De volta ao século XIX, de Bento Prado Júnior

11 janeiro, 2010




[arquivo] - Quando me propus tal tema, para esta conferência, tinha em mente  um dos paradoxos de nossa contemporaneidade – o que há de fortemente regressivo  nos processos desencadeados pelas novas tecnologias e pela nova economia – apenas no campo da filosofia. Cogitava exclusivamente na volumosa produção das chamadas cognitive sciences e pensava apontar como, em algumas de suas manifestações, tal literatura nos devolve à atmosfera do naturalismo de meados do século XIX, que exigiu vários “retornos a Kant”, bem como os esforços simultâneos de Bergson, de Husserl e de toda a linha da filosofia analítica . O paradoxo seria o seguinte: tudo se passa como se boa parte dos pensadores contemporâneos ignorassem todas as grandes obras do século XX. Hoje, muitos não se escandalizariam, apenas “modernizariam” a frase de Büchner, há 150 anos atrás, segundo a qual o cérebro seria uma espécie de “glândula” e o pensamento, sua “secreção”. Há poucos meses atrás, o recém-falecido e grande cientista Francis Crick (Prêmio Nobel e descobridor do DNA) anunciava triunfalmente ter descoberto a “célula” da alma, que punha por terra, definitivamente, com a autoridade da ciência positiva, uma visão religiosa do mundo e suas implicações como a imaterialidade e a imortalidade da alma. Como se as idéias de subjetividade, consciência e significação remetessem automaticamente ao espiritualismo e como se o monismo reducionista não fosse auto-contraditório.
Retornando há algumas décadas antes de Büchner, poderíamos lembrar a frase de Hegel contra a Frenologia de Gall, quando afirmava que “A razão não é um osso”. Hegel, é claro, é um filósofo idealista, mas sua frase poderia ser endossada por Husserl e Russell, pelos empiristas lógicos, sem pensar, é claro, nos neo-kantianos, isto é, por toda a filosofia significativa do século XX. Numa palavra, como procuraremos sugerir, o monismo reducionista elimina as idéias de significação e de verdade (laboriosamente montadas por Platão e Aristóteles em seu combate contra a sofística), deixando de lado a evidente circularidade da expressão cognitive sciences, ou ciências dos processos cognitivos ou, no limite, ciência do conhecimento científico. Embora, é claro, como veremos, essa disciplina pertença antes ao domínio da especulação filosófica e de apostas sobre os resultados futuros (ainda desconhecidos) da própria ciência. Uma ciência ou uma nova versão de uma antiga concepção materialista-metafísica, incontrolável cientificamente?
     Mas nossa intenção não é a de polemizar, globalmente, contra as ciências cognitivas, não só pelo evidente interesse (tanto científico como filosófico) dessa nova literatura, mas também pela nossa limitadíssima familiaridade com ela. Nosso alvo é bem mais restrito e modesto: examinar as dificuldades filosóficas implícitas em um dos projetos teóricos mais interessantes da área e que não deixa de ter algo de paradigmático dessa nova literatura.

     Mas, antes de mergulhar na obra do professor de neurociências da Escola de Medicina da Univ. de New York,  Rodolfo R. Llinás, i of the vortex; From Neurons to Self (MIT Press, Cambridge, Massachusetts, Londres, 2.001), permitamo-nos uma breve digressão. Um artigo do historiador inglês Peter Burke, publicado recentemente (11/VII/2.004  ) trouxe água inesperada para o meu moinho, comentando historiadores atuais que apontam para uma grande similaridade entre esta virada de século e a segunda metade do século XIX. Trata-se de livros recentes, de um historiador italiano e outro, inglês: Carlo Funari (Verso una Societá Planetária, Ed. Donzelli, 2.003) e Christopher Bayly (The Birth of Modern World, Ed. Blackwell, 2.004). As duas obras convergem ao mostrar, cada uma à sua maneira, como as transformações do mundo contemporâneo (o conceito de “globalização” foi formulado pela primeira vez em 1980 por economistas como Theodore Levitt) repetem estruturalmente aquelas que ocorreram entre 1.870 e 1.914. Começava então o estabelecimento de um mercado mundial, com efeitos na vida quotidiana, provocados pela multiplicação das comunicações (o telefone etc.), bem como na Cultura em geral. Globalização arcaica é o termo que o historiador inglês usa para descrever um período mais longo (1.780-1.914) de uniformização crescente dos sistemas econômicos, sociais e políticos. No campo da filosofia observa-se, no ciclo mais curto (1.870-1.914), a disseminação mundial do positivismo que chegaria até o Brasil, no século XIX, como hoje aqui aportam também as chamadas cognitive sciences, animadas pelo mesmo cientificismo do pensamento de Augusto Comte. Alguém se lembra de Tobias Barreto, o filósofo sergipano (1.839 – 1. 889) que, sob a influência do positivismo, chegou a um monismo à la Haeckel? Haveria grande distância entre esse monismo evolucionário e aquele recolocado em circulação por algumas tendências do pensamento atual?
     Ao contrário do sugerido pelo famoso filme Matrix (que, entre outras coisas, divulga mal as idéias “pós-modernas” de Baudrillard), aparentemente a Aurora do século XXI não é necessariamente um salto para um futuro inimaginável, mas, como sugere Peter Burke, um retorno ao tempo de nossos avós ou bisavós. Estamos em pleno fin de siècle. Corremos mesmo o risco de trocar nosso espontâneo progressismo por uma espécie de saudosismo retrógrado: nossos avós e bisavós não viviam sob a permanente ameaça da belicosa Pax Americana imposta a ferro e a fogo pelo Presidente Bush.

     Encerrada a breve mas indispensável digressão, voltemos ao interessante livro de Rodolfo Llinás. No seu primeiro capítulo, o autor confessa sinceramente a ousadia de seu projeto: o de passar da fisiologia de uma única célula para o nível sistêmico da ação (ou da motricidade) e da representação em geral. Ignoremos o dogmatismo implícito em seu ponto de partida, que supõe apenas duas “metafísicas” possíveis como soluções para os problemas da práxis e da nóesis: ou dualismo ou monismo (ou Corinthians, ou Palmeiras, como se não houvesse outros times no campeonato! ).  Esqueçamos, por um momento, a questão do monismo e de seu precursor sergipano. Insistamos, neste primeiro passo, no que há de irrecusável em sua empresa. Em primeiro lugar, não é necessário fazer a escolha especulativa do monismo, para reconhecer que mente e cérebro são eventos inseparáveis, como diz nosso autor. Que filósofo, por mais solipsista (ou espiritualista) que fosse, seria capaz de afirmar que sou capaz de pensar, mesmo depois da destruição física de meu cérebro? Em segundo lugar – o que é muito mais interessante – o autor recusa o modelo puramente mecanicista ou reflexológico (input – output), insistindo na importância do “contexto” da ação e da cognição: algo como um “campo prévio” é posto como necessário à compreensão da interação entre o cérebro e os estímulos recebidos do mundo físico que o cerca.
     Mas, logo a seguir, esta relação “sistêmica” (e, como veremos “dinâmica”) deixa transparecer um subsolo da proposta, talvez ignorado pelo autor. Digamos que seu ponto de partida pressupõe algo como uma ipseidade larvar, ou seja, uma referência a si mesmo presente no nível mais elementar do funcionamento neuronal: “Em poucas palavras, o cérebro é mais do que o litro e meio de matéria inerte que vemos ocasionalmente numa jarra numa poeirenta estante de um laboratório. Deveríamos pensar o cérebro como uma entidade viva, que engendra uma atividade elétrica bem definida. Esta atividade poderia talvez ser descrita como tempestades elétricas ‘auto-controladas’, ou aquilo a que Charles Sherrington (1941, p. 225), um dos pioneiros das neurociências se refere como o enchanted loom”  [seria a expressão mágico tear, pergunto-me cá entre nós,  adequada para combater o aspecto “mágico-irracional” do espiritualismo?]. E nosso autor encerra com a seguinte frase: “No contexto mais largo da rede neuronal, esta atividade é a mente”(op. cit., p. 2.). Notemos vários aspectos de tais proposições. Em  primeiro lugar remetem à neurologia da primeira metade do século XX, em particular a de um autor cuja perspectiva se aproxima, por seu “integracionismo”, daquela de inspiração gestáltica de Gelb e de Goldstein (tão bem utilizada por filósofos pouco monistas ou reducionistas como Merleau-Ponty e Cassirer) e que termina por aderir a alguma forma de dualismo. Sublinhemos ainda que, com sua definição do cérebro como “living entity”, Rodolfo Llinás afasta qualquer forma de reducionismo brutalmente mecanicista, sem ter de aderir, em princípio, a algum misterioso “vitalismo”; bastaria um passo a mais para reencontrar a distinção fenomenológica entre Leib e Körper, sobretudo porque, logo a seguir, insistirá na importância da intencionalidade e da temporalidade na interface entre a mente e o corpo. Finalmente, lembremos a definição do cérebro como atividade “auto-controlada” que o insula, de alguma maneira, no mundo físico e lhe empresta alguma forma de originalidade: um enchanted loom ou um esboço de “ontologia regional”?
     Mais reveladora todavia é a distinção que Rodolfo Llinás estabelece entre diferentes formas de atividade cerebral, que é a via para uma teoria global das relações entre cérebro e mente. Tal relação é descrita em pelo menos três níveis diferentes. Para além da primitiva relação simultaneamente prático-cognitiva (coço minhas costas ao sentir um prurido), o autor enumera três outras formas de atividade cerebral que, ou impedem a emergência de estados mentais, ou dão lugar a diferentes formas de consciência: a) o sono profundo (provocado pela ingestão de drogas ou por ataque epilético, p. ex., que excluem qualquer forma de consciência; b) o sonho, que admite “estados cognitivos”, mas sem relação com a realidade exterior; e c) os “sonhos lúcidos”, em que o sonhador está consciente de que está sonhando e que tangencia o puro pensamento.
     O curioso é que, neste segundo passo de seu capítulo introdutório – depois de expor sua versão cripto-fenomenológica da intencionalidade larvar do sistema neuronal – Llinás começa a apresentar, com as distinções de nível apresentadas, uma teoria cripto-kantiana dos níveis sucessivos da intuição sensível, da imaginação transcendental produtiva e do próprio entendimento, como faculdade de delimitação do possível, livre da pressão do mundo dado. Esse caminho é percorrido em seus três níveis (lembremos: além do sono profundo, os dois outros níveis diferentes da consciência desperta e da consciência que sonha) na seguinte frase: “A mente é co-dimensional com o cérebro; ela ocupa todos seus  recessos e todas suas fissuras. Mas, como uma tempestade elétrica, a mente não representa em qualquer momento todas tempestades possíveis, mas apenas as isomórficas  ao ( ...)estado do mundo ambiente local, tal como o observamos quando estamos despertos. Ao sonhar, estamos liberados da tirania do input sensorial e o sistema engendra tempestades intrínsecas que criam “mundos possíveis”, talvez exatamente como quando pensamos” (op. cit., p. 2). Tudo se passa como se houvesse uma inversão da boa ordem regressiva da Crítica da Razão Pura: só é possível definir o estatuto do sujeito “deduzindo-o”, no nível dos fatos da ciência da natureza, da reflexividade originária (phüsei) do neurônio ou do sistema neuronal. Tal procedimento permitirá, em especial, no coração do livro, ou no seu sexto capítulo, algo como uma dedução biológica do que Kant chamava de “Apercepção Transcendental”.

     Permitamo-nos outra breve digressão: uma outra forma de “cripto-kantismo” foi localizada na obra de Daniel Dennett, pelos organizadores da obra Naturalizing Phenomenology, no longo prefácio com que abrem essa obra coletiva (Os editores e redatores do prefácio são Jean Petitot, Francisco J. Varela, Bernard Pachoud e Jean Michel Roy, e o livro foi editado pela Stanford University Press, Califórnia, 1.999): trata-se do uso feito, pelo filósofo americano, da idéia de intencionalidade. A complexidade do sistema cognitivo de regras exigiria postular dois níveis de “predição”, mais abstratos que a simples explicação bio-física. Um seria formulado nos termos de sistema organizacional e o outro corresponderia à instância intencional implícita na “folk psychology”. Nesta última instância, o processo mental é visado de maneira não objetivista, que guarda, todavia, um valor pelo menos heurístico. Os autores observam: “Esta estratégia faz lembrar surpreendentemente a atitude adotada por Kant na segunda parte de sua Crítica da Faculdade de Julgar face ao velho problema do vitalismo na explicação dos organismos biológicos. Embora veja no mecanicismo a única forma adequada de uma genuína explicação das entidades naturais, Kant considera que tanto a limitação de nosso entendimento quanto a complexidade dos organismos vivos faz necessário que nos apoiemos, em biologia, num conjunto adicional de conceitos específicos, tais como a ‘finalidade interna’.Daí uma dualidade de máximas do juízo, a mecânica e a finalista (...) De modo similar, poderíamos dizer que as três “instâncias” distinguidas por Dennett, a “ instância física, a “instância do design” e a “instância intencional” funcionam como três máximas da razão. Embora a instância física seja a única dotada de valor objetivo, tanto a funcional como a intencional são tornadas necessárias pela complexidade dos fenômenos observados.” (op. cit., pp. 65-66).
     Em princípio, tal recurso às ciências da natureza não se choca necessariamente com o espírito da filosofia crítica ou da fenomenologia. Lembremos mais uma vez o uso, por Merleau-Ponty e por Cassirer, dos dados neurológicos de Gelb e Goldstein: o segundo chegou a acompanhar de perto esses estudos sobre a patologia cerebral e seus efeitos  (afasias, apraxias, etc.). Mais do que isso, Cassirer lançou mão desses dados em sua reconstrução da Crítica da Razão, falando em algo como uma “história natural” da Faculdade de Julgar, útil complemento à dedução transcendental. Ele aí percorre a ponte que liga o sujeito pensante à biologia do cérebro, mas o faz na direção inversa de muitos teóricos contemporâneos da cognição que tentam “naturalizar” a fenomenologia. Não há lugar, aqui, para a discussão dessa possibilidade: a possibilidade de guardar a riqueza da fenomenologia, dando-lhe bases puramente naturalistas, ao arrepio da mais funda intenção teórica de Husserl.

     Mas retornemos a nosso tema e a nosso autor: nosso tema é antes o de uma falácia crucial que se encontra na base do belo livro de Rodolfo Llinás e faz abortar, na raiz, seu projeto de caminhar, sem descontinuar, From Neurons to Self. De que falácia falamos? Onde o “naturalismo” de nosso autor rompe os limites do pensável? Nas páginas 4 e 5 de seu livro, Llinás desenvolve um argumento que nos parece rigorosamente insustentável. Ele aí tenta explicar a razão do aspecto “misterioso” da consciência. Como para Searle, para ele também a vida mental é mais misteriosa do que a vida animal ou de que a própria existência do mundo físico. Deixemos de lado argumentos tentadores como o seguinte: por que seria o funcionamento elétrico dos neurônios menos estranho do que os atos de percepção, imaginação, pensamento etc.? Não seria apenas o senso comum (a folk psychology, como a entendem os autores que criticamos)  que poderiam levantar esta questão, que negligenciaremos nesta ocasião. O que nos importa, aqui, é a razão invocada pelo autor para explicar o aspecto misterioso da consiência. A explicação é simples, Llinás a encontra quase pronta numa lecture de Stephen J. Gould, dos anos 90, sob o título “Unity of  Organic Design: From Goethe and Geoffrey Chaucer to Homology of Homeotic Complexes in Artropods and Vertebrates”, onde é lembrada a hipótese evolucionária segundo a qual somos crustáceos que foram virados ao avesso, isto é, que trocaram o exoesqueleto pelo endoesqueleto. Os crustáceos, encerrados em seu exoesqueleto não podem ter acesso imediato à geração de seus próprios movimentos. Com nossa estrutura endoesquelética, temos acesso imediato à geração de nossos movimentos, que nos são transparentemente familiares: desde o nascimento temos consciência de nossos músculos e de suas funções. Mas nosso cérebro está encerrado dentro do exoesqueleto craniano, que nos proíbe acesso imediato ou familiaridade com os processos neuronais e sua conexão com seus aspectos mentais. Como diz o autor: “Se pudéssemos observar ou sentir o cérebro trabalhando, seria imediatamente óbvio que a função neuronal está ligada a como vemos, interpretamos e reagimos, como os músculos estão ligados aos movimentos que fazemos” (op. cit., p.4).
      Essa idéia é fortemente problemática. Não era sem razão que Wittgenstein apontava a irredutibilidade da gramática da psicologia à da análise do funcionamento do cérebro, sem com isso implicar qualquer forma de dualismo ontológico. Com efeito, que podemos imaginar – ou pensar – que ocorreria se, sem o exoesqueleto craniano, tivéssemos acesso imediato aos processos neuronais? No máximo, que teríamos acesso na primeira pessoa do singular ou consciência imediata intencional de novos processos físicos entre os demais. Processos físicos é dizer demais – teríamos percepção de coisas ou de eventos cerebrais, como de árvores ou de coelhos. Teríamos uma percepção, que precede a objetivação operada pelo pensamento científico e que dissolve literalmente tais coisas e tais eventos. A árvore que vejo é bem diferente daquela vista pelo físico ou pelo botânico (entre outros, Jacob Von Üexkull o diria, com sua  teoria do Umwelt ou mundo ambiente, tão diverso para diferentes animais, quão  diferentes são os mundos percebidos pelo lenhador e pelo engenheiro). Mais ainda, sabemos que a inspeção objetivo-científica dos processos neuronais do input luminoso através, p. ex., dos olhos da saúva (Atta sexdens rubropilosa) não nos permite inferir que ela está vendo um objeto ou uma forma colorida ou a que distância isto ocorre. No entanto, em situação de laboratório, num labirinto, podemos ver que a saúva reage a uma mudança cromática no seu percurso a uma distância de dois centímetros e meio, aproximadamente. Não recorremos aqui, de modo algum, à perspectiva de uma eventual “primeira pessoa”: de uma perspectiva estritamente “behaviorista” podemos dizer que não nos interessa o que se passa under the skin, que só o comportamento da formiga que pára, hesita e acaba por voltar para trás, permite-nos dizer que ela realmente percebeu a mudança (devo este argumento a minha esposa, Lúcia Prado que, nos anos setenta, defendeu uma tese de Doctorat d’État, na Universidade de Paris, sobre o problema da orientação das saúvas). A visão do processo neuronal subjacente não nos permite sair de nossa visão e a ela voltar causalmente a partir dele. Não se trata aqui de retornar ao cripto-kantismo de Dennett: tal hiato aparentemente nada tem a ver com nossas limitações cognitivas (de resto, de sua parte, o próprio Llinás não vê na idéia de intencionalidade apenas uma instância heurística, jamais objetivável por nossas limitações cognitivas, ou uma idéia apenas reguladora, que jamais poderia assumir função constitutiva).
     Nossas observações críticas convergem, aqui, com outras já formuladas a partir de horizontes filosóficos muito diferentes. De um ponto de vista puramente epistemológico, Sir Karl Popper parece não enganar-se, ao propor três níveis que jamais podemos confundir: o mundo da realidade física, o do pensamento humano e o mundo dos conteúdos de pensamento objetivados na linguagem (sem dar a este último o estatuto realista-platônico que Frege atribuía ao seu dritte Reich). Naturalizar a mente é fazer das teorias científicas fatos naturais que podem ocorrer ou não ocorrer, mas que, por definição, não podem ser verdadeiros ou falsos (Cf. João de Fernandes Teixeira, Mente, Cérebro,Cognição, Ed. Vozes, S.P., 2.000, onde comenta o texto de Popper e Eccles The Self and its Brain). Para Popper, o Self  não é um marionete do cérebro, talvez mesmo o caso seja o contrário. Não há dúvida de que atos mentais têm correlatos cerebrais. Se eu enunciar quaisquer proposições (p.ex: 2+2=4; 2+2=1.000; dois mais dois esbórnia amarelo-x-girafa) sempre hão de corresponder-lhes processos neuronais. Mas poderia haver processos neuronais verdadeiros, falsos ou absurdos? Se os houvesse, eu poderia tropeçar num conteúdo proposicional como tropeçamos num paralelepípedo, se é que seguindo o argumento do autor já não tropeçamos (agora em sentido apenas metafórico) em proposições falsas ou absurdas. O fato é que Rodolfo Llinás deixa pouco espaço para a linguagem em sentido estrito – a linguagem “humana” ou o lógos de que cuidam a lógica e a filosofia, jamais as ciências naturais – e dá à palavra meaning um sentido originalmente biológico: a comunicação entre as células. O que nos obriga a lembrar os belíssimos versos do poeta espanhol Rafael Alberti que, neste contexto, assumem um sentido diferente do que tinham no poema original intitulado Nocturno:

     “...las palabras entonces no sirven son palabras
         ...........................................
        Siento esta noche heridas de muerte las palabras”

     Mas, mais interessantes e próximos de nossa perspectiva são os escritos de meus colegas Jean-Luc Petit e Renaud Barbaras, que partem ambos da fenomenologia, mesmo se encaminham suas pesquisas em direções diferentes, o primeiro privilegiando a análise da ação, o segundo, a análise do desejo e do movimento. Renaud Barbaras, na linha aberta por Merleau-Ponty, que passa da idéia de corpo-próprio (ou de corpo vivido) à sua base na vida perceptiva, encontrando no ser vivo um caminho para superar a oposição metafísica entre o idealismo e o naturalismo: ou que caminha na direção de uma nova idéia de natureza que pode acolher, sem conflito, a idéia de subjetividade ou de ipseidade como algo mais que um mero epifenômeno (Cf. no já citado Naturalizing Phenomenology, o ensaio “The mouvement of the Living as the Originary Foundation of Perceptual Intentionality”, pp. 525-538). Jean-Luc Petit propõe, de sua parte, uma fenomenologia da ação, capaz de incorporar as descobertas e os modelos produzidos pelas cognitive sciences. Em lugar de naturalizar a fenomenologia, dar o necessário horizonte fenomenológico a teorias (como a proposta, em especial, por Rodolfo Llinás) das formas mais primitivas da intencionalidade. Este último escreve em seu From Neuron to Self: “Subjacente ao trabalho da percepção está a predição, isto é, a útil antecipação de eventos futuros. Predição, com sua essencial orientação para fins, tão diferente do reflexo, é o verdadeiro coração da função cerebral” (op. cit., p. 3). Paralelamente, mas de maneira mais fina filosoficamente, Jean-Luc Petit escreve na introdução do livro Les neurosciences et la philosophie de l’action (Paris, Vrin, 1997, pp. 17-18): “Essa capacidade que tem o organismo de projetar-se na dimensão do possível e do virtual, sem jamais aderir ao ser que ele é – que ele é, é verdade, unicamente do ponto de vista objetivo e exterior – este modo de ser adiante de si é de tal modo característico do ser vivo, em particular do agente humano, que parece ter-se tornado tema privilegiado da pesquisa empírica”.
     O curioso é que a leitura do livro de Llinás pode obrigar o leitor a chegar a conclusões exatamente contrárias àquelas por ele inferidas. Vejamos a frase final do capítulo 6:”As implicações do esquema proposto são de alguma importância, pois se a consciência é produto da atividade talâmica cortical, como parece ser, é o diálogo entre o tálamo e o córtex que engendra a subjetividade nos seres humanos e nos mais elevados vertebrados”. Esta frase, p. ex., seria um eco de tal diálogo. Mas será ela verdadeira, falsa ou absurda? Uma proposição “p” espelha um estado-de-coisas p, mas só ela pode ser verdadeira ou falsa. Da mesma maneira, a percepção (accessível mediante processos complexos ou técnicas impregnadas de teoria) dos processos neuronais subjacentes à percepção poderá ser só ela (e não os processos subjacentes que tais técnicas revelam) verdadeira ou falsa. De qualquer maneira, é preciso que alguém perceba as conexões entre a percepção e seu substrato .Ou, retomando nosso argumento, serão os neurônios eles próprios que, através dos estados secundários de consciência (do Self), percebem a si mesmos e enunciam proposições não só significativas como verdadeiras, a respeito de seu próprio funcionamento? A arqueologia neuronal da ipseidade desfez finalmente o mistério da consciência, mas pagando um preço elevadíssimo: transformando o materialismo reducionista num idealismo absoluto. Em lugar de evitar, como propõe Renaud Barbaras, a falsa alternativa entre naturalismo e idealismo, temos aqui uma metafísica naturalista e objetivista que se transforma subitamente no seu contrário, como uma cobra que se volta sobre si mesma, para devorar-se pelo próprio rabo. Pois, se Rodolfo Llinás tem razão, contornado o “mistério da consciência”, a ciência cognitiva é a verdade absoluta do mundo material tornado finalmente transparente para si mesmo. Mesmo Narciso, nos versos de Ovídio, era mais sutil, descobrindo que “Iste ego sum! Sensi; nec me mea fallit imago”. E Hegel, pelo menos, era mais complexo e postulava mais “mediações”. Valeria a pena “deduzir” biologicamente a reflexividade e a ipseidade do sujeito se elas já estão presentes in the heart of matter que se pensa a si mesma como o Nous Theos, o Ato Puro de Aristóteles que non curat sublunaria só pensa a si mesmo, pensamento do pensamento? O Nous Theos (em que também culmina o idealismo de Hegel), cortado de qualquer alteridade não pode, propriamente, receber o predicado da ipseidade – no máximo o da mesmidade de que escapa o próprio Narciso.
     Meu raciocínio é aqui amparado por filósofos tão diferentes como Wittgenstein e Sartre. O primeiro, que afirma que os jogos de linguagem (ou nossos usos da linguagem) e as regras que os comandam têm certamente causas na história natural, mas que tais causas jamais poderiam dar as razões do funcionamento desses jogos. O segundo, ao dizer que certamente o ser-para-si teve origem, mas que as hipóteses metafísicas sobre essa origem não podem ocupar o lugar da ontologia ou da descrição do modo-de-ser do ser-para-si. Sem esquecer a obra do formidável linguista Émile Benveniste que insiste no caráter crucial dos pronomes pessoais (eu e tu, não a terceira pessoa que não é exatamente um pronome pessoal), sem os quais o homem não pode entrar na linguagem e suportá-la, carregá-la como uma totalidade. Ele fala da linguagem natural, é claro, – do discurso – e não necessariamente da linguagem científica; mas como imaginar a linguagem científica (mesmo a matemática) completamente desenraizada de nossa linguagem “natural”? Os limites lógicos da formalização são arqui-conhecidos e dispensam argumentação suplementar  .

    Para concluir, que nos diz Rodolfo Llinás? No fundo, conta-nos uma nova versão do Gênesis, onde no princípio não estava o verbo, mas, como já dizia Goethe, a ação.  Começamos assim um pouco mais tarde que o Velho Testamento, com a frase Fiat lux e a luz foi feita. Na obscuridade da massa cinzenta encerrada pelo exoesqueleto do crânio fulguram tempestades elétricas que o transcendem e iluminam a totalidade do Cosmo. Temos aí uma explicação científica não só da gênese da consciência, mas da estrutura da própria ciência.  Tudo se passa no nível dos fatos e não há o essencial hiato kantiano entre a questão quid facti? e a questão quid juris?. Mas não era a solução transcendental mais razoável – embora chocante para o senso comum, mas apenas para ele, que não é bom juiz na matéria? A distinção entre o sujeito transcendental e o sujeito empírico permitia conciliar a síntese da apercepção pura – alma do idealismo crítico – com o realismo empírico, sem qualquer prejuízo para a inegável autonomia do conhecimento científico do mundo exterior. Era já quase uma perspectiva de superação da alternativa naturalismo/idealismo. Será preciso operar mais um retorno a Kant? Em todo caso, nesta Aurora do século XXI estamos mesmo em plena segunda metade do século XIX. A esperança é que surjam, novamente, pensadores da estatura de um Frege, de um Husserl, de um Bergson.
     Mas é difícil imaginá-lo, hoje, num Império dominado por figuras rústicas como Bush, Schwarzenegger, Charlton Heston (antecipados no século passado por Ronald Reagan). O mundo atual nada tem a ver com o filme Matrix, que desfaz sua concretude no fluido impalpável do virtual – parece antes com A Rosa Púrpura do Cairo de Woody Allen, onde o bom mocinho abandona o mundo imaginário projetado na tela para circular, com seu bom coração e seu capacete branco de explorador da África, entre os espectadores no mundo real. Mas de modo diferente: são os duros cowboys do cinema que saltam da tela, de arma em punho, para impor o seu domínio sobre todo o planeta.




* Fazenda Jandaia, SP, 26-31/ VII/ 2004