Chaïm Perelman: argumentação e exceção

05 dezembro, 2010



Há muito tempo não me surpreeendia, mas aconteceu de novo. Aqueles que, como eu, pesquisam o estado de exceção ou a sociedade de controle, lêem Agamben, Foucault ou Deleuze, geralmente são acusados de paranóicos, de alucinarem a existência de fascistas até debaixo da própria cama. Claro que esse argumento é ad hominem e sobretudo ingênuo. De toda forma, partilho um dos últimos delírios.
Uma das hipóteses-mestras de minha dissertação [Do mesmo à ruptura: ensaios... (2009)] buscava avaliar se, e até que ponto, as teorias contemporâneas do direito (do neoconstitucionalismo à teoria do direito como interpretação, ou argumentação racional) serviriam como passagens móveis entre um esquema jurídico-disciplinar e a implantação do estado de exceção como paradigma de governo; nesse paradigma, o ponto de gravidade não é a ausência de normas, mas, grosso modo, uma indeterminação entre normas e fatos que gera uma zona de anomia, mantendo a totalidade do ordenamento jurídico vigente, mas suspenso, sem aplicação.
Hoje percebo que, durante a dissertação, simplesmente ignorei um texto que, embora ordinário, é qualitativamente exemplar (em sentido escolástico) dessa função que quisera demonstrar: “O raciocínio judiciário depois de 1945”, capítulo III de Lógica Jurídica (1979), livro do filósofo do direito polonês, Chaïm Perelman, radicado na Bélgica até seu falecimento (1984), e ex-professor da Universidade de Bruxelas.
O capítulo sobre as teorias relativas ao raciocínio judiciário pós-1945 segue-se à explicação das linhas gerais da Escola da Exegese, a partir do Código de Napoleão, e das concepções funcional, teleológica e sociológica do Direito, que, em linhas gerais, já preconizam uma certa precedência dos fatos sobre o Direito.
Perelman reconhece que o Direito constitui um empreendimento público, devendo-se evitar a subjetividade e a arbitrariedade, de forma tal que não se poderá identificar o “justo” com aquilo que se parece justo a um indivíduo – pouco importa seja ele juiz ou não (Perelman, 2004, p. 98).
O aparecimento da justificação da exceção e da anomia no interior do ordenamento jurídico dá-se no momento em que Perelman busca exemplificar a possibilidade de decidir com base em princípios gerais do direito não-formulados explicitamente em ordens jurídicas nacionais vigentes. A sua aplicação mesmo na ausência de um texto, não implicaria uma criação jurisprudencial, nem mesmo uma concretização de uma regra de equidade ou consuetudinária. Os princípios gerais de direito, ao contrário, tendo valor de direito positivo, não seriam constituídos pelo julgado, mas reconhecidos e declarados pela decisão de um juiz que se limita a constatar-lhes a existência.
A fim de prová-lo, Perelman oferece diversos exemplos, mas o mais interessante deriva de um exemplo de reconhecida exceção. Um acórdão da Corte de Cassação Belga, prolatado em 11 de fevereiro de 1919, é tomado como um exemplo da possibilidade de os princípios gerais do direito autorizarem decisões contra legem.
No período entre 1914-19, o território belga encontrava-se ocupado pelas tropas alemãs, o que impedia as reuniões das Câmaras e Senado, e exigia que o Rei exercesse sozinho o poder legislativo sob a forma de decretos-lei. No entanto, o artigo 26 da Constituição Belga preconizava que “O poder legislativo é exercido coletivamente pelo Rei, pela Câmara dos Representantes e pelo Senado”, sem previsão de exceções ou abrandamentos. Diferentemente de algumas Constituições européias que, a essa época, previam formalmente a possibilidade de decretação do estado de exceção, o . artigo 130 da Constituição Belga previa que “a Constituição não pode ser suspensa no todo ou em parte”.
Com base no artigo 25, que estatuía a impossibilidade de o Poder Legislativo ser exercido senão de acordo com o artigo 26 da Constituição, e no forte argumento normativo do artigo 130, que vedava a suspensão parcial ou total da Constituição, a validade dos decretos-lei foi atacada. No entanto, a Corte de Cassação Belga compreendeu que o Rei tornou-se legislador no período 1914-19 precisamente em virtude da aplicação de princípios constitucionais e de princípios gerais do direito, chegando a uma decisão manifestamente contrária ao texto constitucional.
Perelman (2004, p. 106) reproduz integralmente o arrazoado da Corte de Cassação, do qual destaco dois parágrafos que suponho nodais:

Uma lei – constituição ou lei ordinária – nunca estatui senão para períodos normais, para aqueles que ela pode prever. Obra do homem, ela está sujeita, como todas as coisas humanas, à força dos acontecimentos, à força maior, à necessidade.
Ora, há fatos que a sabedoria humana não pode prever, situações que não pode levar em consideração e nas quais, tornando-se inaplicável a norma, é necessário, de um modo ou de outro, afastando-se o menos possível das prescrições legais, fazer frente às brutais necessidades do momento e opor meios provisórios à força invencível dos acontecimentos.

A decisão concretizava, portanto, um valor supremo que permitia entrever o descolamento entre legalidade e soberania política que a argumentação, ou a interpretação, são capazes.  Os “axiomas de Direito Público”, enunciados pelo procurador-geral Terliden, demarcavam precisamente o envolvimento entre anomia, estado de exceção e soberania:

I – A soberania da Bélgica jamais foi suspensa.
II – Uma nação não pode dispensar um governo.
III – Não há governo sem lei, isto é, sem poder legislativo.

Não obstante, Perelman reconhece que desses axiomas deriavriam, como Terlinden quisera provar, “a necessidade inelutável de que o Rei legifere sozinho, quando os dois outros ramos o poder legislativo estão impedidos de desempenhar sua função” (Perelman, 2004, p. 107). Isso, em ultima análise, transforma a lei em um dispositivo que une governamentalidade (“Não há governo sem lei”) e Soberania (“Uma nação não pode dispensar um governo”, “A soberania da Bélgica jamais foi suspensa”), o que, no seio do estado de exceção, coincide sem resíduos.
Apesar de o exemplo belga servir claramente para indicar o momento em que a interpretação, ou a argumentação, assumem a função de fazer a passagem móvel entre a legalidade estrita e a exceção, este parece, em princípio, descolado da realidade, historicamente distante de nós e isolado no tempo (1914-1919). No entanto, é precisamente o argumento transcendente da necessidade, do inadiável, do inelutável ou do extraordinário – como se o acontecimento tivesse a força de um Deus - que não parou de se repetir. As primeiras páginas dos jornais, hoje, no Rio, já não se preocupam em justificar o injustificável, ou a identificação de uma política de pacificação que, em sua ponta extrema, coincide com uma política de extermínio. O argumento da necessidade foi implantado no desejo; tornou-se, assim, paradoxal e inteiramente desnecessário quando demos nosso assentimento.

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