Na foto, o falecido general João Figueiredo [segundo Prates, "que Deus o tenha"] à mesa com Paulo Maluf
Luiz Carlos Prates, comentarista da RBS, filiada da rede Globo em Santa Catarina, teceu comentários sobre sua juventude, vivida no período da ditadura, e o atual momento (escandaloso, sem dúvida – basta ver que há notas sobre isso em jornais internacionais dos mais variados, do Times ao Le monde) da democracia brasileira. Ao final de seu aparte, Prates (cujo nome é bizarramente semelhante ao de Luiz Carlos Prestes, da esquerda revolucionária cujos influxos atingem a iníqua, para Prates, Novembrada) conclui afirmando que o general Figueiredo teria nos ensinado o caminho da "luta, da verdadeira e legítima democracia", como destacado aqui.
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O importante não é Prates, nem "a verdade democrática" que seu comentário deseja extrair da ditadura - ou da, segundo ele, fabulosa e reta vida que pode ser atribuída a um ditador, como João Figueiredo, que morreu pobre -, mas, mais precisamente – e eis uma grade de análise possível -, tomando a enunciação de Prates como um acontecimento, o que se pode pensar a partir dele? A pergunta que me ronda, tendo assistido ao vídeo, é a seguinte: "a democracia não é, também, uma forma moral, tanto quanto a ditadura?"
Discutir a superioridade de uma forma moral sobre outra não vem ao caso. Se algo de útil se pode tirar desse discurso de Prates - para muito além de reações contra ele, que não conduzem senão a discussões infantis - "ditadura!"; "não, eu prefiro democracia!"; "o meu é melhor!", “não! O meu é que é!”, "me devolve meu brinquedo!" etc. -, é perguntar-se se ele não é um indício deveras preciso de uma visibilidade que aos poucos vem se dando à luz (o que, aliás, me parece um tema indiretamente schmittiano, e, mais diretamente, agambeniano): haveria um ponto em que a ditadura e a democracia poderiam se tocar, se irmanar, se tornarem indistinguíveis? – talvez no seio confuso da moral vigente? A fala de Prates, para além de qualquer juízo, deixa isso claro, apesar da idiotia da opção: e optar, num caso desses, é sinal de idiotia, por não reconhecer que as opções em jogo estão conectadas desde sua intersecção indiferenciada. Há uma solidariedade íntima entre democracia e ditadura, e não apenas como formas de exercício de poder nas sociedades capitalísticas, pós-democráticas, espetaculares; essa solidariedade obtusa também está na forma moral que a democracia toma na boca dos democratas (o véu moral do progressismo medíocre), e na forma, igualmente moral, que a ditadura adquire na boca dos reacionários (o véu moral da eficiência administrativa, da paz armada, da liberdade sitiada pelos aparelhos de segurança que, ao contrário do que se pensa, não desapareceram).
Enquanto trabalharmos com axiomas – e lembremos o que Deleuze e Guattari diziam, sobre o capitalismo axiomatizar e reterritorializar no corpo pleno do capital os fluxos liberalizados do desejo –, a única discussão possível, tão cara aos habermasianos, persistirá nisso: “devolve meu brinquedo!”; “não!”; “manhêêê!” - uma discussão infantil; além, é evidente, de continuarmos a dar audiência e fazer coro à idiotia generalizada que opera, nos meios de comunicação de massa, nossas subjeições e deposições subjetivas infinitesimais.