Os Militares e a Comissão da Verdade

16 janeiro, 2011



Chega-me hoje a pergunta de uma pessoa que não quis identificar-se acerca de um post que gerou um debate relativamente amplo, “Uma disputa pelos signos”, em que comento rapidamente as recentes declarações do General José Elito e do Deputado Federal Jair Bolsonaro (PP-RJ) acerca da Comissão da Verdade. Escrevo um post para respondê-la não porque seja preciso, mas porque a questão me parece de todo exemplar, e sob diversos aspectos. Além disso, porque a pergunta do leitor anônimo – como toda boa pergunta - tem o dom da singeleza; o leitor disparou:

“Mas, enfim, você não acha justo que os militares também tenham direito de participar da Comissão da Verdade? Ou a verdade é uma coisa de momento, o momento de quem manda?”

Tento responder rapidamente. No Brasil, o texto do PNDH-3 (Programa Nacional de Direitos Humanos, em PDF), no Eixo orientador VI, “Direito à Memoria e à Verdade”, Diretriz n. 23, “Reconhecimento da memória e da verdade como Direito Humano da cidadania e dever do Estado”, determina a criação de uma comissão da verdade a fim de atender ao Objetivo Estratégico I: “Promover a apuração e o esclarecimento público das violações de Direitos Humanos praticadas no contexto da repressão política ocorrida no Brasil no período fixado pelo artigo 8º do ADCT da Constituição, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional”.
A primeira das ações programáticas consiste em designar  “Grupo de Trabalho composto por representantes da Casa Civil, do Ministério da Justiça, do Ministério da Defesa e da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, para elaborar, até abril de 2010, projeto de lei que institua Comissão Nacional da Verdade, composta de forma plural e  suprapartidária, com mandato e prazo definidos, para examinar as violações de Direitos Humanos praticadas no contexto da repressão política no período mencionado” (PNDH-III, p. 173).
Isto é, segundo a previsão do PNDH-III, tão criticado por Bolsonaro, não há participação direta nem de vítimas, nem de militares, como antagonistas entrincheirados na disputa pela verdade; em acréscimo, o PNDH-III prevê a participação de instâncias governamentais plurais, suprapartidárias, representantes da Casa Civil da Presidência da República, do Ministério da Justiça, do Ministério da Defesa, da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, do presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, criada pela Lei nº 9.140/95 e de representante da sociedade civil, indicado por esta Comissão Especial.
 Visto isso, logo se conclui que não apenas há participação institucional dos militares (institucional, não classista e “paritária” como parece querer Bolsonaro), via Ministério da Defesa, como ainda há expressa previsão para que haja colaboração entre o Grupo de Trabalho chamado de Comissão da Verdade e Grupo de Trabalho instituído pela Portaria nº 567/MD, do Ministro de Estado da Defesa, criada por sugestão da AGU acerca do caso Araguaia – caso pelo qual, aliás, o Brasil sofreu recente condenação junto à Corte Interamericana de Direitos Humanos.
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Portanto, a(s) resposta(s) ao prezado leitor anônimo é (são):
(1) Em uma democracia, os militares tem tanto direito de participar da comissão da verdade quanto as vítimas, mas nunca como classe. Em uma democracia, o governo eleito representa a todos, incluídos os militares, servidores públicos, profissionais da iniciativa privada, políticos, artistas etc.
(2) Se os militares, ou ex-militares, a exemplo de Bolsonaro, não se sentem representados, e querem a participação direta de clubes da aeronáutica, navais e do exército - como se fosse plausível a participação de entidades de classe enquanto tais -, é porque, naturalmente, ainda não compreenderam o que signfica democracia. Isso, por si só, já deveria ser suficiente par estarmos cônscios da fragilidade das instituições democráticas no Brasil;
(3) A verdade não é coisa de momento, mas, ao menos desde Nietzsche, de perspectiva. Isso não significa relativizar a verdade a fim de aceitar qualquer coisa. A única verdade aceitável é aquela vista por múltiplos olhos. Colocar a questão “Serão esses os olhos de A ou de B ?”, como faz Bolsonaro, é indiciária de uma má-compreesão até mesmo do significado liberal de democracia e de suas instituições;
(4) A verdade está, sim, inexoravelmente enredada nas tramas do poder; no entanto, ser ou não parte do governo não importa tanto quanto ter o monopólio de produzir os signos ou reverter seu significado. O poder atravessa a totalidade do campo social (para ficarmos com um breve conceito de Foucault), de sorte que essa disputa sobre os signos é tão nossa quanto de Bolsonaro, Ives Gandra Martins, Dilma Rousseff, os assassinados do Araguaia ou os massmedia.
(5) Finalmente, como tal, a verdade não é nada que possa ser tocada pelo relato histórico. Isso, no entanto, não deve impedir-nos de tentar elaborá-la coletivamente, tanto quanto possível. O impossível, deixemos para o desejo e para o Real, que, no fundo, são uma só e mesma coisa.
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