"A justiça e o perdão em Jacques Derrida", por Cláudia Perrone-Moisés

14 maio, 2010


O perdão, para Derrida, não deve ser banalizado, é sempre excepcional

Cláudia Perrone-Moisés


Quando, no final dos anos 1960, Jacques Derrida utilizou o termo “desconstrução” em Da gramatologia, talvez não imaginasse que essa “forma de pensar” teria incidência, além da filosofia, em campos tão variados como a estética, a arquitetura, a análise das instituições, a reflexão política e o direito. De toda forma, o que podemos perceber é que, a partir dos anos 1990, o próprio Derrida passa a se dedicar, tanto em seus seminários como em seus escritos, cada vez mais, à desconstrução de temas como: a pena de morte, o perdão e o perjúrio, a soberania, além de outras questões político-jurídicas.
Em 1994, publica Força de lei, no qual chama a atenção para a necessidade de distingüir as leis ou o Direito, da justiça. Enquanto a justiça é indesconstrutível, o Direito é essencialmente desconstrutível, porque é construído sobre camadas textuais interpretáveis e transformáveis, ou porque seu fundamento último, por definição, não é fundado: “que o Direito seja desconstrutível, não é uma infelicidade. Pode-se mesmo encontrar nisso a chance política de todo progresso histórico.” Por isso, afirma ele, “a desconstrução é a justiça.” 
Voltando da África do Sul, em 1998, onde se encontrou com Nelson Mandela e o acompanhou nos trabalhos da Comissão de Verdade e Reconciliação e o filósofo propõe uma discussão acerca da impunidade, da atitude social face ao crime e dos crimes contra a humanidade. Derrida passa a se dedicar, então, à questão que parecia unir todas suas preocupações no momento, o perdão.
Segundo Hannah Arendt, que refletiu acerca dos crimes cometidos durante o nazismo, os homens não são capazes de perdoar o que não podem punir, nem de punir o imperdoável. Para Derrida, podemos manter uma acusação penal mesmo perdoando, ou inversamente, podemos não julgar, mas perdoar. A inadequação das penas existentes, dado o ineditismo dos crimes cometidos e de sua imensa crueldade, parece constituir o obstáculo para a punição. A escala monstruosa e inacreditável dos crimes nazistas torna inadequada e absurda qualquer punição prevista em lei, diz Arendt. Além dela, muitos outros situados nessa mesma linha, como o filósofo Wladimir Jankélévitch, defenderam a idéia segundo a qual, se nenhuma punição proporcional pode ser encontrada, o crime permanece imperdoável.
Para Derrida, o perdão não pertence à esfera política ou jurídica. Ele se opõe à simetria entre punir e perdoar, não admite que sejam colocados lado a lado. Também se opõe à confusão entre perdão e conceitos jurídicos como o da anistia e da prescrição. Para ele, só é possível perdoar o imperdoável. O perdão não pode ser banalizado, deve sempre ser excepcional. Para avaliar essas proposições é necessário rever em que contexto Derrida passou a se interessar pelo tema. O seu interesse pelo assunto se acentuou devido ao que ele chamou de “mundialização do perdão”.
Em todos os cantos do mundo as cenas de arrependimento, de confissão, de perdão e desculpas se multiplicaram, desde o final da Segunda Guerra Mundial, e, de forma mais acelerada, nos últimos dez anos. Basta lembrar o pedido de perdão da igreja católica em relação aos crimes da Segunda Guerra; do primeiro ministro do Japão aos coreanos e chineses; do governo da Bélgica, por não ter agido em relação ao genocídio em Ruanda; e, recentemente, a confissão que as forças armadas do Chile fizeram de seus crimes.
Conforme lembra Derrida, não são pessoas pedindo perdão, mas entidades (governos, igrejas etc.), o que por si só já descaracterizaria o perdão. Segundo ele, “a proliferação de cenas de arrependimento e pedidos de perdão significa, sem dúvida, uma urgência universal da memória: é necessário voltar ao passado, e esse ato de memória, de auto-acusação, de arrependimento, deve ser levado além da instância jurídica e da instância do Estado-nação” (Foi et savoir, 2000). Como lembra ele, a “cena original” do que estamos vivendo é constituída pelo que ele chama de “eventos extraordinários” ocorridos durante a Segunda Guerra e que produziram a criação do conceito jurídico de crimes contra a humanidade.
Derrida não considera que a proliferação de cenas de arrependimento seja uma coisa ruim, mas o que preocupa é “o simulacro, o ritual automático, a hipocrisia ou cálculo que essas cenas poderiam representar”. Além disso, a generalização dos pedidos de perdão num movimento que se quer unânime pode fazer com que todos se tornem culpados, e ninguém possa mais ser colocado na posição de juiz.
Tendo em vista a pergunta “quem deve perdoar?”, Derrida menciona o exemplo de uma mulher da África do Sul, cujo marido tinha sido preso e torturado, e que, na Comissão de Verdade e Reconciliação disse o seguinte: “Uma comissão ou um governo não pode perdoar. Só eu, eventualmente, poderia fazer isso. Mas não estou pronta para perdoar.” Para Derrida, essa afirmação evidencia o fato de que o corpo anônimo do Estado ou de uma instituição pública não pode perdoar. O Estado pode julgar, mas o perdão não tem relação com o julgamento, nem mesmo com o espaço público ou político. Mesmo se fosse “justo”, o perdão não teria nada a ver com a justiça judiciária, com o Direito.
Derrida propõe, ainda, uma distinção entre o perdão condicional e o incondicional. As duas hipóteses estão presentes em nossa tradição judaico-cristã. No primeiro caso, o perdão só tem sentido se aquele que fez algo pede perdão. Nessa hipótese, o sujeito já está a caminho da transformação, reconheceu seu erro e se arrepende. Existe aqui uma troca. No segundo caso, que para ele é o único em que se pode falar de verdadeiro perdão, este é concedido, qualquer que seja a atitude do culpado, mesmo que ele não peça perdão ou não se arrependa: perdoa-se o culpado enquanto culpado. Perdoar o perdoável é muito fácil, diz ele.
O poder de perdoar é sempre divino na sua essência, ainda que exercido pelo homem. Para Derrida, “quando o perdão está a serviço de uma finalidade, seja ela nobre ou espiritual, como a redenção ou a reconciliação, ou seja, cada vez que ele tenciona restabelecer uma normalidade, social, nacional, política ou psicológica, por um trabalho de luto ou terapia, não é puro [...] O perdão deveria permanecer excepcional e extraordinário, colocando à prova o impossível, como se ele interrompesse o curso ordinário da temporalidade humana.”
O perdão é muitas vezes confundido com outros conceitos, como o de anistia e o de prescrição. Lembre-se de que os crimes contra a humanidade não admitem anistia. A palavra “anistia”, como “amnésia”, deriva do grego amnestia, que significa esquecimento. Alguns entendem que, no campo político-jurídico, seu significado vai além do esquecimento, denota que o governo pretende apagar o crime e não simplesmente esquecê-lo. A anistia é considerada um “perdão político”. Seria, desse modo, o conceito mais próximo do perdão.
Já no que se refere à prescrição, também existe um consenso de que os crimes contra a humanidade são imprescritíveis. A prescrição se traduz no decurso de tempo que é previsto para que um crime possa ser julgado ou a pena possa ser cumprida. Todo direito tem um prazo para que possa ser exercido. O que caracteriza a prescrição é o decurso do tempo: depois de determinado prazo, o crime deve ser esquecido. Mas, nos casos dos crimes contra a humanidade, entende-se que não importa quando tenham sido cometidos; sempre deverão ser punidos, não sofrendo os efeitos da prescrição.
Segundo Derrida, o perdão não deve ser confundido com o imprescritível, mas, assim como o perdão, o imprescritível remete a uma ordem transcendente do incondicional, do perdão e do imperdoável, a uma espécie de a-historicidade, de eternidade e de juízo final, que ultrapassa o tempo finito do Direito. Para sempre, eternamente e em todo lugar, um crime contra a humanidade deverá ser julgado. Para Derrida, é uma certa idéia do perdão e do imperdoável, de um além do Direito, que inspirou a produção de normas que tornaram imprescritíveis esses crimes. Os homens não têm o direito de subtrair o crime praticado, ou de se subtrair ao julgamento, qualquer que seja o tempo decorrido após cometerem a falta.
Em 2004, Derrida falou em público pela última vez num colóquio em sua homenagem no Rio de Janeiro. Escolheu como tema o perdão, tendo em vista sua vontade de contribuir para a discussão do lugar dos afro-descendentes latino-americanos, a partir de sua experiência na África do Sul. Sua vinda ao Brasil foi um ato de coragem, pois devido às suas condições de saúde já não deveria viajar. Num último esforço, pudemos ouvi-lo dizer, num ambiente de muita emoção, que o perdão não deve ter nenhuma finalidade, pois seus laços essenciais o unem ao amor.

Cláudia Perrone-Moisés
é professora da Faculdade de Direito da USP e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP.