por Murilo Duarte Costa Corrêa[2]
Toda política que conhecemos, no Ocidente, afirma Agamben, resta por desaguar em biopolítica; desde o momento em que os gregos, ao fundarem a polis, incluem na ordem jurídica a vida nua, mas unicamente sob a forma de sua exclusão, passa, a vida, a ser alvo de uma exceptio. A vida nua, zoe, foi, por Aristóteles, conceitualmente separada da vida humana: bios politikos. Assim, os fundadores da primeira cidade ocidental excluíam dela a vida nua, animal, para atingirem, por meio da política, a boa vida, a vida humana – não meramente a vida, mas a vida humanamente predicada: trata-se de uma forma de vida cujo humano é recortado sobre o fundo da vida animal que lhe sustenta biologicamente; essa parcela da vida, diz Agamben, era incluída na política unicamente sob a forma de sua exclusão, e isso é o que designa a exceptio, a relação de exceção, de algo que se encontra incluído mediante sua própria exclusão. Curiosamente, e a partir da leitura de Walter Benjamin, Agamben consegue identificar naquela inclusão-exclusiva da vida nua não apenas a constituição biológica de toda a tradição política – traço em que Agamben procede a uma releitura das teses de Michel Foucault –,[3] mas consegue enxergar naquele momento topográfico da inclusão-exclusiva dois elementos fundamentais: o paradoxo da soberania e a visão de uma figura jurídica romana simétrica à do soberano – a figura do homo sacer. A partir da leitura de Carl Schmitt, resta claro para Agamben que o soberano é aquele que decide sobre o estado de exceção; vale dizer: pessoa que se põe, ao mesmo tempo, acima e além da lei dos homens para instaurar o regime em que a lei, embora vigente, não possui aplicação – aplica-se em consonância com seu próprio bando: aplica-se desaplicando-se; em outras palavras: soberano é aquele que decide sobre o estado de exceção, consistente na suspensão da ordem jurídica.[4]
Agamben adverte, ademais, que não se trata de invalidar a lei, mas de aplicá-la desaplicando-a, de suspender sua aplicação conservando-a vigente. Assim, a posição topológica do soberano é crivada por um paradoxo: ao decretar o estado de exceção, o soberano estaria aquém ou além da lei? Agamben responde afirmando que o estado de exceção não permite distinguir dentro e fora, aquém e além da lei, pois direito e vida, lei e fato, restam por confundir-se em uma zona de total indiscernibilidade.[5]
O homo sacer, por sua vez, era aquele que, por haver sido banido da comunhão de vida com os demais homens, não poderia ser sacrificado segundo as formas sancionadas do rito,[6] mas poderia ser morto por qualquer membro da comunidade sem que isso significasse o homicídio. Eis a figura do homem sagrado, marcado por uma relação de abandono à morte violenta, pois constituía unicamente vida nua. Dito de outro modo, a vida nua do homo sacer encontra-se, a exemplo dele, incluída no ordenamento unicamente sob a forma de sua impunível matabilidade, sob a forma de sua exclusão: eis o que Agamben conceitua como relação de exceção.[7]
Note-se que tanto a figura do soberano – que decide sobre o estado de exceção – como a do homo sacer – incluído no ordenamento unicamente sob a forma de sua exclusão –, restam por reconduzir o problema às relações entre direito e vida, de um direito que, no estado de exceção, encontra seu ponto de fusão e indistinção em relação à vida.
Não é impossível notar que o homo sacer e o soberano são figuras que guardam, entre si, assustadora simetria: o soberano, que decidindo sobre o estado de exceção, decide sobre a vida e morte dos demais, age, para com todos os outros, como se todos fossem hominis sacrii – vidas nuas, cuja matabilidade não constitui homicídio; homo sacer, por sua vez, é aquele perante cuja vida todo homem age como soberano, isto é, decidindo sobre sua vida e morte. Há, aqui, a primeira delimitação do espaço político em sentido próprio, e a sacralidade, para Agamben, corresponde à “forma originária de implicação da vida nua na ordem político-jurídica, e o sintagma homo sacer nomeia algo como a relação 'política' originária, ou seja, a vida enquanto, na exclusão-inclusiva, serve como referente à decisão soberana”.[8]
A decisão possibilita que a abertura essencial do direito seja entrevista: a soberania, como decisão entre vida e morte, ordem jurídica e exceção, exerce-se sob a forma de uma decisão não por coincidência ou acaso, mas porque conserva, em sua estrutura, a relação política originária entre direito e vida, entre a norma e a singularidade do que pertence aos domínios do fáctico.
O estado de exceção constitui, pois, uma zona topográfica em que direito e vida, em íntima relação, tornaram-se impassíveis de distinção;[9] espaço em que essa relação é posta a nu, e é possibilitada pela suspensão da aplicação da ordem jurídica, que, não obstante isso, continua a viger.
Isso apresenta duas linhas de fuga por intermédio das quais o estado de exceção concretiza-se como paradigma de governo, segundo o qual a exceção, desde a leitura agambeniana de Benjamin, torna-se, vez por todas, regra: pura força-de-lei – que Agamben escreve com sobre-tachado, pois é pura força-de-lei-sem-lei, já que a ordem jurídica foi suspensa pela decisão soberana – e a pura forma de lei vige sem significar, sem ter aplicação, sem enforceability,[10] pois sua aplicação foi suspensa pela decisão soberana.
Desse modo, o estado de exceção pode ser caracterizado por uma zona de indistinção entre direito e vida porque o que vige não se aplica – é despido de força – e o que se aplica não vige – é pura força da qual toda lei foi banida.
No estado de exceção, persiste uma topografia singular: a do campo de concentração – espaço que permanece estável para além de qualquer relação para com o direito: é o lugar em que toda vida é nua e matável, porque inumana.[11] Evidencia-se, pois, a ambivalência do campo enquanto espaço de exceção: porção de território posta para fora, mas que não é exatamente externa – é incluída na medida de sua própria exclusão, no sentido derivativo do étimo ex-capere, ou capturado fora.
Agamben afirma que o campo inaugura um novo paradigma jurídico-político, e o faz a partir da indiscernibilidade da exceção; indiscerníveis, igualmente, as questões de fato e as de direito. O campo é esse híbrido de direito e fato indiscerníveis, para Agamben, que faz perder o sentido da legalidade. Com seus habitantes despojados de direitos e reduzidos à vida nua, o campo é o espaço privilegiado da biopolítica, fazendo-nos confundir homo sacer e cidadão.
Não é impossível perceber que a decisão contém o espaço do já-aberto que caracteriza o estado de exceção, ou a porta da lei kafkiana que, como escreve Agamben, justamente por estar já-aberta é que imobiliza: momento em que a lei nada prescreve.[12]
Eis a explicação que a leitura de Agamben pode fornecer sobre o direito contemporâneo: o decisionismo brasileiro implanta a exceção como regra, transforma a ordem jurídica em pura forma de lei, que vige sem significar, sem nada prescrever, e converte a decisão naquilo que, não sendo lei, tem força-de-lei. Consolida-se, pelo modelo em que o direito é confundido com a singularidade da decisão, um direito pós-democrático em que a enunciação legiferante não passa de função vazia,[13] e em que o campo de concentração deve estar já em todos os lugares e nos envolver a todos.
Como escreve Agamben: “Se hoje não existe mais uma figura predeterminável do homem sacro, é, talvez, porque somos todos virtualmente hominis sacri”.[14] A condição biopolítica contemporânea é a de que nos tornamos virtualmente matáveis; vagamos pelo campo de concentração, que é, já, todo o espaço possível, uma vez que o estado de exceção implantado funciona como dispositivo que torna eficaz a fictícia relação entre direito e vida.
[1] Excerto extraído de CORRÊA, Murilo Duarte Costa. Do mesmo à ruptura: ensaios sobre a filosofia do direito e o novo no jurídico. Dissertação (Mestrado). Florianópolis: UFSC, 2009, 338 p.
[2] Advogado e professor. Mestrando em Filosofia e Teoria do Direito no Curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (CPGD/UFSC). Graduado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (FD/UFPR).
[3] Principalmente, embora não cite textualmente, de FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Curso no Collège de France (1975-1976). Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2002, e dos seminários e textos que se seguiram.
[4] AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua I. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Humanitas, 2007, p. 23. A exceção não implica uma invalidação pura e simples do direito, mas conduz a perceber que a ordem jurídica é suspensa, como um véu, para que o soberano aja em pura força; Agamben afirmará, pois, a mecânica do estado de exceção por intermédio de duas relações entre direito e vida: a pura força-de-lei (leia-se: sem-lei) e a lei que vige sem se aplicar, sem força alguma – mera peça ornamental.
[5] AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua I, p. 34.
[6] AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua I, p. 79.
[7] AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua I, p. 26.
[8] AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua I, p. 92.
[9] AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua I, p. 43.
[10] DERRIDA, Jacques. Força de lei. O “fundamento místico da autoridade”. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 07.
[11] AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua I, p. 175.
[12] AGAMBEN, Giorgio. HHomo sacer. O poder soberano e a vida nua I, p. 59.
[13] LEBRUN, Jean-Pierre. Um mundo sem limite. Ensaio para uma psicanalítica do social. Tradução de Sandra Regina Filgueiras. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004, p. 77. Segundo Lebrun, o nazismo surgiu a partir da justificação do racismo pela objetividade e validade do discurso científico; e Hitler aproveitara, justamente, o vazio aberto pela ciência entre enunciado e enunciação. Assim, evidencia-se o vínculo entre o campo de concentração e a separação entre enunciado e enunciação, que, ademais, faz do lugar da enunciação um lugar vazio, sem sujeito; em última análise: uma função vazia.
[14] AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua I, p. 121.