Jeune Fille se Defendant Contre L'amour (1880).
Pintura de William-Adolphe Bouguereau (1825-1905).
Entre a publicação de A vontade de saber (1976) e O uso dos prazeres (1982), decorreram-se longos seis anos, devido à viragem na pesquisa foucaultiana; precisamente, o momento em que Foucault descobre o biopoder e vê, nos modos de subjetivação, a possibilidade de resistência em relação ao biopoder. Isso o conduz à Antiguidade Grego-romana do Alto Império na busca pelos modos de subjetivação gregos, da constituição de uma tekhné toû bíou (uma arte da vida). O uso dos prazeres será, nesse sentido, o primeiro livro em que Foucault trabalhará com a noção de modo de subjetivação a partir da tradição greco-romana. Ao finalizar seu Nascimento da Biopolítica – curso proferido entre os anos de 1978-1979, ao cabo do curso do biênio de 1979-1980, Foucault apercebe-se de que toda a problemática de seu trabalho voltava-se não meramente para a questão do poder, ou das disciplinas, ou mesmo da loucura – os quais, inequivocamente, representam grande feixes de temas contemplados em sua obra; o curso daquele ano, ainda não publicado, abre, a partir da análise do poder pastoral e da condução da vida – problema intrinsecamente relacionado com o problema da governametalidade, que aparece em sua obra no seminário do biênio de 1977-1978, Securité, Territoire, Population –, a possibilidade de retornar à questão que, quase imperceptivelmente havia conduzido toda a sua pesquisa. É apenas no trânsito que se faz entre o sujeito, a subjetividade e a verdade – enfim, da relação do sujeito com a verdade – que apareceriam temas como o poder, as disciplinas, a normalização, o controle, o governo, a governamentalidade, a loucura etc. É a conclusão a que chega em Le gouvernement de soi et des autres I (1982-1983), quando admite a possibilidade de pensar, a título de história dos sistemas de pensamento, a análise das representações em função do conhecimento considerado como critério de verdade.
Em O uso dos prazeres, Foucault dedica uma introdução a fim de fixar esse deslocamento em sua obra, bem como de apresentar o novo fio condutor do tema da sexualidade. Ali, Foucault revela que tinha em mente realizar uma história da sexualidade enquanto experiência – se entendemos por experiência “a correlação, numa cultura, entre campos de saber, tipos de normatividade e formas de subjetividade”. Isso tudo, evidentemente, renegando a hipótese repressiva; vale dizer, evitando colocar a sexualidade como invariante que sofre alterações em função dos diversos mecanismos de repressão encontrados na sociedade em um dado período.
Ao notar que falar da sexualidade implicaria dispor de instrumentos para analisar a formação dos saberes referente a ela, os sistemas de poder que regulam suas práticas e as formas pelas quais os indivíduos podem reconhecer-se como sujeitos de uma tal sexualidade – temos, portanto, sobre a sexualidade, três eixos analítico: poder, saber e subjetividade –, o faz ter de rever o projeto inicial, pois não dispunha de instrumentos de análise sobre o último ponto, a subjetividade. Parecendo-lhe estranha a noção de um sujeito de desejo que pareceia ter sido, à primeira vista, herdada de uma longa tradição cristã que vai desaguar na sexualidade moralizada e medicalizada dos séculos XIX e XX, Foucault vê-se obrigado a descer às raízes das práticas de si cristãs e, assim, chega ao mundo greco-romano, tendo de organizar muito lentamente, como confessa, seus estudos ao derredor da formação de uma hermenêutica de si na Antiguidade.
Justamente as formas de relação do sujeito consigo é lhe chamam a atenção, e a anotação de que muito dessas tecnologias de si teriam sido aproveitadas pelo cristianismo, mas com um fundo redecorado.
Entre os gregos, com o auxílio de muitos intelectuais que tinham por objeto de estudo a filosofia antiga (e.g., P. Hadot e Peter Brown), Foucault aproxima-se lentamente de textos pelos quais, apesar de não ter muita intimidade, logo se afeiçoa, e sai à busca de analisar os jogos de verdade, do verdadeiro e do falso, por meio dos quais o ser se constitui historicamente. Não se trata de admitir a priori o sujeito como sujeito de desejo, mas de perguntar-se “Através de que jogos de verdade o ser humano se reconheceu como homem de desejo?”. Em seguida, perguntar-se exatamente por que motivo o comportamento sexual, as atividades relacionadas ao prazer, tornaram-se objeto de uma preocupação moral – mesmo entre os gregos?
Para responder a tais questões, Foucault conceitua as artes de existência como “praticas refletidas e voluntárias através das quais os homens não somente fixam regras de conduta, como também procuram se transformar, modificar-se em seu ser singular e fazer dessa vida uma obra que seja portadora de certos valores estéticos e responda a certos critérios de estilo”. Foucault reconhece que tais técnicas perdem muito de sua centralidade a partir do momento em que são integradas, com o cristianismo, a um certo poder pastoral e, mais tarde, em práticas de tipo pedagógico, médico, psicológicos. Nesse sentido é que o estudo do regime dos aphrodísia gregos podem constituir um capítulo dessa história geral das técnicas de si, participando de um certo modo de problematizar, próprio à Antigüidade, os prazeres sexuais pondo em jogo uma estética da existência.
Pontualmente, O uso dos prazeres destina-se a compor a maneira pela qual os filósofos e os médicos na cultura grega clássica, no século IV a.C., problematizavam a questão da sexualidade; segue-se, assim, O cuidado de si, que se dedica a tal problematização entre os gregos e latinos nos séculos I e II d.C. e, por fim, em um livro que se chamaria As confissões da carne, Focault trataria da formação da doutrina e da pastoral da carne. Livro, esse, a cujo respeito ainda hoje se assomam as mais diversas especulações.
Tendo em presença que os textos antigos eram textos para serem lidos, meditados, utilizados, postos à prova e visavam, de modo geral, a constituir a armadura da vida cotidiana dos sujeitos, Foucault pretende dedicar-se a textos práticos e, em certo nível, prescritivos, que participam, no dizer de Plutarco, de uma função etopoética ao formarem os sujeitos e colocaram suas condutas à prova.