, potências selvagens, tesão político. Precipitar as formas de vida no devir: o que podem esses corpos rebeldes não é pouco – sob nenhum aspecto.

* Originalmente publicado no site da Universidade Nômade: <http://uninomade.net/tenda/indoceis-e-inuteis-o-que-podem-os-corpos/>




Notas sobre a revolta profunda dos corpos

10 junho, 2013



A liberdade dos homens não é jamais assegurada pelas instituições ou leis que pretendem garanti-la. É por esta razão que quase todas as leis e instituições podem ser subvertidas. Não porque sejam ambíguas, mas simplesmente porque liberdade é aquilo que deve ser praticado.
 Michel Foucault.


            O que os protestos pelo fim das tarifas no transporte público, pelos direitos humanos (do Levante Popular da Juventude às Marchas contra Feliciano), pelos direitos reprodutivos das mulheres, pela liberação sexual e de gênero, dos professores - pela educação e por melhores condições de trabalho -, ou pela legalização da maconha, para ficar só com alguns exemplos, revelam que é urgente distinguir o tedioso conceito de revolução da revolta profunda de todos os corpos. Nada mais de confundir revolução com revolta, conceitos e práxis que jamais coincidem. Embora já esteja nas ruas desde Seattle, o manifesto político do século XXI ainda está por ser escrito, e ele será algo como uma fenomenologia da revolta. Uma fenomenologia da revolta como ontologia da liberdade. Mas, antes de escrever, às ruas.
         Lançar os corpos na rua e gritar "3,20 é roubo!", ou "Ilegal deveria ser essa sua cabeça conservadora", é o gesto que desloca a cisão legalidades/ilegalidades que funda as formas jurídicas consolidadas. Toda revolta é a recusa profunda, afetiva, vital dessa partição do lícito e do ilícito. Por isso, ela margeia estrategicamente o ilícito, vaga em seus limiares indecisos e excepcionais. A mídia trata o borderline do (i)lícito como crime a priori. Por sua vez, Haddad defende a ação violenta da polícia e aconselha os manifestantes a renunciarem à violência como condição do diálogo - violência a que o Estado jamais renuncia. Por isso, a atitude de Haddad é cínica. É a polícia e o Estado que devem renunciar à violência e à repressão como condição do diálogo. Se a violência pode ser exercida pelo Estado, seu titular ainda é a massa indecisa, inconsciente e confusa que o Estado tenta territorializar no conceito de Povo. Por isso, poupemo-nos da sacralização da violência; nada mais de cultos ao Estado de Direito, e nada mais de sujeição às formas jurídicas que "recobrem o grande mapa das ilegalidades". A gramática da defesa dos direitos também tem seu limite, e os direitos derivam da forma pura e vazia da lei que se trata de questionar.
         Se a verdade profunda dos corpos é a de serem profundamente anarquistas - e de não cessarem de sê-lo sob todas as camadas de ideologia -, o que a revolta profunda dos corpos produz é uma inequação que joga o caso contra a lei; a singularidade concreta contra o universal abstrato. Rebelião do caso contra as ilegalidades que a lei tornou convenção e hábito disciplinar. O Movimento pelo Passe Livre está se batendo precisamente contra esse limiar em que a lei formaliza e cobre o mapa das ilegalidades - a lei, esse efeito do poder que jamais escapou a Foucault. Então, não o condene só porque você prefere reclamar (impotentemente) da corrupção assistindo ao telejornal; não o censure só porque você não tem coragem de ir às ruas e enfrentar a porrada deste Estado protofascista que é São Paulo - mas também todos os outros - armado, no mais das vezes, só da coragem de um corpo anarquista que reivindica sua potência contra o poder.

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Subtrair o corpo: NÃO ao Estatuto do Nascituro

06 junho, 2013




1) Todo projeto que dê às mulheres mais liberdades e opções de vida do que elas dispõem hoje será sempre bem vindo; então, não sou eu quem vai desmerecer nenhuma proposta de assistência social à mulher vítima de estupro; porém, confundir o Estatuto do Nascituro com “uma proposta de assistência social à mulher vítima de estupro” é um erro grave. Não é disso que se trata, infelizmente.

2) Toda a atenção da mídia e das pessoas nas redes sociais esteve voltada nos últimos dias ao que tem sido chamado de "Bolsa-Estupro"; vi que mesmo alguns de meus amigos e amigas feministas cederam à gramática do opressor; recusaram o “Bolsa-Estupro”. Essa nomenclatura visa, estrategicamente, a deslocar nossa atenção do que efetivamente está em jogo. Vocês bem o perceberam - mas não cedam à gramática do poder. A assistência social não é, nem pode ser, o ponto central dessa discussão.

3) O PL 478/07 não atribui à mulher a liberdade de optar entre abortar nos casos legais ou não, com assistência social e financeira do Estado no último caso. Ao lado da criação de uma malha com aparência de proteção social, o texto do PL 478/07 criminaliza até mesmo formas culposas de interrupção da gravidez (art. 23); criminaliza a pesquisa com células-tronco embrionárias (art. 25); restringe a liberdade de manifestação e de expressão do pensamento político (art. 28) e utiliza o Direito Penal de forma sórdida e intolerável - como mecanismo de ortopedia moral (arts. 26 e 27). Sobretudo, impede-se o aborto axiologicamente (em “favor da vida”). O art. 12 (longe do seio do núcleo penal do Projeto de Lei) pode, sem dificuldades, sugerir a revogação tácita dos casos legais de aborto hoje admitidos, como o aborto em caso de gravidez resultante de estupro, ou o terapêutico.

Recusemos – e agressivamente, se necessário – o Estatuto do Nascituro porque ele impõe à mulher uma opção que só cabe a ela fazer; porque ele representa um retrocesso desmedido em matéria de direitos e garantias fundamentais, como em matéria de direitos reprodutivos e da mulher; porque ele criminaliza a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos, a utilização da pílula do dia seguinte (mesmo por mulheres estupradas), bem como a pesquisa com células-tronco. Lembrem-se do conselho de Foucault: "não caia de amores pelo poder". Recusemos as estratégias do poder e, com elas, também a sua gramática disforme, que não passa de um efeito do poder.

É por isso que eu digo não ao Estatuto do Nascituro. Pelo direito de subtrair meu próprio corpo aos cálculos do biopoder.

P.S.1: antes de me xingar covardemente nos comentários, é mister ler o texto do Estatuto do Nascituro ~ http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=443584&filename=PL+478/2007

P.S.2: Roga-se não rezar nem antes, nem depois, nem com o Navalha de Dalí aberto. Grato.


P.S.3: o blogueiro é ateu praticante, mas o blog é laico.