Para quem viu apenas a capa, deve causar espanto, e esperada estranheza, que um Programa de Pós-Graduação em Direito se disponha a lançar, em meio a obras de maior escol jurídico, um livro intitulado Ódio ao direito.
O título soa como uma heresia, uma blasfêmia que nos faria perguntar: quem ousa entrar num sacrossanto templo do saber especializado, e parece tratar a pontapés os ídolos que o ornamentam? Demolir suas paredes? Perfurar o seu teto? Escavar seu rés-do-chão pelo mero doce prazer de desenterrar as suas fundações e expô-las à poderosa luz do sol?
Há muitas boas razões para se sentir assim. Mas o espanto deveria ser todo outro, porque o livro é, de todo, o revés de uma provocação – e essa talvez seja a maior provocação possível.
Ódio ao direito condensa 15 anos de trabalho sobre Deleuze e o direito. Foi escrito em 2023, numa temporada de pós-doc em Buenos Aires, nas instalações da Biblioteca Nacional Argentina – aquela que, um dia, foi dirigida por ninguém menos que Jorge Luís Borges. E como quem não leva nada nas mãos, senão um delicado fio de Ariadne, todos os dias eu entrava naquela biblioteca como quem estivesse à procura de um labirinto.
O labirinto que encontrei tem muitos nomes: ele é a Biblioteca Nacional Mariano Moreno, a literatura de Borges e Cortázar, os mil campi da Universidade de Buenos Aires, a cozinha ítalo-mundo-argentina, os bosques de Palermo, pelos quais corri sem jamais querer parar, os passeadores de cães conduzindo 20 ou 30 focinhos molhados de cada vez, o barulho infernal que faz naquela cidade linda e poluída, o som inconfundível do sotaque porteño, os gatos da vizinhança dos quais me tornei amigo, os incontáveis sebos de Buenos Aires que se repartem pela cidade em milhões de entradas cambiantes…
Ódio ao direito tem também um pouco desse labirinto, que, enquanto falamos, está sendo traduzido ao castelhano por Gonzalo Aguirre (Prof. da UBA), e que vai ser publicado pela Cactus Editorial (uma das maiores editoras da Argentina). Lá, o nosso labirinto vai se chamar “A jurisprudência dos corpos: Deleuze e o direito”.
Meus editores no Brasil, amigos da sobinfluencia - que em tempos de Kindle reinventaram a arte de fabricar livros-objeto -, também têm uma história linda. Conta a lenda que numa noite um dos editores sonhou com a frase que lhes convenceu a abrir a editora: ler e caminhar podem salvar sua vida ou te levar para a cadeia. Uma frase que Thoreau assinaria embaixo.
Assim como não vale a pena editar nada que não possa salvar a nossa vida ou nos levar para a prisão, tampouco vale a pena escrevê-lo. Então, esse livro, que não é uma provocação, é também uma tentativa de escrever algo que valha a pena ser escrito e lido, mesmo que possa nos levar a todos para a cadeia.
Esse é um livro que irritaria os filósofos de profissão. Ele não pretende, e não se baseia, em nenhuma autenticidade filosófica. Sendo um livro sobre Deleuze e o direito (não sobre o direito com Deleuze, nem sobre o direito de Deleuze), é um livro que, eu espero, agradará aos juristas. Isso porque, como tudo em direito, ele é feito de relações, fabulações e operações criativas. Ele tenta, inclusive, tirar os Deleuze studies e o Critical Legal Thinking do seu torpor e imobilismo político atual.
Sem ingenuidades nem academicismos, o livro tenta tecer relações outras, ampliá-las, lançá-las a meios e materiais heterogêneos e ultra-jurídicos. Ousa dizer que o direito é uma usina de agenciamentos tecnossociais. Que o direito é, como a música e os algoritmos, uma arte da composição de relações social e tecnicamente instanciadas. O tipo de arte que não se faz com normas, com linguagem, com abstrações lógicas ou com moral, mas, sim, com corpos. Com uma matéria mais ardente que os corpos e as palavras. Com o desejo social e seus investimentos potentes e perigosos.
O direito é um esquematismo e um expressionismo das lutas. Embora nossas OABs e assinaturas judicantes pareçam indicar o contrário, nós, juristas, não temos nenhuma prerrogativa sobre ele, porque o direito é inseparável do campo social. Ele próprio, uma matéria associativa, um imenso tear de tecer relações novas e imprevistas. Daí porque ele precisa ser controlado. Daí porque, de repente, ele se tornou o objeto exclusivo de sábios-especialistas e jurisperitos.
Mas o direito, tal como o sonho, e tal como eu me apaixonei por ele, e tal como as pessoas o vivem (e alguns juristas também!), é uma fábrica de relações entre humanos, não-humanos, meios ecológicos e materiais diversos. Uma ecologia de relações fabricadora de mundos inconstantes. Um campo imediatamente social e tenso, povoado por grupos de usuários, atravessado por problemas meta-estáveis, sempre a ponto de se precipitarem em outra coisa e, diante de nossos olhos incrédulos, inventarem novas soluções, relações e composições entre corpos e mundos.
Se, como quis Espinosa, um corpo se define pelo poder de afetar e ser afetado, então o direito é uma ecologia de relações, um sistema de composições, e funciona como uma jurisprudência dos corpos.
Juristas que não se admiram com o novo nascido das operações do direito, ignoram o que estão fazendo de suas burocráticas rotinas. Juristas que não sabem tirar da repetição a diferença deveriam abdicar hoje mesmo de seus cargos. O direito é um trabalho da diferença e da invenção, em relação às quais a similitude e a repetição não passam das formas mais pobres e contraídas do novo, que sempre se insinua – mesmo no que talvez haja de mais repetitivo e rotineiro na prática do direito.
Como vocês vêem, esse livro não poderia ser mais translacional, e nem poderia estar mais distante de uma mera provocação negativa. Ele é um elogio do direito — não das suas capacidades para julgar, mas da sua potência germinal de fazer existir.
Para terminar, lembro que um de meus mentores intelectuais, o filósofo do direito Luis Alberto Warat, costumava dizer que as Constituições estão cheias de promessas de amor — o problema é que Estados, governos, instituições e homens da pequena política não raro as frustram e vilipendiam como se elas não fossem nada. Também esse livro está cheio de promessas de amor. De enigmas amorosos que apenas aguardam que vocês o abram para serem desvendados.
Esse livro é a declaração que fiz ao vento de uma redescoberta amorosa em pleno voo. A redescoberta das brasas ainda incendiárias do meu amor pelo direito, da minha paixão pelas suas operações, do reencantamento possível e político das suas práticas mais cotidianas. Essa é a redescoberta que, com Ódio ao direito, eu gostaria de convida-los a fazer comigo e por sua própria conta. Hoje e a cada dia.
Boa noite e obrigado.
* Texto lido em 25.04.2025, no CEPPODI/UEPG, por ocasião de seu lançamento no PPGD/UEPG.
** A imagem que ilustra o post é a o do beijo de Richard e Mildred Loving, casal interracial, cuja história (e case law) pode ser conhecida em Duignan, B. (2025, March 21). Loving v. Virginia. Encyclopedia Britannica. https://www.britannica.com/event/Loving-v-Virginia
Ainda, nesta matéria do NYT: https://www.nytimes.com/2012/01/27/arts/design/the-loving-story-at-international-center-of-photography.html