O que significa perguntar sobre o que resta: pensar a atualidade como o trabalho do diagnóstico

30 outubro, 2010


por Murilo Duarte Costa Corrêa (*)
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Ao perguntarem-se sobre aquilo que resta da ditadura, os gestos de Vladimir Safatle e de Edson Telles (2010) repetem, em certa medida, o gesto filosófico-político agambeniano e arendtiano. Em acréscimo, parecem captar as peculiaridades da experiência brasileira de exceção. Segundo eles, não se deveria mensurar aquilo que resta de uma ditadura pelo número de corpos mortos e violados que ela deixa para trás. Procurar os espectros do autoritarismo no interior da cultura brasileira implicaria diagnosticar no presente o que, de fato, constitui aquilo que resta de uma ditadura: as estruturas políticas, administrativas e jurídicas que se prolongam e sobrevivem ainda hoje no interior do Estado democrático de Direito brasileiro.

2
Na abertura de um dos textos de Infância e história, o filósofo e jurista italiano Giorgio Agamben (2008, p. 111), escrevera que “[...] toda cultura é, primeiramente, uma certa experiência do tempo, e uma nova cultura não é possível sem uma transformação dessa experiência”. A afirmação do vínculo entre a cultura humana e uma singular experiência do tempo renova uma tradição que não ousou pensar o tempo para além da reprodução dos conceitos de instante e de contínuo. Pensar a relação dos homens com seu tempo permite recuperar dimensões da experiência destruídas ou seqüestradas, exemplares da tarefa do historiador sucateiro de Walter Benjamin (1994, p. 114); o gesto benjaminiano do historiador trapeiro que “deseja não deixar nada se perder” aferra-se aoinsignificante e, portanto, à própria experiência. Eis o gesto que parece habitar profundamente a afirmação agambeniana: “toda cultura é, primeiramente, uma certa experiência do tempo”.

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       Será preciso desdobrar até mesmo o conceito de tempo. Todos partilhamos de uma representação vulgar da temporalidade, de que Heidegger (2009) já havia falado em Ser e Tempo. Segundo ela, o tempo seria como uma linha contínua, povoada por instantes inextensos, e orientada irrevogavelmente ao futuro. Em nossa concepção, o passado é continuamente soterrado pelos escombros de um presente que transcorre veloz demais. A quotidianidade presente é afetada pelas formas de uma temporalidade em que cada instante engendra uma exceção: já não nos sentimos capazes de construir uma experiência autêntica da temporalidade porque vivemos unicamente o instante, e o instante está, desde sempre, e já, dentro e fora de si mesmo; nas palavras de Deleuze (2006), o presente é essencialmente paradoxal, uma vez que o instante atual é aquele que é, mas, ao mesmo tempo, é aquele que já se passou.

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       No prefácio a Entre o passado e o futuro, Hannah Arendt identifica uma relação essencial entre pensamento e tempo. A partir de He, uma curta parábola de Kafka, Arendt desejava revelar aquilo que se encontra na estrutura íntima do pensamento. De acordo com a transcrição de Arendt, a parábola kafkiana é a seguinte:

“Ele tem dois adversários: o primeiro acossa-o por trás, da origem. O segundo, bloqueia-lhe o caminho pela frente. Ele luta com ambos. Na verdade, o primeiro ajuda-o na luta contra o segundo, pois quer empurrá-lo para frente, e, do mesmo modo, o segundo, uma vez que o empurra para trás. Mas isso é assim apenas teoricamente. Pois não há ali apenas os dois adversários, mas também ele mesmo, e quem sabe realmente de suas intenções? Seu sonho, porém, é em alguma ocasião, num momento imprevisto – e isso exigiria uma noite mais escura do que jamais o foi nenhuma noite –, saltar fora da linha de combate e ser alçado, por conta de sua experiência de luta, à posição de juiz entre os adversários que lutam entre si”. (Kafka, apud, Arendt, 2009, p. 33).

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       Tanto como o homem kafkiano deseja fugir à linha de combate e alçar-se sobre ela, para compreender a profundidade dessa pequena parábola kafkiana precisaríamos fugir às conclusões de Arendt, aproveitando livremente suas descrições. A partir de He, Arendt descreve um homem demasiadamente contemporâneo, que encarna o próprio presente ao encontrar-se encerrado na batalha com as forças do passado, que o empurram à frente, e do futuro, que o mantêm violentamente aferrado ao atual.
Em He, as forças do passado e do futuro empurram o homem a um espaço lacunar e, segundo Arendt, atemporal. Nele, o homem é forçado a pensar, e todo pensamento só pode ser constituído em tensão com as potências da memória que não cessa de acossar o homem desde a origem e empurrá-lo adiante, e dos devires, que, repelindo-o, fazem da atualidade o lugar mais próprio em que seu pensamento se mantém. É no dorso fraturado do atual que Arendt (2010, p. 224-225) isola o espaço próprio ao pensamento como exercício do espírito. Esse espaço atemporal e, no entanto, atualíssimo, não pode ser herdado; precisa ser recriado e renovado a cada geração e a cada novo nascimento. Pensar a sua própria atualidade é a tarefa por excelência de cada geração.

6
       Se retornarmos a Kafka, perceberemos que há uma passagem que Arendt interpreta como o “intervalo lacunar”, o espaço vazio em que se tornou possível pensar: “Seu sonho, porém, é em alguma ocasião, num momento imprevisto – e isso exigiria uma noite mais escura do que jamais o foi nenhuma noite –, saltar fora da linha de combate...” (Kafka, apud, Arendt, 2009, p. 33).
       Precisamente onde Kafka escreve “imprevisto” e Arendt interpreta “atemporal”, poderíamos interpretar – não sem antes trairmos Arendt –, “intempestivo”, “inatual”, “extemporâneo”, como preferiria Nietzsche. O imprevisto de Kafka precisa abrir uma noite escura como nunca houve; “Ele”, o lutador, salta e foge à linha de combate, que passa a ser singularmente impessoal; passado e futuro, a memória e os devires, permanecem intocáveis pelo ego pensantearendtiano.
       Alocar o ego pensante em um intervalo atemporal que seria preciso criar sempre e a cada vez, como quisera Arendt, poderia sugerir a negação de que o pensamento possa estabelecer-se em correlação com seu tempo. Em Nietzsche (1990), o conceito de intempestivo, ou de inatual, possui uma vantagem: ele não seqüestra nem negativiza o tempo ou os devires. No impessoal combate entre passado e futuro, a atualidade não é vazia, negada, intervalar, mas um índice do real a que precisamos resistir – e uma indeterminação virtual que nos permite resistir.
       Pensar é muito mais do que sustentar-se em um vazio atemporal, como quisera Arendt; o pensamento, no interior ou no fora do combate, sempre se relaciona essencialmente com o tempo. Quando o lutador kafkiano consegue alçar-se da linha de combate é porque, escapando à determinação de seu próprio presente – ser acossado da origem ou impedido pela frente –, a atualidade virtualizou-se e converteu-se em árbitro da totalidade de nosso tempo. O presente, o atual, confundem-se com o intempestivo e com o inatual: “agir contra o tempo, e sobre o tempo e, espero eu, em favor de um tempo que virá” (Nietzsche, 1990, p. 94); “a crueldade de reconhecer unicamente o direito daquilo que deve nascer”, dizia Nietzche. É o imprevisto kafkiano, ou o intempestivo nietzschiano, que quebram a cadeia dos acontecimentos, e poderiam renovar a forma de perguntar-se sobre “o que resta” como um trabalho dúplice: diagnóstico do presente e resistência intempestiva.
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Encontramo-nos desde sempre na tensão kafkiana, em que as forças do tempo mobilizam a história e atravessam os corpos: desviando-se, escapando, suplantando-os, exaurindo-os. Não há pensar que não esteja em relação com o contemporâneo – e, por vezes, o contemporâneo pode significar o advento de “uma noite tão escura como nunca houve”. No entanto, não há nada mais difícil do que suscitar um crepúsculo em pleno meio-dia. É preciso deixar-nos afetar por uma memória irredutível ao presente; diagnosticar e cartografar a atualidade; auscultar os devires e suas indeterminações; pergunta-se sobre o que resta é estar sempre à espreita daquilo que vem... Arendt sabia ser necessário que cada geração e que cada homem – a cada nascimento –, constituísse, à sua maneira, a abertura intemporal, intempestiva e intensa em que se tornou possível pensar. Perguntar-se sobre “o que resta...” demanda, essencialmente, lançar um olhar sobre o tempo: espreitar as forças, detectar a memória, o presente e os devires de nossas estruturas político-jurídicas, e diagnosticar em seu interior o legado autoritário que, longe de ser um anacronismo, constitui o presente inverossímil, inquietante e paradoxal que nos afeta e concerne.

Referências
AGAMBEN, Giorgio. Infância e história. Destruição da experiência e origem da história. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
ARENDT, Hannah. A vida do espírito. Tradução de Helena Martins et al. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira: 2010.
_____. Entre o passado e o futuro. 6. ed. Tradução de Mauro W. Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 2009.
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: Magia e técnica, arte e política. (Obras escolhidas; v. 1). 7. ed. Tradução de Paulo Sérgio Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994.
DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. 2. ed. Tradução de Roberto Machado e Luiz B. L. Orlandi. Rio de Janeiro: Graal, 2006.
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2009.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Assim falou Zaratustra. Um livro para todos e para ninguém. 17. ed. Tradução de  Mário da Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
_____. Deuxième considération inactuelle. De l’utilité et des inconvénients de l’histoire pour la vie. In : Considérations inactuelles I et II. Textes et variantes établies par G. Colli et M. Montinari. Tradução de Pierre Rusch. Gallimard, 1990.
SAFATLE, Vladimir; TELES, Edson (Orgs.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010.
* Comunicação oral feita durante a VI Semana de Extensão do Centro Universitário Curitiba, Faculdade de Direito de Curitiba.
** Publicado originalmente na coluna "Suscitar Acontecimentos", de "O Pensador Selvagem". Para visitar o OPS!, clique aqui.