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Necropolítica da memória escrava no Brasil pós-abolição
15 abril, 2019
O real do direito: sobre a filosofia do direito de Gilles Deleuze
24 janeiro, 2019
Pensar a Netflix: séries de pop filosofia e política
17 setembro, 2018
"Pensar a Netflix: séries de pop filosofia e política", livro organizado por Bruno Cava e Murilo Duarte Costa Corrêa (D'Placido, Belo Horizonte).
"Todo problema concernente à filosofia está no fato de que ela ainda não é pop o bastante: ela ainda não faz máquina de modo a rivalizar, ou diferir, em conexão com a dos algoritmos. É isso o que quer dizer inventar a pop filosofia que falta: produzir as núpcias diabólicas entre o conceito e as intensidades pop; construir a filosofia como uma máquina de expressão coletiva na imanência do circuito das imagens e das redes. Um conceito deve produzir efeitos de verdade como uma corrente de WhatsApp. Disseminar-se como uma hashtag de Twitter. Bombar como um meme de Facebook. Isso faz do pop um procedimento político. A teoria cítrica que produz a equivalência geral de todas as imagens singulares não passa da condição necessária, mas não suficiente, para que as intensidades pop possam afetar a filosofia."
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Indóceis e inúteis: o que podem os corpos?
15 junho, 2013
Primeiro foi Porto Alegre; depois, Natal,
São Paulo, Goiânia e o Rio de Janeiro... Uma multidão de corpos indóceis e
inúteis impede as vias públicas, para o tráfego eternamente estagnado das seis
da tarde das grandes capitais e, paradoxalmente – dirão alguns –, em nome da
liberdade de circular insujeitos pela cidade. Quem teria lhes dado esse direito
– por tanto tempo exclusivo dos automóveis?
Os corpos jovens, liberados e frenéticos
que nos últimos dias ocuparam as praças e as principais avenidas de grandes
cidades em um movimento meta-regional interromperam os fluxos do capital que as
sucessivas isenções de IPI tornaram possível. É a potência e a virtù desses corpos indóceis e inúteis,
insubmissos e nada comportados, que constitui o princípio de desarticulação das
estratégias de poder que se dissimulam sob a questão da tarifa do transporte
público nas grandes metrópoles. Eis o que torna urgente tentar lançar luzes
sobre os protestos que se espalham pelo Brasil, para muito além das frases
efectistas e midiáticas, das gritas reativas de um Arnaldo Jabor – ou de
qualquer outro ex-comunista arrependido que hoje ocupa os postos discursivos
por meio dos quais a grande mídia, a serviço do Estado e, sobretudo, dos
interesses corporativos, tenta incessantemente controlar as margens de crítica
social.
As vidraças quebradas – alvo
aparentemente preferido desses corpos anarquistas – forma, ao lado das máscaras
de “V, de Vingança” e do lixo incendiado,
o conjunto das grandes marcas simbólicas – ou melhor, demasiadamente inconscientes
e reais – das passagens revoltas dos corpos pelas cidades. Eis alguns dos
signos que permitem produzir uma genealogia dos acontecimentos de superfície
que visa a romper com os quadros de inteligibilidade dados, e enxergar um pouco
além do que, no movimento pelo passe livre e pela tarifa zero, parece ser meramente
acidental. Trata-se de desentocar a própria potência política vital de que a
coragem crua desses corpos se tornou depositária.
As vidraças estilhaçadas – nem
sempre pelos manifestantes – nada mais são do que o acontecimento de
superfície de um atentado contra o princípio de uma sociedade disciplinar e de
controle em que os corpos são constantemente vigiados e controlados nas margens
virtuais de seus gestos; basta um esboço ou um descuido para que o poder que
transforma cada corpo em um sujeito, ou em um indivíduo, torne-se sutilmente
eficaz e maquinal. Assim, a disciplina vai moldando cotidiana e continuamente,
em um nível infralegal e infrajudiciário, os corpos dóceis e úteis. À luz das
patologias da normalidade que o poder implanta no coração das subjetividades
que produz, tudo o que ameaça a tranquila normalidade do retorno para casa após
um dia extenuante de trabalho só poderia significar um atentado à liberdade dos
“cidadãos de bem” – esses efeitos do poder – que se comprazem em se comprimir
uns contra os outros nos infinitos engarrafamentos das metrópoles ou no
interior dos coletivos abarrotados; porém, esta não passa da perspectivação do
fenômeno pela sensibilidade estrábica dos doentes de normalidade, os sujeitos
constituídos pelas finas malhas de poder dos panoptismos que jamais deixaram de
integrar as estratégias das sociedades disciplinares ou de controle. Como as
vidraças estilhaçadas, deixadas para trás pelos corpos revoltos, não seriam,
também, o signo do contrapoder que circula em corpos que se desejam anônimos, impessoais
e inindividualizáveis?
Não se trata de fazer um elogio da
violência; porém, tampouco se trata de sacralizá-la nas ilegalidades cometidas
pelas Polícias e pelos Estados pseudodemocráticos – como o Brasil revela ser. O
poder circula pelos corpos das multidões. Assim como ele explode contra elas,
nas ações criminosas legalizadas em aparência pelas formas jurídicas do Estado e
do capital-dinheiro, ele explode a partir
delas também. É nesse sentido que Negri pudera afirmar que um protesto pode
ser não-violento, mas jamais será pacífico – é com o poder que circula nos
corpos que os contra-poderes, até então sujeitados, produzem sua rebelião
profunda e mística.
Esses corpos indóceis usam máscaras. “Estratégia
de terroristas e bandidos que não querem ser reconhecidos e identificados” – logo
dispararam alguns. No entanto, o gesto de dissimular o rosto no espaço público não
consiste em outra coisa senão na mais radical afirmação de democracia –
especialmente quando um Estado que se pretende democrático reprime tão
sistematicamente qualquer manifestação pública que não deixa outra alternativa
a seus cidadãos senão a de dissimular o rosto para ganhar as ruas e ver o
enxame amorfo que pouco a pouco receberá o nome impronunciável, impessoal e
politicamente monstruoso de multidão. Dissimular o rosto: a única forma de pela
qual essa multidão pode reapropriar-se do espaço público quando toda forma de
dissidência parece ter se tornado virtualmente impossível. Tecida apenas de
singularidades impessoais e precárias, é a própria multidão, constituída pela
revolta profunda dos corpos que relança suas potências, que ocupa as ruas,
negando as identidades que o poder não cessou de tentar fixar sobre seus corpos
agora libertos.
Eis as táticas simbólicas, afetivas
e, a um só tempo, inconscientes mobilizadas a fim de liberar os corpos do jugo
normalizante dos poderes de uma sociedade de controle que ainda conserva muitos
dos aparatos de poder das disciplinas. Romper seu princípio de transparência
(as vidraças, os rostos, as identidades), destruir seu princípio de registro e
controle contínuo (depredar câmeras de segurança ou a iluminação pública), apor
seus signos e palavras de ordem que denunciam que, no limite, a partição entre
o lícito e o ilícito, das formas jurídicas do Estado esconde, sob sua pele
verminal, a repartição maquinal em que o poder seleciona ativamente certas
ilegalidades para receberem a forma legalizadora e a despesa do direito de
Soberania. Eis a macro-operação de poder capitalística que cobre com o véu da
legalidade o infinito mapa de ilegalidades que essa comunidade de eus profundos
coloca em questão: da máfia dos transportes públicos, à das montadoras de
automóveis; da máfia dos empresários do petróleo às atitudes censoras que
constituem a práxis da mídia; das violações de direitos civis que o Estado a
Polícia cometem sistematicamente às ilegalidades do direito
de exceção que já vige no país, mesmo antes da realização dos “grandes
eventos”.
Quando os corpos destroem o princípio
de controle sutil a que se encontravam submetidos – as disciplinas
infinitesimais que produzem o sujeito e sua belle
âme, que os colam a uma singularidade orgânica como efeito da insidiosa
inscrição desses poderes nos corpos, e que classificam o bom e o ruim, repartem
o normal e o anormal –, tudo o que resta aos poderes constituídos é fazer valer
as estratégias de prerrogativas de um direito de Soberania. Isto é, só resta ao
Estado – e as afirmações cínicas de Haddad, direto de Paris (corpo ausente do
soberano), não poderiam prová-lo melhor – aplicar à massa informe, rebelde e
perigosa na qual os indivíduos dóceis subitamente se converteram as
prerrogativas de violência, fiadoras de primeiro tempo das disciplinas
fustigadas pelos contrapoderes que corpos indóceis e inúteis descobriram sob a
superfície artificial e verminal de seus eus sociais. Assim, o Estado pode transformar-se
em máquina de abolição – como não raro se transforma – e fazer da
justiciabilidade dos “vândalos, anormais e insubmissos” um desnecessário e, sob
todos os aspectos, injustificável e criminoso espetáculo de crueldade.
Sob o eu social – superfície
construída por mil e uma microssujeições (como viajar em ônibus lotados, pagar
mais do que um serviço público vale, dar-se conta dos lucros astronômicos dos
empresários do setor de transportes, conhecer as grandes ilegalidades
convalidadas pelo direito que tornam essas malhas de poder cada vez mais tesas
e “naturais”...) – não cessam de se acumular e renovar nossas potências
rebeldes, os contrapoderes de corpos indisciplinados, indóceis e, do ponto de
vista dos poderes que se organizam para sujeitá-los, inúteis.
Na medida em que, contra o Estado,
produz-se a revolta profunda de todos os corpos, esses corpos transformam sua
fenomenologia da revolta em uma ontologia da liberdade. Descobrem que a única
consistência da liberdade é a práxis da rebelião e, ao mesmo tempo, que a única
forma de fazer uma rebelião que seja também uma festa de destruição de todos os
valores contestados é tomando parte nessa experiência de liberdade. Sob a
práxis está a descoberta revolucionária de todos os corpos indisciplinados: jamais fomos sujeitos! O poder que
circula pelos nossos corpos – seus fluxos domados e axiomatizados pelo capital,
pelo Estado, pelos aparatos micrológicos e microfascistas das sociedades de
controle – é desejo esquizo, potência
revolucionária. Rebelando-se contra as disciplinas, todos os corpos poderão, um
dia, descobrir-se profundamente anarquistas, questionando a repartição do
lícito e do ilícito a partir das ações borderlines
como a de quebrar vidraças, usar máscaras, incendiar lixo ou pichar palavras de
ordem – travar discursivamente, também, esse combate pelo sentido e pelos
signos.
O lixo incendiado é o signo último
desse combate: de um lado, a recusa das dejeções que o sistema de exploração
capitalista amontoa e produz sem cessar; de outro, o princípio incendiário e
contaminador que comunica a indisciplina e a insubmissão como princípio de
abertura e questionamento radical de um corpo a outro; já não podermos falar em
comunicação do aberto entre almas, porque a alma foi queimada com o fogo. Ela
também é, de alguma forma, um dejeto incendiado que o poder fabricou.
Eis o que todo corpo insubmisso,
indócil e inútil que ocupa – e ainda ocupará por muito tempo – os espaços
públicos coloca em jogo: um devir indomável de nossas formas de viver e de
pensar para o mercado. Uma forma de reabrir o que parecia fechado, de combater
o fechamento e as estases que o poder produz nos corpos sujeitados. Impedindo o
trânsito violentamente com a mesma intensa doçura de quem escreve em um cartaz:
“Desculpe o transtorno. Estamos lutando por seus direitos.”, é o devir de todo
um modelo de exercício de poder que esses corpos jovens, indóceis e inúteis
tentam precipitar no aberto. O devir é o novo, o interessante, o vital que
jamais cessa de estar em jogo – mesmo quando os corpos cedem ao poder. O devir
é o princípio vital, virtual e inorgânico que essas indomáveis existências
políticas mobilizam. Eis o próprio tempo a colocar em xeque e a afetar
irremediavelmente a totalidade das formas de vida que o poder produziu, e
produz, como seus dejetos cotidianos: sujeitos, resto ao lado. Viva a rebelião profunda de todos os corpos: saímos às
ruas e só encontramos máquinas desejantes, potências selvagens, tesão político.
Precipitar as formas de vida no devir:
o que podem esses corpos rebeldes não é pouco – sob nenhum aspecto.
* Originalmente publicado no site da Universidade Nômade: <http://uninomade.net/tenda/indoceis-e-inuteis-o-que-podem-os-corpos/>
A rebelião da memória: os afetos da ordem e uma outra ordem dos afetos
23 novembro, 2012
Para #DesarquivandoBr
24.11.2012 – A data assinala o segundo
aniversário da sentença da Corte Interamericana de San José da Costa Rica, que
condenou o Brasil no caso Gomes Lund e outros vs. Brasil a uma série de
obrigações positivas decorrentes de obrigações internacionais em matéria de
Direitos Humanos, fundamentadas na Convenção Americana de Direitos Humanos. Eis
o que move jornalistas, blogueiros, juristas, historiadores, filósofos,
pesquisadores, intelectuais e outros a nos mobilizarmos uma vez mais, atendendo
à convocação de Niara
de Oliveria, a fim de trazer a público, por meio do projeto Desarquivando o Brasil, as
questões que, a nosso ver – embora capitais no contexto democrático brasileiro
contemporâneo –, permanecem em aberto em relação ao recente passado autoritário
brasileiro e seu acerto de contas ainda hoje inconcluso.
De
minha parte, não farei nenhum balanço das políticas transicionais dos últimos
anos; com a Comissão Nacional da Verdade – que, frisemos, visa a responder à
necessária busca da verdade, imposta pela sentença
da CADH no caso Araguaia –, e com a instalação de comissões estaduais
análogas país afora, o que se espera é que tenhamos, ao cabo dos trabalhos, um relatório
detalhado sobre as violações de direitos humanos cometidas pelo Estado e pelo
aparato civil de apoio à ditadura militar brasileira (1964-1985, por convenção
histórica).
Meu
papel, no entanto, é outro; o de lançar uma hipótese que afronta o fundo de boa
parte dos discursos oficiais e não-oficiais negacionistas. Tais discursos
possuem um amplo espectro, indo desde a simples negação (já escrevi sobre isso aqui
e aqui)
até a pura e simples afirmação do anacronismo da questão dos espectros
ditatoriais na democracia contemporânea brasileira.
Esta
última assertiva – a do anacronismo do problema, da ditadura como um evento
histórico delimitado no espaço-tempo e incomunicável com a atualidade –
carrega-nos rapidamente à afirmação do primeiro negacionismo e ao seu imobilismo
aparentemente pragmático. Da afirmação de que “não é preciso lembrar”, torna-se
fácil passar à afirmação radicalmente negacionista de que “nada há para lembrar”,
nada teria acontecido. O perigo do discurso puramente histórico, despido de
toda preocupação genealógica com o real de que a história deve deixar-se
penetrar, consiste precisamente na possibilidade de estabelecer o real
violentamente e por meio dos discursos oficiais. O discurso histórico está
sempre na iminência de ser capturado pelos dispositivos de poder vigentes, pelo
Estado e por suas instituições, que visam, por definição, à estabilidade seja
qual for o preço.
Atualmente,
toda a Teoria da Justiça de Transição estabelece-se ao redor da centralidade do
conceito de memória, dos imperativos de lembrar e da distinção entre anistia, e
seus efeitos jurídico-penais, e esquecimento. No entanto, a memória nunca
aparece definida enquanto tal – sempre se está a falar de um largo espectro conceitual que compreende
desde as lembranças individuais até a constituição de uma memória social, ou
coletiva, no sentido de Maurice Halbwachs, que, no entanto, se tudo – ou quase
tudo – parece dizer a respeito de indivíduos, de um grupo ou de uma nação, bem
como sobre seus valores constitutivos, rigorosamente nada é capaz de dizer
sobre a própria memória como uma realidade independente.
Ao
mesmo tempo em que o conceito aparece como central a todas as outras dimensões
pragmáticas das transições políticas e das concretas medidas de accountability que elas supõem – justiça,
reparação, purgas e reformas institucionais, verdade pública – nada, a não ser
uma prejudicialidade lógica da ordem do que é pressuposto e jamais enunciado
até o fundo, parece capaz de justificar a essencialidade da memória às
transições políticas.
O
lugar-comum segundo o qual as transformações institucionais só são possíveis
através da memória mostra, finalmente, o fundamento infundado da centralidade do
conceito de memória nessas transições. Mesmo Ruti Teitel criticará abertamente
o caráter redentor de que se reveste a memória política em períodos de
transição entre seus teóricos. É como se, no fim das contas, nem mesmo os
teóricos da Teoria da Justiça de Transição soubessem muito bem do que estão a
falar; intuem a centralidade da memória, mas confiam em sua autoposição
empírica.
Essa
lacuna se deve, sobretudo, ao fato de que uma Teoria da Justiça de Transição é
uma elaboração não apenas recente, mas sobretudo inacabada e, se quiser manter
sua aspiração francamente imanente, deverá permanecer em construção e variação
contínuas, atenta às singularidades em torno das quais se elabora. Disso deriva
a circunstância, reconhecida por Paul Gready, da undertheorised nature da
Teoria da Justiça de Transição, bem como da característica segundo a qual quase
todos os seus conceitos são abertos às singularidades, parcialmente indefinidos
e, quando elaborados, significados como decalques do empírico. Não à toa, praticamente
todo escrito sobre justiça de transição baseia-se na metodologia, nem sempre apropriadamente
empregada, de estudo de casos.
É
precisamente sobre esta lacuna teórica que me debruço atualmente: que ela seja
empírica, a que se deve a centralidade do conceito de memória nas transições
políticas e, sobretudo, de onde se extrai seu potencial transformador?
Parece-me que um dos únicos pensadores capazes de dar a essa questão uma resposta
adequada é Henri Bergson.
Não
é o caso de ensaiar uma resposta: ela é minha tese de doutorado, ainda por ser
escrita. Trata-se, antes, de buscar hipóteses para responder àqueles que creem
que realizamos uma discussão anacrônica – grandes teóricos (conservadores, é
preciso dizer) de uma suposta consolidação democrática atemporal, “dada de uma vez
por todas e toda de uma vez”, para parafrasear justamente a característica que
Bobbio negava aos direitos humanos, essencialmente históricos.
Mais
profundamente, deveria preocupar-nos os efeitos imediatamente políticos e
pragmáticos dessa lacuna teórica: não saber muito bem em que consiste a
memória, reduzi-la à lembrança individual, à escritura histórica – que não está
imune de girar no vácuo dos discursos monumentais –, à condição de fiador da
coesão social de grupos nacionais pretensamente homogêneos, significa
entregá-la à potência política negacionista. Sempre se pode dizer contra a vis memoralista: não há o que lembrar, a
história está escrita, estamos reconciliados – argumento que, inclusive,
apareceu na ADPF
153.
Fala-se
em memória todo o tempo e, no entanto, não há lugar para a memória pensada a
partir de sua própria realidade, de uma imanência; não há espaço para compreender
qual sua relação ontológica profunda com o aberto e com o devir: “como um
futuro vem a ser”, é a grande questão colocada desde o fundo inconsciente da
memória. Dinamismos virtuais sempre achatados por funções atuais que a memória deve
desempenhar. Eis o que retira, à memória, sua realidade própria; ela se torna,
então, memória antropológica estrita, quando, muito antes, é memória-mundo,
memória-vida, memória-espírito (o que não significa nenhuma transcendência, mas
a existência de um registro ontológico virtual), para dizê-lo em sentido
bergsoniano.
A
mesma questão se coloca em termos sociológicos e políticos, isto é, respeitam à
discussão presente das formas de vida. Como se pode compreender que jovens com
seus vinte ou trinta anos de idade, que pouco ou sequer viveram a intensidade
real da repressão, possam unir-se aos mais velhos, compreendendo profunda e
inconscientemente o que significa pensar a democracia e os direitos humanos
como um compromisso político m aberto e transgeracional? Como encontrar sentido
no levantar-se contra...? Seria amor ao anacrônico, saudades do jamais vivido, déjà vu coletivo? Como explicar essa partilha
mística que, pouco a pouco, penetra o seio social em camadas insuspeitáveis?
Bergson,
falando sobre as revoluções francesas, lembrava a afirmação de Émile Faguet, que
dizia que a Revolução Francesa havia acontecido não pela igualdade e pela
liberdade, mas por que se morria de fome. E por que, pergunta-se Bergson, de
repente decidimos que não queremos mais morrer de fome? Por que nós, jovens de
vinte e poucos anos, nos levantamos de repente?
Por que, enfim, em determinado momento, quisemos trocar os afetos da ordem por uma outra ordem dos afetos?
Porque
a política, como a liberdade, é uma questão de profundidade, de desejo e de
inconsciente; logo, por isso mesmo, de memória – virtual coalescente com o
atual que o acaso deforma no devir: aparentemente, nada muda (atual), mas tudo
mudou (virtual); “um prato racha”, dizia Deleuze, uma ruptura imperceptível
acontece e nada mais é como antes; temos uma linha de fuga.
Em
Bergson, o devir e o aberto vêm da deposição inconsciente e infinitesimal dos
eventos na memória do espírito (o virtual, a memória em profundidade). O
místico – que Bergson afirma ser o grande homem de ação –, mas também o artista
e o moralista – aquele que provoca intensas alterações de valores, que
instaura, pelo exemplo, uma abertura na moralidade social – são indivíduos
coextensivos a essa operação ontológica da memória mais profunda.
É
enganoso pensar o devir do ponto de vista individual: não é o devir que é
produzido por indivíduos, são os indivíduos que dão vazão ao devir que, em
Bergson, confunde-se com Deus – nada além de “um esforço criador” que não se
encontra fora deste mundo, mas entranhado nele, seu motor inaparente sempre
sujeito aos dinamismos do acaso –, o próprio elã vital, que não se confunde com
a vida orgânica mais com a sombria operação do tempo universal. Nesse sentido,
o místico, instrumento do Deus bergsoniano, é a prova de que o devir é da ordem
das singularidades impessoais; não há sujeitos fixos, apenas ilusões
superficiais, ficções de fixidez; em profundidade opera o acúmulo infinito das
experiências e afetos na memória dessas individuações. Eis a personalidade
bergsoniana atravessada pelo elã vital.
Se
os jovens hoje se levantam, se trocam os afetos da ordem por uma outra ordem dos afetos, é porque, de
alguma forma – que, felizmente, não me cabe demonstrar aqui – há um
encantamento rítmico de seus eus em
profundidade e o daqueles que os precederam na luta pela transfiguração do
real. Mas, para isso, é preciso saltar para o exterior dos códigos sociais, da
ficção do indivíduo e do círculo teso da própria espécie e das tendências
sociais e intelectuais naturais ao homem. Eis o super-homem bergsoniano, que já
não adoece de normalidade, que dispensa a religião porque sente na profundidade
de si o pulsar divino, o chamado heroico de um impulso criador que não oferecer
garantias.
Entre
os jovens do Levante, a evocação dos nomes dos companheiros “tombados na luta” seguidos
de um uníssono “- presente!” metaforiza nada mais do que o retorno e a rebelião
de memórias profundas, inconscientes, de desejos selvagens incompreensíveis,
mas cuja presença irresistível é evocada e aspirada pelo nome que contém um
desejo inteiro. Todos vibram na mesma intensidade dessa presença, não raro inconsciente,
mas sensível, da memória em comum: ponto de ressonância afetivo para, criando
uma abertura no superficial, superar nossas formas de vida atuais (círculos sociais,
individuais, inerentes à espécie), e saltar na ontologia: devolver ao virtual
da memória o que ela tem de afeto real, de energia eficaz e de profunda liberdade
de uma comunidade por vir, uma comunidade
de eus profundos.
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O amor como introdução à filosofia (parte 3 de 3)
12 dezembro, 2011
"Amor não
falta"
Dizíamos que a história da má compreensão da filosofia confunde-se com a história dos mal-entendidos sobre o amor. No entanto, toda uma tradição clássica e medieval que pensara o amor como falta encontrará na modernidade ora sua reafirmação, ora os lampejos de seus primeiros desvios.
Dizíamos que a história da má compreensão da filosofia confunde-se com a história dos mal-entendidos sobre o amor. No entanto, toda uma tradição clássica e medieval que pensara o amor como falta encontrará na modernidade ora sua reafirmação, ora os lampejos de seus primeiros desvios.
Em um texto sobre O amigo, Giorgio Agamben
pergunta-se sobre o significado do sintagma “eu te amo”. O fato de que “eu te
amo” não tenha recebido até hoje nenhuma definição satisfatória constituiria o
indício de que a afirmação tem caráter performativo; isto é, seu significado coincidiria
com o ato de seu proferimento.
Seguindo a definição
espionsana de desejo como causa imanente, Nietzsche já afirmava um desejo
imanente como princípio do amor no aforismo 175 de Além do Bem e do Mal: “Por fim,
amamos o próprio desejo, e não o desejado”; princípio semelhante se repetiria,
mais tarde, em Vontade de
Potência, em que Nietzsche afirmava “Eu não desejo; algo em mim deseja”.
Não há, pois, sujeito de desejo na medida em que é o desejo o que antecede e
pode constituir o sujeito. A boca, demasiadamente certa de si, que pronuncia
“eu” balbucia um outro como o desejo que em mim deseja.
Se Agamben
estivera certo, e “eu te amo” não admite significação satisfatória,
afirmaríamos que há amores, ainda que não-conceituais. Se assim for, o amor e o
desejo já não admitem inclusão no plano dos conceitos, mas no plano do
pré-conceitual, do pré-filosófico, na dimensão da experiência pura, do campo de
imanência (que, por definição, é aconceitual).
Se falamos de um
amor que já não pode ser definido, e sequer significa, que não existe em função
de um sujeito, mas que pode subjetivar, criar suas máscaras e mudar os rostos e
impressionar os corpos, a pergunta que deve ser feita altera-se, também: não se
trata mais de perguntar “o que é o amor?”, mas, sim, “como o amor funciona?”;
e, se o fio condutor de nosso problema é mostrar em que medida o tema do amor
pode servir como uma introdução à filosofia, talvez fosse o caso de
perguntar-nos “em que consiste tomar o amor como experiência contra o saber?”,
experiência de erotismo sem egotismo: eu dissolvido em proveito de um si
singular, impessoal.
Assim como Descartes e Kant erigiram o sujeito como o ponto de
gravidade de toda teoria do conhecimento possível, ao dissolver as identidades
demasiadamente personalistas, o amor abriria uma outra chance de pensar em
comum: quando os sujeitos são dissolvidos, é o que Deleuze chamava de Campo
Transcendental – a dimensão comum e imanente – que resta, e ela altera não
apenas os rostos e corpos, mas também os afectos que vem inscrever-se nos
corpos tornados a mais própria dimensão da experiência sensível.
Por essa abertura, podemos ensaiar uma primeira relação entre as
escrituras do amor e da filosofia. A escritura do amor em comum é a escritura
eventual: biográfica, franzida nos traços da vida, entremeadas nos
acontecimentos. A biografia amorosa escreve-se, assim como a escritura
filosófica, na ponta de nossa mais extrema ignorância. Os relatos dos
apaixonados e dos filósofos não raro são os mesmos: “eu não sabia o que estava
fazendo...”, “... simplesmente aconteceu...”, “eu não sabia que era isso...”;
no amor, como na filosofia, somos sempre os últimos a saber – quando o eu se
apropria de um sentimento qualquer, de uma intuição que se esboça sob os olhos
perdidos da nossa desatenção, já nos encontramos apaixonados, já se instaurou o
conceito. É nessa ponta de extrema ignorância – inconsciente, como o próprio
princípio do desejo – que não será defeso criar conceitos e amar o amor como
duplo de um único gesto vital.
* * *
Gostaria, agora, de percorrer ao longo de dois ensaios para
responder à questão “como o amor funciona?”.
Deleuze, em Proust
e os Signos, afirmava que apaixonar-se é individualizar alguém pelos signos
que emite; tornar-se sensível a esses signos... se a amizade nasce da
observação e da conversa – isto é, da comunicação –, o amor surgiria de uma
espécie de interpretação silenciosa, marcada pelo desenvolvimento dos signos
que recebemos da pessoa amada; o que Deleuze quer dizer é que não é possível
amar sem instaurar um novo sentido no mundo, sem se sensibilizar pelos signos
de outrem que, povoando um campo heterogêneo,apela a um outro mundo possível.
O que é o amado? Há, em Deleuze, ao menos três respostas a esta
questão: o amado pe um emissor de signos, e apenas amamos ao preço de deixar
nossos corpos serem impressionados por estes signos; o amado é um outro mundo
possível que se encontra envolvido em cada signo emitido; e, finalmente, o
amado é uma senha: que exige decifração, paciência, entrega. O signo é, para
Deleuze, o afecto, a violência, “aquilo que dá a pensar”, que engendra o pensar
no pensamento, que tira o intelecto de seu inatismo e de seu natural estupor.
Uma vez que ao
amar desembocaríamos em mundos que se formaram em nossa ausência, que nos
excluem essencialmente, as palavras o amado soariam sempre como mentiras. O
amado nos envia seus signos desde outros mundos possíveis, que não podemos
compreender inteiramente; por isso o ciúme, ao ir mais além na decifração dos
signos, seria mais profundo que o amor. Enquanto o ciúme busca,
suspeitosamente, a mentira no signo amável como índice de um outro mundo
possível, o amor funciona como a comunidade entre duas singularidades
irredutíveis, a diferença mais estrangeiras, o que Deleuze chamara “a realidade
feminina original, o mundo de Gomorra”...
Giorgio Agamben, em A ideia da
Prosa, escreve sobre uma Ideia
do amor:
“Viver na intimidade de um ser estranho, não para nos
aproximarmos dele, para o dar a conhecer, mas para o manter estranho,
distante, e mesmo inaparente - tão inaparente que o seu nome o
possa conter inteiro. E depois, mesmo no meio do mal estar, dia após dia
não ser mais que o lugar sempre aberto, a luz inesgotável na qual esse ser
único, essa coisa, permanece para sempre exposta e murada.”
O que é um autor, um filósofo, uma obra? Um mundo possível, um
território desconhecido, um ser em cuja estranha intimidade podemos viver; o
ser que mantemos distante, inaparente, a fim de que seu nome possa contê-lo
inteiro; um amante emissor de signos aos quais podemos ter nos tornado
sensíveis, a partir dos quais se tornou possível instaurar um novo sentido no
mundo, mas apenas ao atingir seu mais fino grão: sua diferença mais irredutível.
Argentina e união homossexual: uma partilha dos devires
15 julho, 2010
Sobre o reconhecimento jurídico das uniões civis homoafetivas na Argentina, o jurista italiano Luigi Ferrajoli disse tratar-se da “homologación jurídica de las diferencias”. Talvez fosse preferível encará-lo como uma partilha dos devires.
Se com Gilles Deleuze aprendemos a desprezar os universais como explicações – ao contrário, é o universal que deve ser explicado –, Michel Foucault teria ensinado, em algumas das mais belas páginas da filosofia ocidental, o sentido intenso de uma forma de existência homossexual. Isso nada tem a ver com a sexualidade em sentido estrito, mas sim com as possibilidades de vida que uma existência homossexual seria capaz de suscitar, uma nova política de virtualidades que se abririam à discussão e constituição de novas formas de vida e partilha da existência.
Há uma leitura antiinstitucionalista e antinormativista bastante equivocada de Foucault nesse ponto: a ideia de que só se podem suscitar novos modos de existência do lado de fora das instituições ditas tradicionais. A própria biografia de Foucault revela o engano dessa concepção. Foucault era pesquisador e professor no Collège de France, uma das instituições mais tradicionais de França, e diversas vezes foi criticado precisamente por isso. Sua resposta era das mais interessantes; ele afirmava fazer de seu pensamento e de sua escritura uma guerra de guerrilhas – e que guerrilheiro fugiria a uma fronteira interior, intra-sistêmica? Por que se negar a conduzir sua guerrilha por dentro das trincheiras do antagonista? Por que não roer as instituições por dentro?
Não se trata de simplesmente destruir ou abolir as instituições – ao menos, não era isso que Foucault ou Deleuze queriam dizer; fazê-lo seria simplesmente transformar o potencial liberatório dos devires em linhas fascistas de abolição. Nesse sentido, o primeiro texto de Daniel Link sobre o reconhecimento da união civil homossexual na Argentina – ao qual cheguei pela amiga Flávia Cera – é exemplar em prová-lo. Trata-se, isso sim, de desembaraçar-se das instituições para pensar, mas de nunca se negar a conduzir nossas guerras de guerrilhas, bem como nossas ações políticas, ao interior das fronteiras mais heterogêneas – sem que isso signifique a pura pretensão de aboli-las por completo. Só assim se pode fazer uma micropolítica de intensidades, reunir mesmo as instituições mais tradicionais àquilo que elas podem, lançá-las a um devir.
Reconhecer a união homoafetiva não é um golpe no casamento, especialmente o religioso, simplesmente porque essa não é a guerrilha dos homossexuais. Tampouco se trata de uma pura e simples luta pelo reconhecimento social. Trata-se, sim, de algo mais singelo: institucionalizar mais uma possibilidade de existência... Nisso, não se destrói a instituição do matrimônio (heterossexual, civil ou cristão), e tampouco se o reafirma como modelo.
Os efeitos políticos desse "reconhecimento" institucional atingem não apenas os homossexuais, mas, sem dúvida, também os heterossexuais - e positivamente. Não invalidam o matrimônio tradicional, mas virtualizam novas possibilidades de vida – institucionais e não-institucionais – a homo e heterossexuais. Essas novas formas de existência, institucionalizadas, atingem o seio do comum: a partilha homogênea do amor e seus signos heterogêneos; atingem, por outro lado, também a partilha homo-heterossexual de um potencial político para inventar outros modos de viver-junto - a partilha homogênea de devires heterogêneos, no interior e para além das instituições.
Lançamento: O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia
20 junho, 2010
Com esta, já são três as traduções portuguesas de O anti-Édipo, escrito a quatro (só quatro?!) mãos por Gilles Deleuze e Félix Guattari e publicado originalmente em 1972 por Les Éditions de Minuit. No Brasil, chegaram-nos, desde 1976, três traduções: a precursora, da editora Imago (1976), atualmente esgotada; a da Assírio & Alvim (a edição que tenho data do ano 2004), em português “lusitano” pré-reforma ortográfica; e esta, que ora apresento, da Editora 34, de São Paulo, assinada pelo tenaz Luiz B. L. Orlandi – professor, ensaísta e um dos mais autorizados tradutores das obras de Deleuze no Brasil.
Pude comparar a nova tradução da Editora 34 com a tradução da Assírio & Alvim e acredito que a tradução brasileira de Orlandi é meritória: clara, conceitualmente afiada, e, de longe, mais cômoda aos leitores brasileiros – principalmente àqueles desacostumados ao vocabulário tão singular de Deleuze. Mais um ponto a favor da tradução brasileira: o custo. Não se trata de um livro importado, como a edição da Assírio & Alvim.
Finalmente, é sempre positivo vermos reedições de livros como O anti-Édipo que, malgrado as críticas feitas a seu misticismo filosófico, hermetismo conceitual e aparente impenetrabilidade, é mais um convite à (re)leitura desafiadora e prazerosa desse que já é um texto clássico da filosofia francesa contemporânea. Mais importante é lembrar que este é um texto vivo, fruto público da atividade docente de Deleuze no período de Vincennes, no início dos anos 70. A tradução de Orlandi dá fôlego novo a essa obra, que continua mais viva do que nunca. Fica a dica dessa bela tradução, com o release da Editora 34 abaixo para os curiosos.
* * *
O anti-Édipo
Capitalismo e esquizofrenia 1
Gilles Deleuze
Félix Guattari
Tradução de Luiz B. L. Orlandi
Coleção Trans
560 p. - 14 x 21 cm
ISBN 978-85-7326-446-3
2010 - 1ª edição (Acordo Ortográfico)
Este é um livro revolucionário, em múltiplos sentidos. Não só porque seus autores o escreveram sob o influxo de Maio de 68, mas sobretudo porque seu alvo é compreender e libertar a potência revolucionária do desejo, dinamitando as categorias em que a psiquiatria e a psicanálise o enquadraram.
No centro do conflito está a concepção freudiana do inconsciente como teatro e representação — e sua pedra de toque, o drama de Édipo. Para Deleuze e Guattari, ao contrário, o inconsciente não é teatro, mas usina; não é povoado por atores simbólicos, mas por máquinas desejantes; e Édipo, por sua vez, não passa da história de um longo "erro" que bloqueia as forças produtivas do inconsciente, aprisiona-as no sistema da família e assim as remete a um teatro de sombras.
Com agilidade impressionante, O anti-Édipo combina dispositivos da filosofia, da literatura, da antropologia, da arte, da economia, da ciência, da política e da biologia — além de um sem-número de alusões e citações que correriam o risco de passar despercebidas não fosse o trabalho rigoroso do tradutor Luiz B. L. Orlandi, que dotou esta edição de valiosas notas informativas —, para articular uma crítica radical da cultura que acabou por definir uma das linhas de força do pensamento contemporâneo.
Sobre os autores
O filósofo Gilles Deleuze nasceu em Paris em 18 de janeiro de 1925. Frequentou o Liceu Carnot e formou-se em Filosofia na Universidade de Paris I (Sorbonne), em 1948. Lecionou no ensino secundário até 1957, quando tornou-se professor de História da Filosofia na Sorbonne. Entre 1960 e 1964 foi pesquisador do CNRS, tendo sido depois professor em Lyon (1964-1969) e na Universidade de Paris VIII, Vincennes, (1969-1987). Escreveu diversos livros que dialogam com o legado de Kant, Bergson, Nietzsche e Spinoza; o primeiro deles, Empirismo e subjetividade, foi lançado em 1953.
Durante seu período de docência em Vincennes, em 1969, Deleuze conheceu o psicanalista Félix Guattari, com quem escreveu uma série de livros fundamentais, como O anti-Édipo (1972) e Mil platôs (1979). Seu último livro, Crítica e clínica, uma coletânea de ensaios sobre literatura e filosofia, foi publicado em 1993.
Morreu em 4 de novembro de 1995, em Paris.
Psicanalista e filósofo, Félix Guattari nasceu em 30 de março de 1930, em Villeneuve-les-Sablons, próximo a Paris. Fundou, com Jean Oury, a famosa clínica de La Borde, em Court-Cheverny. Conheceu Gilles Deleuze na Universidade de Vincennes, em 1969, iniciando uma colaboração que resultaria nos livros O anti-Édipo (1972), Mil platôs (1979) e O que é a filosofia? (1991), entre outros. Morreu em 29 de agosto de 1992.
Sobre o tradutor
Luiz B. L. Orlandi nasceu em Jurupema, SP, em 1936. Graduou-se em Pedagogia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara no ano de 1964, cursando em seguida Pós-Graduação em Filosofia na Universidade de São Paulo. Em 1968 tornou-se professor do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Campinas, transferindo-se em seguida para a França, onde concluiu seus estudos. De volta ao Brasil, doutorou-se em Filosofia em 1974 pela Unicamp, onde é atualmente professor titular do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, lecionando também no Núcleo de Estudos da Subjetividade da PUC-SP. A partir da década de 80 passa a se dedicar regularmente à tradução, atividade que mantém em paralelo com as de professor e ensaísta. Da obra de Gilles Deleuze — da qual é um dos grandes intérpretes no Brasil — traduziu Diferença e repetição (com Roberto Machado, 1988); A dobra: Leibniz e o barroco (1991); Bergsonismo (1999); Empirismo e subjetividade (2001); A ilha deserta e outros textos (como coordenador da tradução coletiva, 2006); e, de Gilles Deleuze e Félix Guattari, O anti-Édipo (2010).
| Fonte: release, Editora 34 |
As unhas de Gilles: o animal contemporâneo
03 junho, 2010
uma filosofia “menormenormenormenormenor enorme”
Para além dessa paráfrase do poema “Epitáfio” (publicada em Calendário Perplexo, 1983), em que José Paulo Paes presta uma homenagem à memória de Manuel Bandeira, sabemos, desde Jorge Luis Borges, o quanto custa ser um poeta menor. Deleuze sempre foi um filósofo menor, avesso aos holofotes, mas com uma fala intensamente musical; não fosse, antes de qualquer coisa, um professor público, teria sido quase um filósofo privado.
Em Carta a um crítico severo, Deleuze desfaz-se de algumas críticas endereçadas por um antigo e ressentido interlocutor; por exemplo: “critica o Édipo, mas mantém uma esposa e edipianiza os próprios filhos”; “diz-se avesso aos palcos, mas suas unhas cumpridas e seu casaco de operário (na carta Deleuze o corrige e diz: ‘não é verdade, é uma jaqueta de camponês’) são como o corpete plissado de Marilyn Monroe e os óculos de Greta Garbo”; “analisa o devir-mulher, mas sequer deixa de ser heterossexual” etc.
Deleuze é protagonista de um pensamento incômodo; sobretudo, é uma figura incômoda, rebelde, capaz de puxar o fio de toda a história da filosofia. Com ele, nada fica intocado. Mesmo os autores sobre os quais se debruçava como historiador da filosofia (Hume, Spinoza, Kant, Bergson, Leibniz, Foucault), Deleuze apenas o fizera “concebendo a história da filosofia como uma espécie de enrabada, ou, o que dá no mesmo, de imaculada concepção. Eu me imaginava chegando pelas costas de um autor e lhe fazendo um filho, que seria seu, e no entanto seria monstruoso.”
Talvez a própria Carta a um crítico severo, seja a prova maior de uma filosofia capaz de tocar a própria vida singular de um filósofo que já não é o sujeito “Gilles”, mas um campo subjetivo de forças afetado de maneira singular pelas intensidades que podem despertar um corpo demasiadamente inerte.
Nunca abolir o outro
A delicadeza forte com que Deleuze – sem nunca apelar ao juízo – desembaraça-se das críticas ressentidas de seu interlocutor (benevolente até o ponto em que seu interesse decai) parece ser uma espécie prática da matéria de sua própria filosofia: nunca destruir um pensamento, nunca negativizá-lo pelo juízo, mas confrontar-se com ele; utilizar sempre a fina lima da prudência, a fim de impedir que uma linha de fuga torne-se uma linha de abolição completa e obstrua os devires. Assim é com a droga, o álcool e com a própria filosofia deleuziana.
Uma máquina de guerra – que, no fim das contas, será o próprio pensamento –, como a máquina de guerra nômade, age, desde Pierre Clastres, sobre as formações de estado, contra as territorialidades demasiadamente fixas; a linha de fuga não age destruindo as pontuações de estado que subordinam o movimento da linha nômade, mas, retirando as pontuações capitalísticas, tirânicas, despóticas, estatais de sua fixidez a priori, Deleuze impede-nos de pensar que as determinações histórico-políticas estejam dadas de uma vez por todas.
Aliás, uma máquina de guerra age sempre no exterior de um aparelho de estado que, não obstante, pode capturá-la, territorializá-la, nacionalizá-la e utilizá-la como uma máquina militar, engendrá-la na polícia, no terror e no aniquilamento.
Uma máquina de guerra como os nômades a conheciam, porém, age por fora, promove uma desarticulação positiva – não se trata de desarticular negativamente, destruindo, abolindo, mas de retirar as pontualidades de sua placidez sedentária, de devolvê-las ao trânsito móvel dos fluxos da história; tal desarticulação não promove o desabamento dos pontos fixos, mas os reconduz às singulares velocidades dos devires, a um princípio de agitação.
Desarticular não significa destruir, abolir, negativizar, mas multiplicar as articulações, liberá-las, potenciá-las, relançá-las no interior de um devir – ou, como talvez Espinosa preferisse, reuni-las àquilo que elas podem. O outro, o pensamento absolutamente outro, é algo que deve passar pelo crivo seletivo de uma máquina de guerra, mas isso não significa que deve ser abolido. Ao contrário, o outro permanece, em Deleuze, não como a estrutura significante que funda a possibilidade da intersubjetividade (essa mitologia que não sabemos bem se nos chega através de uma modernidade decaída ou de uma pós-modernidade nascente que só consegue pensar o Real ao rebatê-lo sobre determinadas estruturas), mas, sim, na bela definição de O que é a filosofia?, “um outro mundo possível”, uma realidade encarnada, um devir-todo mundo.
Desarticular não significa destruir, abolir, negativizar, mas multiplicar as articulações, liberá-las, potenciá-las, relançá-las no interior de um devir – ou, como talvez Espinosa preferisse, reuni-las àquilo que elas podem. O outro, o pensamento absolutamente outro, é algo que deve passar pelo crivo seletivo de uma máquina de guerra, mas isso não significa que deve ser abolido. Ao contrário, o outro permanece, em Deleuze, não como a estrutura significante que funda a possibilidade da intersubjetividade (essa mitologia que não sabemos bem se nos chega através de uma modernidade decaída ou de uma pós-modernidade nascente que só consegue pensar o Real ao rebatê-lo sobre determinadas estruturas), mas, sim, na bela definição de O que é a filosofia?, “um outro mundo possível”, uma realidade encarnada, um devir-todo mundo.
Os devires
Embora uma aproximação entre Barthes e Deleuze possa parecer despropositada, quando Roland Barthes afirmava que ler ou escrever é uma questão de corpo (uma espécie de poder de afetar e ser afetado), talvez o espinosismo deleuziano concordasse. Em Gilles Deleuze, tudo se resume a “como criar o novo?”, “como favorecer que o novo advenha?”, “como encontrar na repetição a própria condição da diferença, libertando-a da nudez do Mesmo?”.
Nesse ponto, vêm imiscuir-se as relações entre o filosófico e o não-filosófico, o humano e o animal, os devires em que uma forma deveras atual, como o homem, pode ser lançada. O plano, ou o campo, de imanência é precisamente a intervenção do não-filosófico na filosofia, que surge tão logo criamos um conceito. Ao criá-lo, ao “fazer filosofia”, já nos encontramos em uma íntima relação com o não-filosófico.
O animal imperceptível...
As unhas de Deleuze evocam uma passagem muito bonita de sua obra com Guattari; excerto que desafia à antropologia filosófica. Seu quadro de sentido é o pensamento que pode advir das diversas formas de sentir vergonha de ser um homem, e a evocação do intempestivo (isto é, do inatual, do extemporâneo, do virtual) se apresenta: “Não nos sentimos fora de nossa época, ao contrário, não cessamos de estabelecer com ela compromissos vergonhosos. Este sentimento de vergonha é um dos mais poderosos motivos da filosofia. Não somos responsáveis pelas vítimas, mas diante das vítimas. E não há outro meio senão fazer como o animal (rosnar, escavar o chão, nitrir, convulsionar-se) para escapar ao ignóbil (...)”.
Sua Carta a um crítico severo apresenta três hipóteses para as longas unhas de Deleuze: a psicanalítica (“castração, minha mãe as cortava”), a teratológica e selecionista (“faltam as impressões digitais normalmente protetoras”), a psicossociológica ( “eu sonho é ser imperceptível, e o compenso ao poder enfiar as unhas no bolso”) e, finalmente, a interpretação política: “não precisa comer as unhas só porque são suas; se você gosta de unha, coma a dos outros, se quiser ou puder”.
São poucas as fotografias em que as unhas de Deleuze aparecem, mas nunca em primeiro plano; olhamos para Deleuze e, sem qualquer pestanejo, dizemos – sem a interrogação de Levi: “É isto um homem”.
Contudo, no seio da humanidade deleuziana, o próprio corpo, por força de uma dezena de pequenos anexos, é o lugar de inscrição dos signos do animal imperceptível que habita o cerne do humano.
Nas fotografias, encaramos o rosto de Deleuze: “alguns buracos negros” cavados sobre “uma parede branca”. As unhas passam despercebidas à primeira vista. Um olhar mais atento as percebe, mas apenas secundariamente ao rosto. O corpo (magro e frágil de Deleuze), então, submete-se à desarticulação entre homem (rostificação) e a singularização selvagem de um homem que não pode escapar senão por meio de um devir-animal (as unhas de Deleuze).
Ao menos para nós, que conservamos nossas unhas aparadas, as unhas de Gilles - curvadas em forma de garra - constituem o signos que, emitidos como exterioridades puras, são passíveis de desenvolverem-se no heterogêneo. Eles apelam a uma potência estranha, que vem, mas apenas em segundo plano, sob a forma de uma imperceptível, mas potente, sombra (ou sobra) animal contemporânea dos homens.
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