“Em todo ordenamento o ponto de referência último de todas as normas é o poder originário, ou seja, o poder além do qual não existe outro em que se possa fundar o ordenamento jurídico” (BOBBIO, 2010, p. 204-205).
Prólogo
Tenho lido muito Bobbio, mas não por amor ao medíocre. Bobbio é sem dúvida um teórico sério, claro, dedicado às explicações; em suma, digno de respeito – embora não de adoração. Não se trata de simplesmente atirar contra o positivismo jurídico, lançar mão das críticas correntes, tão fáceis quanto obtusas, alcançar juízos de valor ou os pontos de vista morais, tão recorrentes na filosofia política anglo-saxônica contemporânea desde John Rawls (2010). Trata-se, de mostrar aquilo que Bobbio e nenhum outro positivista, ou pós-positivista, foi capaz de ler nos próprios textos positivistas.
Sobretudo, trata-se de fazer um exame mais profundo de certa ideia de que um olhar mais complacente com o positivismo jurídico permitiria escapar ao decisionismo contemporâneo – embora não seja possível ver exatamente em que decisionismo e positivismo sejam incompatíveis.
O que gostaria de demonstrar, portanto, é isto: na teoria contemporânea do direito, persiste uma solidariedade tão íntima quanto irredutível entre positivismo jurídico e decisionismo, e ela aparece precisamente no momento em que pensamos, à luz da matriz analítica, o conceito de sanção como elemento constitutivo da norma e sua relação com o controle jurídico das condutas de autoridades, especialmente no seio da evolução do direito público.
a. É fácil dizer: “Bobbio, que bom que você morreu”...
Há alguns dias escrevia no Twitter, em tom de desafio, uma frase mal-educada acompanhada de uma citação de Bobbio: “Bobbio, que bom que você morreu: ‘a evolução do direito se exprime não na restrição, mas na ampliação do aparato sancionador’”. Agora, temos tempo para compreender a inserção e o sentido desse excerto no interior de Teoria Geral do Direito e, especialmente, compreender de que forma, até hoje, leituras descontextualizadas como essa que propusera na limitada extensão de 140 caracteres servem a uma crítica a um só tempo falsa e fácil do positivismo. Ele deve ser criticado por razões de raiz, não de superfície.
Isso não significa, por certo, que sejamos positivistas; só que estamos cansados de criticar o positivismo em face de seu pretenso formalismo, e como pretexto para fazermos das normas jurídicas algo muito “melhor”. Antes de mostrar o problema de fundo, é tão necessário destruir a crítica fácil que se faz de Bobbio como as leituras ingênuas, que pretendem encontrar no normativismo a supremacia pura de um Estado de direito.
Essa crítica é intensamente destrutiva não porque invalide o positivismo jurídico como uma descrição possível dos sistemas jurídicos concretos ocidentais, mas porque pode desarticular o contexto de nossa ação prática de luta por direitos, na medida em que mostra uma solidariedade irredutível entre positivismo e decisionismo que a filosofia contemporânea do direito – desde Rawls, passando por Dworkin, Alexy, e seguida pela quase totalidade dos neoconstitucionalistas (ou pós-positivistas) – insiste em encobrir com um véu moral.
Isso não implica que a crítica seja teoricamente válida, mas pragmaticamente inútil; não se pode pensar com base na separação entre teoria e política. Em verdade, teorizamos sobre a política na tentativa de reatá-las definitivamente. Nesse sentido, toda luta por direitos não deve ser descartada, mas, sim, enformada por uma espécie de suspeita não-niilista das ações práticas intra-sistêmicas. Isso não invalida tais ações; só requer que as continuemos, embora menos ingenuamente. Apontar contra as instituições, e muitas vezes até mesmo contra os direitos, condiz com a atitude prática fundada na teoria de não considerar nada sagrado ou superior; não significa que eles sejam dispensáveis, principalmente na atualidade. De toda forma, assim como postular sua total abolição é um erro, não é mais certo limitar a ação política a amealhar mais e mais direitos, especialmente sob as formas paradoxais da governamentalidade contemporânea.
Aqueles que desejarem chegar à crítica aos autores mais contemporâneos, bem como a outros, sugiro uma rápida consulta à série de posts “As atuais teorias do direito”, que publiquei em “A Navalha de Dalí” em sete capítulos. No entanto, para não ir tão longe, e a fim de evitar repetições, fiquemos, por ora, apenas com Bobbio, e nos ocupemos do contexto conceitual de produção daquele excerto.
b. ...Difícil é perceber que suas ingênuas imagens sobrevivem
A certa altura da “Teoria da Norma Jurídica” – curso que integra Teoria Geral do Direito –, ao estudar a ideia de sanção como elemento constitutivo e diferencial da norma jurídica, Bobbio lembra que
uma tendência se revelou na evolução do direito público europeu, foi aquela em direção a uma diferenciação cada vez menor entre direito privado e direito público relativamente ao problema da sanção. O ‘Estado de direito’ avançou e continua a avançar na medida em que se substitui aos poderes arbitrários aqueles juridicamente controlados, aos órgãos irresponsáveis, os órgãos juridicamente responsáveis, enfim, na medida em que o ordenamento jurídico organiza a resposta às violações provenientes não só dos cidadãos privados, mas também dos funcionários públicos. Poderíamos assinalar uma das muitas diferenças entre Estado de polícia e Estado de direito enfatizando a extensão do mecanismo da sanção partindo da base e subindo cada vez mais em direção aos vértices. O que ainda é uma confirmação da importância da sanção para estabelecer as características diferenciais do ordenamento jurídico; a evolução do ordenamento jurídico se exprime não na restrição, mas na ampliação do aparato sancionador. Estamos inclinados a considerar um ordenamento tanto mais ‘jurídico’ (o Estado de direito é um Estado em que o controle jurídico foi-se ampliando e, portanto, é mais ‘jurídico’ do que um Estado de polícia) quanto mais aperfeiçoada é a técnica da sanção. (BOBBIO, 2010, p. 162).
Quando Bobbio escreve “a evolução do ordenamento jurídico se exprime não na restrição, mas na ampliação do aparato sancionador”, quer provar: 1) a progressiva indiferenciação entre direito público e privado no que diz respeito à forma de tratar a sanção; e sanção, aqui, não se confunde com pena, mas é um elemento estrutural da norma jurídica, especialmente para os positivistas que, de modo geral, filiam-se às teorias coativas do direito; 2) que o fato de haver normas não-sancionadas no ordenamento jurídico – especialmente aquelas localizadas no ápice de sua hierarquia -, não invalida a teoria coativista do direito nem implica que devemos rejeitar a sanção como elemento constitutivo da norma jurídica; 3) o estado de Direito consolidar-se-ia tanto quanto mais alto na hierarquia das normas se puder conduzir o controle que a sanção, como elemento estrutural da norma jurídica, exerce.
Mais adiante, Bobbio afirma que é da natureza da estrutura democrática e estatal que o alcance da coatividade do aparato sancionador das normas jurídicas invista-se à razão inversa da hierarquia das normas, reconhecendo que o núcleo de poder do qual as normas emanam seria, em última análise, uma fonte incoercível de violência organizada e institucionalizada:
se a sanção implica a presença de um aparato coativo, a presença de tal aparato implica, em última instância, a presença de um poder de coação, que por sua vez não pode ser obrigado e que, portanto, a existência de normas não sancionadas no vértice do sistema é o efeito da inversão da relação força-direito que se verifica na passagem das normas inferiores para as superiores (Id., Ibid., p. 167).
Seu argumento de arremate em favor da natureza coativa da norma jurídica deve ser analisado a partir de sua duplicidade. De um lado, Bobbio afirma a possibilidade de pensarmos um ordenamento jurídico em que a sanção possua caráter constitutivo e diferencial, ainda que as normas superiores do ordenamento careçam precisamente desse elemento.
O que, segundo ele, diferencia a maior parte das normas jurídicas seria uma espécie de “eficácia reforçada” especialmente pela sanção. As normas superiores, normalmente carecedoras desse elemento - mas nem por isso menos jurídicas, porque integradas ao ordenamento - manteriam sua eficácia apelando à adesão espontânea, isto é, ao consenso. Bobbio admite, portanto, que um ordenamento jurídico completamente reforçado por sanções é impraticável e logicamente impossível.
De outro lado, Bobbio afirma que, embora seja impossível pensar um ordenamento jurídico composto apenas por uma norma de conduta (“Tudo é proibido”, “Tudo é permitido”, “Tudo é comandado”), o mesmo não valeria quando se trata de normas de estrutura ou de competência. Pensando em uma monarquia absolutista, teríamos como norma de estrutura “é obrigatório tudo o que o soberano comanda” (BOBBIO, 2010, p. 198-199); se assim for, as normas de conduta seriam tantas quantas fossem, em dado momento, os comandos do soberano.
c. Os cheios vãos das formas da lei: soberania, consenso, violência
O não-lido no texto de Bobbio consiste, precisamente, naquilo que ele mesmo intui, mas rechaça: as relações entre direito e força, que Bobbio deixa de lado afirmando serem demasiadamente complexas para serem tratadas no âmbito da teoria do Direito. O que interessa é pensar três categorias nas quais a teoria da norma de Bobbio resvala, sem aprofundá-las: soberania, consenso e violência. As relações entre esses três solidários elementos encontram-se nas normas superiores na hierarquia dos ordenamentos jurídicos, em estrita correlação com a “sanção”, elemento das normas jurídicas.
Ao reconhecer que as normas jurídicas hierarquicamente superiores carecem de sanção, Bobbio empreende duas grandes justificações de sua juridicidade, sem perceber que, ao fazê-lo, dá a ver o fundo soberano que habita as ordens jurídicas ditas civilizadas: 1)as normas superiores carecem de sanção na medida em que são produtos de uma força, ou de uma violência, que se confunde com aquela que institui as normas inferiores sancionadas. Normas jurídicas seriam tão menos sancionadas quanto mais próximas do núcleo originário de poder; esse argumento é reafirmado, com outras palavras, em sua Teoria do Ordenamento Jurídico, quando Bobbio diz ser possível pensar um ordenamento composto por apenas uma norma de competência, ou de estrutura – norma que apela expressamente à soberania; 2) Como um democrata liberal-socialista, e entusiasta do Estado de direito, Bobbio afirma que, a despeito de as normas jurídicas – especialmente as ínferas – caracterizarem-se por uma “eficácia reforçada”, a adesão aos postulados fundamentais estruturantes de um ordenamento jurídico (as normas mais elevadas de uma ordem jurídica) teriam sua eficácia garantida pela adesão espontânea de seus destinatários; isto é, o consenso, de fundo marcadamente contratualista (hobbesiano e kantiano, no caso de Bobbio) encarrega-se de prover tais normas de eficácia dispensando a sanção como elemento reforçador.
Essa violência incoercível e soberana, que, nos estados democráticos de direito, se confunde com a eficácia garantida pela adesão espontânea dos súditos aos postulados estruturantes de certa organização político-jurídica, encontra seu limite precisamente no momento em que percebemos que a aparente contratualidade sob o fundo do consenso é ainda, e sempre, a expressão soberana daquela violência incoercível, impassível de controle e sanção, encoberta, na categoria de poder constituinte, pela mítica identidade entre governantes e governados (FURET; OZOUF, 2007, p. 483).
Bobbio reconhece que, de um lado, ordenamentos jurídicos integralmente sancionados são prática e logicamente impossíveis; Kelsen, por outro, institui a suposição da norma fundamental como ferrolho gnoseológico cuja admissão constitui condição de possibilidade de toda epistemologia jurídica. Tanto em Bobbio como em Kelsen, essas aporias são enunciadas, solucionadas pela “razão”, e rapidamente dispensadas como exteriores ao direito; no entanto, precisamente elas, como o não-lido de suas obras, testemunham que não existe auto-posição de qualquer ordenamento jurídico. Kelsen (2005) não se preocupa com isso, pois identifica os conceitos de Estado e ordenamento jurídico, e Bobbio (2010) dispensa o problema ao enunciar que o tema seria referente às complexas relações entre direito e força.
No entanto, Bobbio e Kelsen permitem ler no não-pensado de seus textos precisamente a análise daquilo que dispensam – as relações entre violência, direito e consenso. Elas testemunham que todo consenso, por mais democrático que se possa pretender, não pode deixar de ser um signo de violência soberana e incoercível, e a sanção, elemento presente em normas jurídicas inferiores, mas ausente nas superiores, nada mais é do que aquilo que Jacques Derrida (2007), como leitor de Walter Benjamin, chamou de violência conservadora do direito, ou, mais simplesmente, polícia, como quisera Agamben (1996).
Essa violência conservadora, no entanto, nada mais é do que a ressonância interior de uma violência incoercível estruturante dos ordenamentos jurídicos, e que goza de uma topologia paradoxal. A natureza dúplice do consenso soberano não permite afirmar, ao certo, se sua violência é, já, interior à ordem jurídica que ele inaugura e institui, ou exterior a ela.
No consenso democrático dos Estados de direito está postada a violência fundadora da ordem jurídica, a decisão soberana ou, como quisera Carl Schmitt (2007), a exceção irredutível até mesmo nos casos em que um tribunal julga subsumindo a situação de fato ao tipo normativo. Essa teria sido a grande contribuição de Schmitt, mas também de Agamben: afirmando a existência de um decisionismo soberano e irredutível, o primeiro destruiu as pretensões à imanência do neokantismo kelseniano – largamente recepcionado pela teoria do Direito de Norberto Bobbio; o segundo mostrou de que maneira exceção e norma são solidárias, mesmo quando se fala de consenso democrático – e o alvo de Agamben é Jürgen Habermas –, e se encontram articuladas segundo uma indiferenciação cuja tensão é constitutiva de todo ordenamento jurídico fundado, par excellence, em uma violência originária, e conservado pela polícia soberana.
Referências
AGAMBEN, Giorgio. Mezzi senza fine. Note sulla politica. Torino: Bollati Boringhieri, 1996.
BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
DERRIDA, Jacques. Força de lei. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
FURET, François; OZOUF, Mona. Dictionnaire critique de la révolution française. Idées. Paris : Flammarion, 2007.
KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
SCHMITT, Carl. O guardião da constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.
* Texto publicado originalmente em 01.08.2010 na Coluna "Suscitar acontecimentos", do site O Pensador Selvagem.
* Texto publicado originalmente em 01.08.2010 na Coluna "Suscitar acontecimentos", do site O Pensador Selvagem.