Advertência
Este artigo nasceu das intervenções que fizemos no curso de uma troca de mensagens entre membros d’O pensador selvagem. Agradecemos a Rafael Reinehr, Camila S. e Rodrigo Cássio, cujas participações possibilitaram que este texto viesse à luz. Em um momento em que as discussões sobre o Acordo Comercial Anticontrafação desintensifica-se na internet e, especialmente, na blogosfera, acreditamos que o período eleitoral que atualmente transcorre no Brasil – com sorte – poderia servir à compreensão da extensão formal dos propósitos do ACTA, bem como de suas limitações diante do ordenamento jurídico brasileiro, especialmente naquilo que o ACTA toca mais sensivelmente para poder funcionar: os direitos e garantias fundamentais.
No quadro do esvaziamento político das eleições brasileiras, atualmente em curso, e da repentina precedência que os direitos fundamentais do candidato do PSDB, e de pessoas próximas a ele, parecem ter ganhado na mídia impressa e televisionada – a ponto de Mônica Valdwogel, em recente entrevista, esquecer-se de que a presunção de inocência da acusada, candidata do PT, é, igualmente, direito humano fundamental, e afirmar resolutamente que “se há uma investigação, então não se pode dizer que é inocente” -, talvez fosse o caso de questionarmos os candidatos e seus partidos sobre sua concreta visão acerca dos direitos humanos, especialmente de um ponto de vista interno. As respostas, assim como a proposição um tanto cambaia da “jornalista” do programa Entre Aspas, da Globo News, poderia lançar luzes sobre a sobrevivência do legado autoritário brasileiro no interior de instituições formalmente democráticas de nosso país. Justamente em razão disso, a relação dos brasileiros com os Direitos Humanos é intensamente contraditória e paradoxal, e, se assim for, deveremos preocupar-nos cada vez mais com propostas como o ACTA, e exigir dos eleitos – sejam eles quem forem, e sejam quais forem os cargos que ocupem - a indeclinável posição de defesa política e institucional dos direitos humanos inscritos em nossa Constituição e assegurados pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos.
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O que é o ACTA? E o Brasil com isso?
As discussões acerca do Acordo Comercial Anticontrafação ou Acordo Comercial Antifalsificação – Anti-Counterfeiting Trade Agreement (ACTA), em inglês – aumentaram nos últimos meses, após a publicação, datada de 25 de março, de um esboço do documento, que, desde 2007, está sendo negociado por Austrália, Canadá, Cingapura, Coreia do Sul, Emirados Árabes, Estados Unidos, Japão, Jordânia, Marrocos, México, Nova Zelândia, Suíça e União Europeia.
Entre as medidas de prevenção e repressão às práticas que o ACTA define como falsificação e pirataria estão, por exemplo:
· criminalização da troca não comercial de arquivos pela rede mundial;
· interceptação de comunicações sem autorização judicial;
· incumbência aos provedores de acesso das atividades de vigilância do tráfego de arquivos e de imposição de sanções ao usuário que baixar e/ou disponibilizar arquivos protegidos por direitos autorais – a vigilância, na medida em que incide sobre o conteúdo dos arquivos, pode ser caracterizada como uma violação ao sigilo das comunicações e um avanço indevido sobre a esfera da privacidade e da intimidade; enquanto a aplicação de sanções aos usuários pode ser definida como um exercício do poder de polícia por particulares, prática ilegal, porque o poder de polícia é prerrogativa do Estado;
· penalidades de diminuição da velocidade de conexão e de interrupção do acesso à rede, para o usuário que, supostamente, infringir a legislação de direitos autorais – como um endereço de IP pode ser compartilhado ou brevemente utilizado por vários usuários, a pessoa que for o objeto da punição, o usuário em nome de quem está registrado o endereço de IP poderá não ser o usuário que infringiu a legislação;
· possibilidade de que uma penalidade passe da pessoa do infrator – em uma situação de compartilhamento de endereço de IP, todos os usuários serão punidos pelo crime imputado à pessoa em cujo nome estiver registrado o endereço, caso a pena cominada seja a diminuição da velocidade de conexão ou a interrupção do acesso à rede.
Como os Estados envolvidos no processo de confecção do ACTA pretendem que, posteriormente, essas e outras medidas de prevenção e repressão à falsificação e à pirataria sejam adotadas também pela maioria dos países remanescentes, quais seriam as consequências que poderiam advir para os usuários brasileiros da rede mundial, se nosso país assinasse o tratado?
Dos cinco exemplos acima, todos, com exceção do primeiro, são medidas que desrespeitam os direitos e as garantias individuais declarados na Constituição Federal. Contudo, o fator relevante, que torna muito improvável que o ACTA venha a ser assinado pelo Brasil no atual ordenamento jurídico, é a proteção especial assegurada aos direitos e garantias individuais, que são definidos como cláusulas pétreas. No art. 60, § 4º, da Constituição, está arrolada uma série de tópicos para os quais não se admite nem sequer proposta de emenda constitucional tendente a aboli-los. Entre esses tópicos estão os direitos e as garantias individuais, a maioria dos quais inscrita no art. 5º da Constituição, cuja supressão, com vistas à adoção das disposições do ACTA, somente seria possível caso se abolisse a totalidade da ordem constitucional vigente.
Sem embargo daquilo que foi exposto no parágrafo anterior, suponhamos que o Presidente da República assinasse o ACTA.
Nossa Constituição é de tipo rígido – ou “super-rígido”, em face justamente da previsão de cláusulas pétreas –, o que significa que, na parte em que pode ser alterada, é necessário um procedimento legislativo especial para que o texto constitucional possa ser emendado (CF, art. 60, § 2º). Esse regramento torna a aprovação de uma emenda à Constituição um processo mais dificultoso e lento do que o processo adotado para a promulgação e a alteração de uma lei ordinária ou mesmo de uma lei complementar. O objetivo é assegurar uma estabilidade mínima ao texto constitucional, para que a obra do constituinte originário não seja desfigurada pelo constituinte derivado. A rigidez acarreta como resultado a supremacia da Constituição, situando-a no ápice do ordenamento jurídico. (Em Estados que adotam uma Constituição de tipo flexível, o texto constitucional pode ser modificado pelo mesmo processo de promulgação e de alteração da legislação infraconstitucional. Na prática, a Constituição não se distingue formalmente, mas apenas materialmente, ou seja, pelo conteúdo, da legislação não constitucional.) Por conseguinte, toda a legislação infraconstitucional, bem como as emendas constitucionais, devem estar em harmonia com a Constituição, devem respeitá-la irrestritamente; do contrário, serão inconstitucionais e deverão ser retiradas do ordenamento jurídico.
Tradicionalmente, o Poder Judiciário é o poder incumbido da função de realizar o controle de constitucionalidade da legislação infraconstitucional e das emendas constitucionais, porque sua função precípua consiste em aplicar a legislação na solução de litígios, interpretando-a corretamente. No Brasil, todos os juízes de primeira instância e todos os tribunais podem declarar a inconstitucionalidade de uma lei ou de um ato normativo, afastando sua aplicação a um caso concreto. Nesta hipótese, os efeitos atingem somente as partes envolvidas. Todavia, apenas o tribunal encarregado pela própria Constituição da atribuição de zelar pela preservação da integridade do texto constitucional – a corte constitucional (Supremo Tribunal Federal - STF) – tem competência para realizar o controle abstrato de constitucionalidade, que consiste em aferir a conformidade de uma lei, de um ato normativo ou de uma emenda constitucional em relação exclusivamente à Lei Maior (CF, art. 102, I, “a”). No controle abstrato, se o STF concluir que uma emenda constitucional, uma lei ou um ato normativo é inconstitucional, não ocorrerá a suspensão da aplicação da norma impugnada a um caso concreto, porque não há a análise de uma situação fática, mas apenas a análise de normas jurídicas gerais e abstratas. Assim, no controle abstrato, cujos efeitos são erga omnes, valem contra todos, o STF retirará a norma impugnada do mundo jurídico, seja porque é materialmente inconstitucional, isto é, porque desrespeita o conteúdo da Constituição, seja porque é formalmente inconstitucional, isto é, porque não foram observadas as regras, definidas na própria Constituição, para a promulgação de emendas constitucionais, leis e atos normativos.
Consoante a Constituição, compete privativamente ao Presidente da República celebrar convenções e tratados internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional (CF, art. 84, VIII). Quando celebra uma convenção ou um tratado internacional, o Presidente da República não atua como chefe de governo, mas na condição de chefe de Estado, ou seja, atua como o representante de um Estado soberano. Portanto, a celebração de convenções e tratados internacionais fundamenta-se no poder de soberania, em cujo exercício, atribuição privativa do Poder Executivo, nem o Poder Legislativo nem o Poder Judiciário podem interferir.
Conquanto seja competência privativa do Presidente da República, como representante do Estado soberano, a decisão de celebrar ou não celebrar uma convenção ou um tratado internacional, existe possibilidade de controle da atividade presidencial pelos poderes Legislativo e Judiciário – mas não a priori, somente a posteriori. Nenhum dos dispositivos de uma convenção ou de um tratado internacional terá vigência no âmbito do Estado brasileiro se o documento não for referendado pelo Congresso Nacional. O Congresso pode referendar integralmente uma convenção ou um tratado, pode referendá-lo parcialmente ou pode não referendá-lo. Evidentemente, cláusulas de um documento internacional que sejam inconstitucionais não devem, ou melhor, não podem ser referendadas. Entretanto, caso aconteça de o Poder Legislativo referendar uma convenção ou um tratado contendo uma ou mais cláusulas que afrontem a Lei Maior, o STF poderá e deverá declará-las inconstitucionais em relação à Constituição da República Federativa do Brasil, caso seja acionado por um dos órgãos autorizados a impetrar uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (CF, art. 103, I-IX). Nesta situação, a declaração de inconstitucionalidade resultará na inaplicabilidade, no âmbito da ordem jurídica brasileira, da parte impugnada do documento internacional. Note-se que o STF não pode retirar do ordenamento jurídico pátrio uma convenção ou um tratado, porque sua celebração é um exercício do poder de soberania, que compete privativamente ao Poder Executivo. O STF apenas declara que o documento ou parte dele é inaplicável, porque inconstitucional, na ordem jurídica interna.
Ainda que um chefe de Estado esteja disposto a se expor a um sério risco de perda de prestígio político, assinando uma convenção ou um tratado que contrarie a Constituição de seu país, via de regra, ressalvada uma expressa disposição de vontade estatal em contrário, a mera assinatura de um documento internacional não obriga o Estado signatário. Em geral, a assinatura somente autentica o texto, como prevê o art. 10 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados. Embora o art. 11 estabeleça que o consentimento de um Estado em obrigar-se por uma convenção ou um tratado possa ser manifestado no ato de assinatura do documento internacional, a prática não é comum em países que se pretendem democráticos. Normalmente, assina-se apenas para que o texto seja autenticado, ressalvando-se que a vigência da convenção ou do tratado passará a ocorrer posteriormente, com a ratificação do texto pelo Poder Legislativo do país signatário (Convenção de Viena, arts. 12 e 14, respectivamente).*
À guisa de conclusão, atentemos para quatro importantes princípios fundamentais da Constituição, previstos no Título I, que enuncia os fundamentos, os objetivos e os princípios da República Federativa do Brasil, os quais constituem o horizonte de interpretação do todo constitucional e da totalidade da ordem jurídica nacional. O art. 3º, I, determina como um dos objetivos fundamentais do Estado brasileiro a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. O art. 4º, I, estabelece que nosso país deve se orientar, em suas relações internacionais, pelo princípio da independência nacional. Finalmente, os incisos II e IX do art. 4º preceituam, respectivamente, que o Brasil se regerá, em suas relações internacionais, pela prevalência dos direitos humanos – o que implica estrita vinculação do Estado à positiva efetivação dos direitos e garantias fundamentais (CF, art. 5º-17), parte dos quais frontalmente atacada pelo ACTA –, bem como pela “cooperação entre os povos para o progresso da humanidade”.
Por tudo o que foi apresentado, podemos concluir que, devido ao ordenamento constitucional que ora prevalece, um cenário em que as disposições do ACTA tenham vigência no Brasil afigura-se como um futuro improvável.
Não obstante, como nos recorda Gaston Bachelard, nunca é demais mantermos a vigilância crítica.
* Texto publicado originalmente em 05.09.2010 na Coluna "Suscitar acontecimentos", do site O Pensador Selvagem, sob o título: "ACTA, direitos humanos e eleições".
* A própria Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, promulgada no Brasil pelo Decreto n. 7.030/09, foi referendada pelo Congresso Nacional com reserva aos artigos 25 e 66.