Ao assistirmos ao filme de Dalí e Buñuel (O cão andaluz, 1929) não cessamos de perguntar “ora, mas que cão? Não há cão nenhum!”. Mas há populações inteiras de formigas arrastando o piano, e todos se lembram da navalha. A moça sentada na barbearia: um devir-mulher atinge um ponto de indiscernibilidade, a visão vacila numa paisagem não-humana, o olho olha a lua e devém: o barbeiro puxa a navalha e rasga o olho, e rasga a lua. Um gesto erótico, e meio batailliano: o olho, a história do olho. Lembro que Deleuze não gostava dos surrealistas; eles lhe pareciam grandes fraudes; mas esse filme não busca significar, nem é discernível que haja efetivamente um sonho; é mais um estado de embriaguez que dissolve as passagens: delira-se com a Figura, e não com a representação: o olho que é a lua (devir-caosmos), a lua que é o olho (um devir-molecular) – o olho tem quase o tamanho de uma molécula perto da lua. O olho que é o olho da moça; o olho da moça que é a lua; o olho da história de Battaille que é o olho, mas também o ovo, e também o cu.[1] A brancura do olho, a brancura da lua, a bran-cu-ra. Um delírio é feito de delirar as raças e a história universal, e não de papá-mamã.[2] O agenciamento, antes de tornar-se outra coisa, é mais ou menos este: o olho rasgado, a lua cortada, o cu desflorado. Algo próximo do que acorria à homofonia de Battaille: l’œil e l’œuf. Mas há, também, o procedimento esquizofrênico operado sobre a linguagem – escavar na língua materna uma língua menor, estrangeira.[3] Um procedimento linguístico inseparável da linguagem, como o fizera Louis Wolfson, ou Raymond Roussel.[4] Deleuze e Guattari devem ter sido os primeiros a experimentarem os palavrões em filosofia. Todos se lembram de O Anti-Édipo, e do ânus-solar do Presidente Schreber... Mas eram outros tempos. Maio de 68: o mês que ainda não...
[2] DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. O anti-Édipo. Capitalismo e esquizofrenia I. Tradução de Joana Moraes Varela e Manuel Maria Carrilho. Lisboa: Assírio e Alvim, 2004.
[3] DELEUZE, Gilles. A literatura e a vida. In: Crítica e clínica. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 2006, p. 16.
[4] DELEUZE, Gilles. Luis Wolfson, ou o procedimento. In: Crítica e clínica, p. 19. Ainda, FOUCAULT, Michel. Dire et voir chez Raymond Roussel. In : FOUCAULT, Michel. Dits et écrits I. 1954-1975. Édition établie sous la drection de Daniel Defert et de Fraçois Ewald avec la collaboration de Jacques Lagrange. Paris : Quarto / Gallimard, 2001, p. 233-243.