Uma disputa sobre os signos

11 janeiro, 2011


Hoje pela manhã, chega-me o e-mail de um amigo de São Paulo com o artigo de Jair Bolsonaro, intitulado “Comissão da Inverdade”, saído hoje na Folha de São Paulo, um dos jornais diários de maior tiragem no Brasil.
Nele, Bolsonaro, que além de Deputado Federal pelo Partido Progressista do Estado do Rio de Janeiro é Capitão da Reserva do Exército, queixa-se de uma suposta manobra da esquerda brasileira consistente em tentar “inverter o papel dos militares”; queixa-se, ainda, da ausência de representantes das forças armadas nas comissões de verdade e de sua nomeação pela Presidenta da República, “logo ela, uma das atrizes principais dos grupos armados daquele período”, escreve Bolsonaro. Por isso, continua o autor, “Ninguém pode acreditar na imparcialidade dessa comissão”, que segue as regras do que chama de “democracia dos companheiros”.
Não bastassem as declarações do general José Elito Siqueira, ministro-Chefe do GSI, devidamente rechaçadas por Pádua Fernandes, declarações como as de Bolsonaro revelam uma enraizada incompreensão de História do Brasil (no repetido e sempre rebatido argumento paroxístico de que o Golpe de 64 foi essencialmente democrático), História Política e das Instituições (ao afirmar que houve clamor nacional antes do Golpe e um consenso nacional por anistia depois), e bem assim de Direito e Legislação (ao afirmar a absoluta amplitude dos diplomas anistiadores pós-79) – só para exemplificar alguns dentre os muitos enganos históricos, lógicos, políticos e jurídicos do texto de Vossa Excelência, o deputado Bolsonaro.
A fundar a impressionante raccolta de disparates, o texto que vai assinado por Bolsonaro – e a julgar pelo profundo conhecimento de história que demonstra, não me impressionaria se, de fato, Bolsonaro o tivesse escrito ou ditado a alguém – a teoria conspiratória de que a ex-esquerda armada, que teria transformado o Brasil em um satélite soviético se pudesse, tenta, por intermédio da Comissão da Verdade, inverter a figura dos militares.
Em menos de uma semana, dois sujeitos, que hoje tomam parte em instituições pretensamente democráticas, resolvem despojar-se dos deveres implicados por suas funções institucionais para lembrar, de uma forma ou de outra, que “a democracia brasileira nada mais é do que o resultado dos ‘20 anos de ordem e progresso’” comtiano do período militar, segundo Bolsonaro. Esso já parece ser suficiente para fazer sintoma social.
Tal sintoma pode fazer-nos perceber que a democracia brasileira contemporânea é atravessada de um lado a outro por uma disputada acerca do valor dos signos e da valência das imagens. No entanto, a esquerda “terrorista”, como quisera Bolsonaro, que chegou ao poder no Brasil, chegou ao poder pelo voto popular, não pelo Golpe, como os terroristas de Estado da “Revolução” de 1964. O discurso performativo de Bolsonaro exalta a democracia nacional conseguida ao preço da perseguição, da tortura e do assassinato de civis por agentes do Estado. Assim, a democracia brasileira não passaria de uma continuidade das instituições autoritárias do período militar. Democracia e ditadura, na leitura de Bolsonaro, não teriam sofrido qualquer solução de continuidade.
Assim, Bolsonaro parece fazer crer, por um lado, que a democracia é o último desenvolvimento de um golpe de Estado; por outro, que o Golpe de Estado constituiu a condição de possibilidade da democracia contemporânea. De fato, como quisera Bolsonaro, a verdade está para o militar assim como a fé está para o cristão. A verdade só se atinge pela crença infundada, e o paraíso, pela vigorosa negação de si mesmo, como as contradições performativas de Vossa Excelência dão a ver.
* Para ler o derrisório texto de Bolsonaro na folha de São Paulo, clique aqui. (Bizarramente,  no site institucional das FAB).
** Segue abaixo “Dois Demônios”, texto também saído hoje na Folha, da autoria de Vladimir Safatle.
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@_mdcc




VLADIMIR SAFATLE
Dois Demônios

O atual ministro da Defesa, Nelson Jobim, presta um desserviço ao país com suas declarações sobre a Comissão da Verdade. Ao afirmar que a comissão deveria apurar também as ações de grupos de luta armada contra a ditadura, o ministro reforça a ideia de que a violência de um Estado ditatorial contra a população e a violência de cidadãos contra tal Estado são equivalentes.
Tal colocação vem coroar uma semana na qual ouvimos o ministro de Segurança Institucional dizer que não é motivo de vergonha o desaparecimento de presos políticos.
Afirmações dessa natureza baseiam-se na chamada "teoria dos dois demônios": malabarismo retórico de quem acredita que "excessos" foram cometidos dos dois lados e que, por isso, melhor seria deixar o passado no passado.
Tal sofisma foi rechaçado por todos os países. Não por outra razão, o Brasil é mundialmente citado como exemplo negativo no que diz respeito ao dever de memória e ao trato dos direitos humanos.
Um dos fundamentos da democracia ocidental consiste no direito de resistência. Em última instância, ele afirma que toda ação contra um Estado ilegal é uma ação legal.
O filósofo liberal John Locke lembrava que assassinar o tirano não era crime, pois homens livres não se submetem a grupos que tomam o poder pela força e impõem um regime de exceção e medo.
Foi baseado nesse conceito que, por exemplo, os resistentes franceses não foram considerados criminosos, mesmo tendo perpetrado sabotagens e ações violentas contra outros franceses, colaboradores do nazismo. O problema é que há pessoas no Brasil que estão aquém até mesmo de um conceito liberal de democracia.
Por outro lado, com suas afirmações, o ministro da Defesa esconde tacitamente o fato de que os integrantes da luta armada envolvidos nos chamados "crimes de sangue" já foram julgados. Eles não foram beneficiados pela Lei da Anistia, de 1979. Por isso continuaram na prisão mesmo após essa data, fato que o pensamento conservador nacional faz de tudo para acobertar.
Ou seja, os únicos anistiados foram os responsáveis por terrorismo de Estado.
Por fim, vale lembrar que, contrariamente a outros países sul-americanos, não existiam grupos de luta armada no Brasil antes da ditadura militar. Eles foram o resultado direto do fechamento das vias políticas de transformação.
Por isso, aos que se contentam em repetir chavões como "temos que construir o futuro, o importante é isso" devemos lembrar que país nenhum construiu o seu futuro sem acertar contas com os crimes do passado.
A exigência de justiça é como a razão, segundo Freud: ela pode falar baixo, mas nunca se cala.