Para ler "MundoBraz", de Giuseppe Cocco

27 setembro, 2010


“Não páro de fugir, mas ao fugir, procuro uma arma”.
George Jackson.

Há alguns dias, um querido amigo, Luiz Otávio Ribas, perguntava-me se no tempo de Foucault era impreterível ler Marx e Freud, o que seria necessário ler hoje? Não lhe respondi naquela ocasião, mas arriscaria dizer que, se no tempo de Foucault, Deleuze lia Marx e Freud monstruosamente, hoje me parece imprescindível que leiamos Antonio Negri e Giorgio Agamben - mas como convém: diferente e monstruosamente...
Acabo de terminar um dos livros mais interessantes que li nos últimos tempos. MundoBraz: o devir-mundo do Brasil e o devir-Brasil do mundo, de Giuseppe Cocco (2009), é acachapante: bonito, fluido, positivo e múltiplo; tão múltiplo que qualquer tentativa de resenhá-lo seria uma brutalidade à qual não me sinto disposto. No entanto, algo me chamou à atenção nesse livro. Em verdade, eu nunca li sequer um livro de Viveiros de Castro; tenho de confessar minha ignorância antropológica e brasilianista que, paulatinamente, deverá ser corrigida após ter lido o belíssimo MundoBraz, de Cocco.
Encontrava-me às voltas com a escritura de um artigo que tinha por pano de fundo as relações entre o conceito ocidental de homem e a máquina antropológica de Giorgio Agamben; em um fim de semana, (meio sem querer, como ocorrem os bons encontros) caiu em minhas mãos MundoBraz, que anunciava a continuidade da discussão iniciada em Glob(Al): biopoder e lutas em uma América Latina globalizada, escrito por Cocco e Negri (2005) e, ao mesmo tempo, dedica a terceira parte do texto a discutir exatamente as máquinas antropológicas do Ocidente. Sequer pude esperar chegar em casa; li o trecho na livraria mesmo e, após ter terminado, comprei-o.
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É natural que um cientista político tão influenciado por Deleuze e Negri, como Cocco, discorde abertamente da filosofia política de Giorgio Agamben, e tenda a ver nela unicamente negatividade. Por gostar tanto de Deleuze, eu mesmo tive uma certa resistência a Agamben em 2008, e levei dois anos para desconstruí-la. Está claro que o conceito de biopolítica de Agamben é estritamente negativo e, por isso, parece entrar em choque com a leitura negriana de biopolítica em sentido positivo como antropofagia, hibridização, mestiçagem ou heterogênese – como a política de uma vida... que resiste, que flui, que vaza e se liquefaz, e pode, sempre mais, fugir aos aparelhos de captura.
Talvez um dos primeiros pontos de desconexão entre Negri/Hardt/Cocco e Giorgio Agamben esteja na aparente impossibilidade deste último em admitir uma leitura positiva do conceito de biopolítica como biopotência, como potência de variação das formas de vida. Entrevendo a vida nua como signo de uma vida impotente, esmagada pelos dispositivos ou aprisionada em suas ruínas, Cocco – a exemplo de Pelbart – compreende uma política agambeniana de desativação da máquina antropológica como um empreendimento essencialmente negativo; Cocco, aliás, é um excelente leitor de L’Aperto: l’uomo e l’animale (Agamben, 2002), e detecta na noia profonda e no projeto de "suspensão da suspensão" a ontologia negativa heideggeriana que serviria de canevás metafísico para a filosofia  política de Agamben. Assim, a afirmação da vida nua estaria resumida à afirmação de uma impotência.
Por outro lado, Cocco critica abertamente a apropriação agambeniana do conceito de biopolítica de Foucault, sendo certo que Foucault não o teria tomado, originalmente, em uma acepção unicamente negativa. Isso explicaria, por exemplo, por que o conceito de bíos aparecera em seus últimos cursos (1982-1984) como estética da existência, como potência de variação das formas de vida.
Apesar de Cocco expressar concordância com as linhas gerais da operação de um dispositivo antropológico, como assinalado por Agamben, a partir especialmente de Michel Serres e Descola, Cocco critica a distinção moderna entre natureza e cultura, endereçando a Agamben uma pesada e procedente crítica devida à anistoricidade de sua descrição do dispositivo antropológico do Ocidente – ponto em que a antropologia contemporânea poderia ser de grande valia.
A crítica agambeniana do dispositivo antropológico nos levaria, de acordo com a detecção de Cocco (2009, p. 178), a dois impasses: o primeiro, relativo à ontologia negativa, heideggeriana, que Agamben mobiliza; o segundo, referente à redução do conceito de biopolítica de Foucault à tanatopolítica, o que implicaria ver na morte uma potência unicamente negativa, simplificando a relação entre vida e morte. A linha de fuga utilizada por Cocco para compreender a morte traz como intercessores Jacques Derrida (sobre a morte de Emmanuel Lévinas), Peter Sloterdijk (e seu adeus a Derrida), Deleuze-Guattari e Viveiros de Castro, dentre outros.
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  Sem que isso signifique tirar um pingo sequer da dignidade filosófica dessa infinita e atualizada caixa de ferramentas práticas que é MundoBraz, de Giuseppe Cocco, endereçaria duas observações que me parecem em aberto e, por isso mesmo, capazes de pôr em xeque a leitura que Cocco devota a Agamben.
(a) A primeira delas atrela-se a uma necessidade de utilizar Agamben, mais do que de simplesmente aceder a ele. Agamben é um filósofo nômade, um flanêur – já o dissera Raúl Antelo –, e, como tal, transita entre a política, a economia, os processos de subjetivação-dessubjetivação, as artes, a estética, a teologia, os dispositivos soberanos, governamentais e outros, deixando armas pelo caminho. Assim, podemos lê-lo, usar dele, tomá-lo para fazer nossas pequenas guerrilhas, sem rechaçar sua filosofia política pela anistoricidade ou pela aparente negatividade de sua ontologia.
Acredito que Cocco reduz a filosofia política de Agamben a dois impasses e a um projeto vazio, de desativação, de “suspensão da suspensão”, lendo “O Aberto” agambeniano como uma repetição nua do conceito heideggeriano homônimo. Caso a leitura de Cocco realize essa diferenciação, ao menos em MundoBraz, ela não é plenamente esclarecida. Os “deleuzianos” – com o perdão da expressão, francamente inadequada – sabem que um conceito é um acontecimento, uma singularidade. Não se pode reduzir a ontologia de Agamben a um projeto heideggeriano negativo; caso contrário, será forçoso pensar que Agamben teria buscado, durante todos esses anos, uma filosofia política própria apenas para repetir nuamente um de seus mestres, Martin Heidegger. Ainda que essa fosse a sua intenção, o plano de imanência traçado por Agamben é completamente outro e irredutível ao plano de consistência que um Heidegger logo transforma em plano de organização.
Ainda, parece que a leitura de Cocco precisa fazer-se integrar por um conceito que, em Agamben, parece ser pontual, mas não é: o conceito de potência. Ao trabalhá-lo em La potenza del pensiero,  o filósofo italiano compreende toda potência como sustentada – não por uma impotência, mas – por uma potência de não. Mesmo o escuro e as trevas, da operação das off-cells, nunca são compreendidas como a ausência de luz, mas como uma potência de não ver – índice virtual puro sem relação com o ato. De sorte que o conceito de desativação da máquina antropológica, bem como a ontologia de Agamben e o conceito de vida nua, não podem resumir-se a um simples vazio constitutivo, ou a uma vida entregue à morte, mas devem ser lidos sob o critério unificador do conceito de potência de não – precisamente, aquele do Bartleby, de Mellville: “I would prefer not to...”. A metáfora da escuridão que, na literatura de Agamben, ganhou recentemente uma abertura cosmológica, é muito mais que simplesmente uma metáfora: é um conceito fundamental que atravessa por toda a sua filosofia política.
Potência não como impotência, mas como suspensão do ato; suspensão do ato sem negatividade, mas como um índice positivo, unicamente virtual. Em Agamben, não há uma repetição de Heidegger, mas seu uso; a aparente negatividade da ontologia de Agamben é a negatividade que provém do dispositivo antropológico em obra na cultura ocidental, não do programa da filosofia política de Giorgio Agamben, que não pode ser compreendida senão como potenciação, virtualização, multiplicação de armas – como fica claro no conceito de profanação como o ato de cancelar as separações e as capturas operadas pelos dispositivos, restituindo um objeto fora de uso ao uso comum dos homens; isto é, a uma completamente nova possibilidade de usar.
Por fim, o conceito de vida nua, em Agamben, é ambíguo. Não significa unicamente uma vida como capturada por um dispositivo e objeto de uma exclusão-inclusiva, uma forma de vida unicamente impotente (uma forma de vida separada daquilo que uma vida... pode), mas também constitui uma vida que poderia ser afirmada positivamente na nudez de sua forma. Um dos índices de positividade da vida nua encontra-se escondido em Homo sacer I: “fazer do próprio corpo biopolítico, da própria vida nua, o local em que constitui-se e instala-se uma forma de vida toda vertida na vida nua, um bíos que é somente a sua zoé” (Agamben, 2007, p. 194). Foi essa ambiguidade interna do conceito de vida nua que tentei desentocar em uma resenha sobre L’immanenza assoluta e em um pequeno ensaio, Da vida nua à vida como obra de arte: um devir-imperceptível.
(b) Ainda, e esse é o segundo ponto que gostaria de destacar acerca da leitura de Cocco, sustento a hipótese de que não há qualquer incoerência em Agamben apropriar-se do conceito de biopolítica e transformá-lo em tanatopolítica. Sem dúvida, Cocco tem razão ao detectar que se trata de uma redução prática, mas uma redução que poderia ser entrevista como a tentativa de descrever um segmento de agenciamentos concretos em que os dispositivos biopolíticos encarnam-se, ou poderiam encarnar-se, desde os gregos e também hoje.
Não deveríamos criticar um filósofo por apropriar-se dos conceitos dos outros e modelá-lo conforme sua conveniência, desde que o faça com sinceridade filosófica, como Agamben faz. Esse é o  gesto, ou o procedimento filosófico, deleuziano da "imaculada concepção", ou – dito por meio de um equivalente – “enculée” (literalmente a “enrabada”, dizia Deleuze: é como “pegar um autor por trás e fazer-lhe um filho monstruoso e, no entanto, dele”).
Ao contrário de lançar Agamben à negatividade aparente deu seu Heidegger, talvez pudéssemos esforçar-nos, e até mesmo trair Agamben, para retirá-lo dela. Poderíamos esforçar-nos por compreender a apropriação da biopolítica foucaultiana como tanatopolítica, por Agamben, como um segmento coextensivo à apropriação da biopolítica como biopotência (em sentido positivo), por Negri, Hardt, Lazaratto e Cocco; ambas não passam de segmentos; de armas que esses filósofos, como nômades, legam-nos ao deixá-las caírem ao léu; armas de que podemos nos servir para engendrar outras – tantas, belas e impossíveis! – imaculadas concepções.

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