L'Enfant Sauvage, de Truffaut
Sem Classe
Giorgio Agamben
* Tradução de Murilo Duarte Costa Corrêa••
A máquina antropológica do humanismo é um dispositivo irônico que verifica, no Homo, a ausência de uma natureza própria, mantendo-o suspenso entre uma natureza celeste e uma terrena, entre o animal e o humano – e, assim, seu ser sempre menos e mais que si mesmo. Isso é evidente naquele “Manifesto do humanismo” que é a oração de Pico, que se continua impropriamente a chamar de hominis dignitate, ainda que não contenha – nem pudera, em todo caso, referir ao homem – o termo dignitas, que significa simplesmente “classe”. O paradigma que se apresenta não é nada edificante. A tese central da oração é, na verdade, que o homem, encontrando-se plasmado quando os modelos da criação estavam todos exauridos (iam plena omnia [scil. archetipa]; omnia summis, mediis infimisque ordinibus fuerant distributa), não pode ter nem arquétipo, nem lugar próprio (certam sedem), nem classe específica (nec munus ullum peculiare: Pico della Mirandola, 102). Ao revés, porque a sua criação se dera sem um modelo definido (indiscretae opus imaginis), ele não possui sequer uma face (nec propriam faciem: ibid.) e deve, a seu arbítrio, modelá-la em forma bestial ou divina (tui ipsius quasi arbitrarius honorariusque plastes et fictor, in quam malueris tute formam effingas. Poteris in inferiora quae sunt bruta degenerare; poteris in superiora quae sunt divina ex tui animi sententia regenerari: Pico della Mirandola, 102-104). Nessa definição, por meio de uma ausência de rosto, funciona a mesma máquina irônica que, três séculos mais tarde, impelirá Lineu a classificar o homem entre os Anthopomorpha, entre os animais “similares ao homem”. Enquanto não há nem essência nem vocação específica, Homo é constitutivamente não-humano, e pode receber toda natureza e toda face (Nascenti homini omnifaria semina et omnigenae vitae germina indidit Pater: ibid., 104) – e Pico pode sublinhar ironicamente a inconstância e a inclassificabilidade definindo-o o “nosso camaleão” (Quis hunc nostrum chamaleonta non admiretur?: ibid.). A descoberta humanística do homem é a descoberta de seu faltar a si mesmo, de sua irremediável ausência de dignitas.
A essa labilidade e a essa inumanidade do humano corresponde, em Lineu, a inscrição na espécie Homo sapiens da enigmática variante Homo ferus, que parece desmentir ponto por ponto as características do mais nobre dos primatas: ele é tetrapus (caminha sobre quatro patas), mutus (privado de linguagem), hirsutus (coberto de pêlo). O elenco que segue na edição de 1758 especifica sua identidade anagráfica: trata-se dos enfants sauvages ou meninos-lobo, dos quais o Systema registra cinco aparições em menos de quinze anos: o jovem de Hannover (1724), os dois pueri pyrenaici (1719), a puella transisalana (1717), a puella campanica (1731). No ponto em que as ciências do homem começam a delinear os contornos de sua facies, os enfants sauvages, que aparecem a cada vez com maior freqüência nas fronteiras das vilas da Europa, são os mensageiros na inumanidade do homem, as testemunhas de sua frágil identidade e de sua ausência de um rosto próprio. A paixão com a qual os homens do Ancien régime, defronte a esses seres mudos e incertos, tentam reconhecer-se neles e “humanizá-los” mostra a que ponto estavam conscientes da precariedade do humano. Como escreve lord Monboddo no prefácio da versão inglesa da Histoire d’une jeune fille sauvage, trouvée dans les bois à l’age de dix ans, eles sabiam perfeitamente que “a razão e a sensibilidade animal, por mais distintas que possamos imaginá-las, prolongam-se uma na outra por meio de transições a tal ponto imperceptíveis, que é mais difícil traçar a linha que as separa que aquela que divide o animal do vegetal” (Hecquet, 6). Os traços do rosto humano são – não por muito tempo – de tal forma indecisos e aleatórios, que esses estão sempre a ponto de desfazerem-se e de cancelarem-se como aqueles de um ser momentâneo: “Quem pode dizer” – escreve Diderot no Rêve de d’Alembert – “se esse bípede disforme, de apenas quatro pés de altura, que, na vizinhança de Polo, agora se chama homem, e que não tardaria a perder esse nome se se deformasse ainda um pouco, não seja mais do que a imagem de uma espécie que passa?” (Diderot, 130).
• Tradução do original, em italiano, AGAMBEN, Giorgio. L’Aperto: l’uomo e l’animale. Torino: Bollati Boringhieri, 2002, p. 35-37.Tradução publicada originalmente no site O Estrangeiro.
•• Professor de Filosofia do Direito e Teoria do Direito, vinculado ao Departamento de Propedêutica do Direito da Faculdade de Direito do Centro Universitário Curitiba (DPDFDC/UNICURITIBA); Professor do Curso de Direito do Centro de Ciências Sociais e Aplicadas da Fundação de Estudos Sociais do Paraná (CCSA/FESP-PR). Doutorando em Filosofia e Teoria Geral do Direito (USP). Mestre em Filosofia e Teoria do Direito (UFSC). Graduado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR).