Máquinas de fazer sorrir: notas sobre uma economia da felicidade

25 novembro, 2009


por Murilo Duarte Costa Corrêa

1. Em 1972, Jigme Singye Wangchuck, soberano do Butão, criou o termo FIB (Felicidade Interna Bruta) ao responder à crítica de um jornalista que afirmava, a partir do PIB (Produto Interno Bruto), que a economia butanesa apresentava uma miserável taxa de crescimento.

2. No fim do ano de 2009, a cidade de Foz do Iguaçu – conhecido acesso ao consumo de importados por encontrar-se incrustada na fronteira entre Argentina, Brasil e Paraguai –, recebeu a 5º Conferência Internacional sobre o índice FIB, de Felicidade Interna Bruta, sob o título “Felicidade Interna Bruta na prática”.

3. Os critérios avaliados pelo índice, grosso modo, são nove: (1) o bem-estar psicológico, o atual estado de satisfação do indivíduo e grau de otimismo em relação ao futuro; (2) a saúde, avaliada acerca da eficiência de políticas de saúde sob o enfoque na auto-avaliação do sujeito sobre sua própria saúde, invalidez, comportamentos de risco etc; (3) gestão equilibrada do tempo (relação entre tempo empregado em atividades comunitárias, de educação e lazer e tempo gasto com tráfego no interior das cidades, no trabalho etc.); (4) vitalidade comunitária, que diz respeito ao nível de interação, à sensação de pertencimento, a segurança em casa e na comunidade, e práticas de voluntariado; (5) educação, formal e informal, avaliada inclusive a partir de competências, valores e educação ambiental; (6) cultura, cuja analise tem por base as práticas rituais, festividades, os níveis de possibilidade de manifestações artísticas e os índices de discriminação baseados em etnia, religião etc.; (7) meio ambiente, avaliado com base na percepção dos cidadãos em razão  qualidade da água, do ar, do solo, e da biodiversidade. Os indicadores incluem acesso a áreas verdes, sistema de coleta de lixo, etc.; (8) governança, que afere como a população enxerga o governo, a mídia, o judiciário, o sistema eleitoral, e a segurança pública, em termos de responsabilidade, honestidade e transparência. Também mede a cidadania e o envolvimento dos cidadãos com as decisões e processos políticos; (9) padrão de vida, que avalia a renda individual e familiar, a segurança financeira, o nível de dívidas, a qualidade das habitações, etc.

4. Michel Foucault analisara, no curso do biênio 1978-1979, intitulado Nascimento da biopolítica, todo o iter econômico-político que conduziria a Alemanha, a França e os Estados Unidos a um projeto liberal. Sua manifesta intenção, no curso, era a de falar sobre as condições sob as quais uma modificação operava-se no seio do governo dos homens, fazendo-o assumir, vez por todas, o encargo da vida: trata-se do biopoder ou da biopolítica. O liberalismo econômico, como forma de governo, pôde embasar duas vias substancialmente distintas, na Alemanha e na França: de um lado, sustentar um Estado nascente sobre o mercado, no caso alemão, de modo que não havia sequer estrutura estatal para limitá-lo, mas era o caso de constituir o Estado circunscrevendo-o a partir da economia de mercado. Do lado francês, o liberalismo fez frente ao desafio de limitar o poder por meio da afirmação de liberdades consideradas fundamentais, segundo um esquema paradoxal de produção, organização, consumo e destruição de liberdades. Nos Estados Unidos, toda uma aplicação da grade de análise econômica, e de seus princípios de inteligibilidade, aos fenômenos sociais complexos, gerando uma economização de todo o campo social, permitiu que se desenvolvesse, sobretudo, uma vitalpolitik. Para os gregos, economia (οικοηομία) era o governo de uma casa, do όικος, o lugar em que se vive.

5. As modernas Cartas de Direitos Humanos, numa realização documental da mesma política que fundara a pólis grega, em Aristóteles, incumbiram o esquema político-governamental, territorializado no Estado-Nação, de produzir as formas de vida como estratégia governamental total. Assim, as formas de vida, desviantes ou normais, socialmente desejáveis ou não, tornam-se coextensivas das formas de vida modelares produzidas pela biopolítica contemporânea – aquilo que Giorgio Agamben definira como o dar forma à vida de um povo. Não é por acaso que a Constituição dos Estados Unidos da América declara ser um direito humano fundamental a persecução da própria felicidade (the pursuit of happiness). Extraído historicamente do individualismo liberal, o direito de perseguir à própria felicidade tornou-se, hoje, o direito de gozar uma boa, e irrestrita, felicidade. O que antes era um direito negativo – os aparelhos de Estado não deveriam obstar o exercício do direito de cada um perseguir a própria felicidade –, tornou-se, a partir da implantação do modelo de Estado de bem-estar social (Welfare State), uma incumbência das políticas governamentais. Propiciar e chancelar o bem-estar psicológico, a sensação de satisfação e conforto em relação à própria vida, instituídos como tarefa da política, não deixa de ser uma das mais atuais estratégias de subjetivação-dessubjetivação. Na medida em que faz as vezes de aferidor desse “gozo-vivente”, o índice FIB (Felicidade Interna Bruta), não por acaso, privilegia e chancela a percepção subjetiva do cidadão, como ato final da completa destituição da possibilidade de governarmos nossas próprias vidas – isto é, da possibilidade de estabelecer qualquer relação consigo mesmo: isso que, em Michel Foucault, inaugurava o ‘resistir’, a dobra da força do de-fora, como dissera Gilles Deleuze.

6. A governamentalidade contemporânea passa, dentre outras estratégias de subjetivação-dessubjetivação, por encarnar a função que o gozo decepcionante (Gilles Lipovetsky) das sociedades espetaculares e de consumo (Guy Débord) não pode encampar completamente: uma máquina de fazer sorrir. Desde os gregos, a felicidade foi convertida em tarefa da política, mas a felicidade sem possibilidade de pensamento não pode ser mais que um gozo, um sentimento reativo: não pode nada, senão permanecer no continuum desse gozo. A felicidade, aferida segundo as formas de vida governamentais, normais ou desviantes – pouco importa – implica, em verdade, uma das realizações finais da biopolítica: separando a vida da forma de vida, sacraliza-se não apenas a vida, mas também a forma que essa vida pode assumir; interdita-se o próprio acesso à política, à comunidade, à felicidade.

7. Por outro lado, na ponta extrema de uma linha de fuga, político já é o ser, já é a diferença; comum, já é a experiência do pensamento. A felicidade, capturada pelo aparelho de estado como uma tarefa governamental, não pode ser incumbência da política. Desde Spinoza, a vida beata (feliz) é a própria vida filosófica. Enquanto isso, ainda em sentido spinozano, padecemos de uma paixão: sujeitamo-nos à servidão ao não conseguirmos despregarno-nos de nossos próprios afectos; conservamos, apenas impotência – a mesma impotência do gozo imóvel do consumo ou do riso fácil, que saem automáticos e fluidos da máquina de fazer sorrir.
Uma última palavra sobre a felicidade como tarefa da filosofia, deixo para a Ethica spinozana: “Quando a mente considera a si própria e sua potência de agir, ela se alegra, alegrando-se tanto mais quanto mais distintamente imagina a si própria e a sua potência de agir.” Dito isso, já não será impossível compreender por que a captura da tarefa de prover a felicidade dos homens pela governamentalidade biopolítica implica, ao mesmo tempo, a destruição da experiência do pensamento como da possibilidade de toda política: daquilo a partir de que se pode fazer comunidade: potentia intellectus.