Foto: Mulher-com-cabeça-de-leoa:
estátua de Sekhmet,deusa egípcia da guerra e das doenças
Antropogênese
Giorgio Agamben
Tentemos enunciar sob a forma de teses o resultado provisório da nossa leitura da máquina antropológica da filosofia ocidental:
1) A antropogênese é o que resulta da cesura e da articulação entre o humano e o animal. Essa cesura passa, antes de mais nada, ao interior do homem.
2) A ontologia, ou filosofia primeira, não é uma inócua disciplina acadêmica, mas a operação em todo sentido fundamental em que se atua a antropogênese, o tornar-se humano do vivente. A metafísica é apanhada do início ao fim nessa estratégia: ela concerne, precisamente, àquela metá que completa e custodia a superação da phýsis animal em direção à história humana. Essa superação não é um evento que se cumpre de uma vez por todas, mas um acontecimento sempre em curso, que decide a cada vez, e em cada indivíduo, sobre o humano e o animal, sobre a natureza e a história, sobre a vida e a morte.
3) O ser, o mundo, o aberto não são, contudo, qualquer coisa diversa do ambiente e da vida animal: esses não são senão a interrupção e a captura da relação do vivente com seu desinibidor. O aberto não passa de uma captura do não-aberto animal. O homem suspende a sua animalidade e, desse modo, abre uma zona “livre e vazia” na qual a vida é capturada e abandonada em uma zona de exceção.
4) Mesmo porque o mundo é aberto pelo homem unicamente através da suspensão e da captura da vida animal, o ser é já sempre atravessado pelo nada, a Licthtung é já sempre Nichtung.
5) O conflito político decisivo, que governa todos os demais conflitos, é, na nossa cultura, aquele entre a animalidade e a humanidade do homem. A política ocidental é, a saber, co-originariamente biopolítica.
6) Se a máquina antropológica era o motor do devir histórico do homem, agora, o fim da filosofia e a realização das destinações epocais do ser significam que a máquina gira, hoje, em vão.
7) Dois cenários são, nesse ponto, possíveis na perspectiva de Heidegger: a) o homem pós-histórico não custodia mais a própria animalidade enquanto arcano, mas procura governá-la e tomá-la a seu cargo através da técnica; b) o homem, o pastor do ser, apropria-se da sua própria latência, da sua própria animalidade, que não resta escondida, tampouco é convertida em objeto de domínio, mas é pensada como tal, como puro abandono.
• Tradução do original, em italiano, AGAMBEN, Giorgio. Antropogenesi. In: L’Aperto. Torino: Bolatti Boringhieri, 2003, p. 81-82.
•• Professor de Filosofia do Direito e Teoria do Direito, vinculado ao Departamento de Propedêutica do Direito da Faculdade de Direito do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA); Professor do Curso de Direito do Centro de Ciências Sociais e Aplicadas da Fundação de Estudos Sociais do Paraná (CCSA/FESP-PR). Mestre em Filosofia e Teoria do Direito pelo Curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (CPGD/UFSC). Graduado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (FD/UFPR).
P.S.: a traduçao foi publicada em 23.07.2010 no site O Estrangeiro.Net. Link.