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Pensar a Netflix: séries de pop filosofia e política

17 setembro, 2018





"Pensar a Netflix: séries de pop filosofia e política", livro organizado por Bruno Cava e Murilo Duarte Costa Corrêa (D'Placido, Belo Horizonte).

"Todo problema concernente à filosofia está no fato de que ela ainda não é pop o bastante: ela ainda não faz máquina de modo a rivalizar, ou diferir, em conexão com a dos algoritmos. É isso o que quer dizer inventar a pop filosofia que falta: produzir as núpcias diabólicas entre o conceito e as intensidades pop; construir a filosofia como uma máquina de expressão coletiva na imanência do circuito das imagens e das redes. Um conceito deve produzir efeitos de verdade como uma corrente de WhatsApp. Disseminar-se como uma hashtag de Twitter. Bombar como um meme de Facebook. Isso faz do pop um procedimento político. A teoria cítrica que produz a equivalência geral de todas as imagens singulares não passa da condição necessária, mas não suficiente, para que as intensidades pop possam afetar a filosofia."

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Indóceis e inúteis: o que podem os corpos?

15 junho, 2013




Primeiro foi Porto Alegre; depois, Natal, São Paulo, Goiânia e o Rio de Janeiro... Uma multidão de corpos indóceis e inúteis impede as vias públicas, para o tráfego eternamente estagnado das seis da tarde das grandes capitais e, paradoxalmente – dirão alguns –, em nome da liberdade de circular insujeitos pela cidade. Quem teria lhes dado esse direito – por tanto tempo exclusivo dos automóveis?
Os corpos jovens, liberados e frenéticos que nos últimos dias ocuparam as praças e as principais avenidas de grandes cidades em um movimento meta-regional interromperam os fluxos do capital que as sucessivas isenções de IPI tornaram possível. É a potência e a virtù desses corpos indóceis e inúteis, insubmissos e nada comportados, que constitui o princípio de desarticulação das estratégias de poder que se dissimulam sob a questão da tarifa do transporte público nas grandes metrópoles. Eis o que torna urgente tentar lançar luzes sobre os protestos que se espalham pelo Brasil, para muito além das frases efectistas e midiáticas, das gritas reativas de um Arnaldo Jabor – ou de qualquer outro ex-comunista arrependido que hoje ocupa os postos discursivos por meio dos quais a grande mídia, a serviço do Estado e, sobretudo, dos interesses corporativos, tenta incessantemente controlar as margens de crítica social.
As vidraças quebradas – alvo aparentemente preferido desses corpos anarquistas – forma, ao lado das máscaras de “V, de Vingança” e do lixo incendiado,  o conjunto das grandes marcas simbólicas – ou melhor, demasiadamente inconscientes e reais – das passagens revoltas dos corpos pelas cidades. Eis alguns dos signos que permitem produzir uma genealogia dos acontecimentos de superfície que visa a romper com os quadros de inteligibilidade dados, e enxergar um pouco além do que, no movimento pelo passe livre e pela tarifa zero, parece ser meramente acidental. Trata-se de desentocar a própria potência política vital de que a coragem crua desses corpos se tornou depositária.
As vidraças estilhaçadas – nem sempre pelos manifestantes – nada mais são do que o acontecimento de superfície de um atentado contra o princípio de uma sociedade disciplinar e de controle em que os corpos são constantemente vigiados e controlados nas margens virtuais de seus gestos; basta um esboço ou um descuido para que o poder que transforma cada corpo em um sujeito, ou em um indivíduo, torne-se sutilmente eficaz e maquinal. Assim, a disciplina vai moldando cotidiana e continuamente, em um nível infralegal e infrajudiciário, os corpos dóceis e úteis. À luz das patologias da normalidade que o poder implanta no coração das subjetividades que produz, tudo o que ameaça a tranquila normalidade do retorno para casa após um dia extenuante de trabalho só poderia significar um atentado à liberdade dos “cidadãos de bem” – esses efeitos do poder – que se comprazem em se comprimir uns contra os outros nos infinitos engarrafamentos das metrópoles ou no interior dos coletivos abarrotados; porém, esta não passa da perspectivação do fenômeno pela sensibilidade estrábica dos doentes de normalidade, os sujeitos constituídos pelas finas malhas de poder dos panoptismos que jamais deixaram de integrar as estratégias das sociedades disciplinares ou de controle. Como as vidraças estilhaçadas, deixadas para trás pelos corpos revoltos, não seriam, também, o signo do contrapoder que circula em corpos que se desejam anônimos, impessoais e inindividualizáveis?
Não se trata de fazer um elogio da violência; porém, tampouco se trata de sacralizá-la nas ilegalidades cometidas pelas Polícias e pelos Estados pseudodemocráticos – como o Brasil revela ser. O poder circula pelos corpos das multidões. Assim como ele explode contra elas, nas ações criminosas legalizadas em aparência pelas formas jurídicas do Estado e do capital-dinheiro, ele explode a partir delas também. É nesse sentido que Negri pudera afirmar que um protesto pode ser não-violento, mas jamais será pacífico – é com o poder que circula nos corpos que os contra-poderes, até então sujeitados, produzem sua rebelião profunda e mística.
Esses corpos indóceis usam máscaras. “Estratégia de terroristas e bandidos que não querem ser reconhecidos e identificados” – logo dispararam alguns. No entanto, o gesto de dissimular o rosto no espaço público não consiste em outra coisa senão na mais radical afirmação de democracia – especialmente quando um Estado que se pretende democrático reprime tão sistematicamente qualquer manifestação pública que não deixa outra alternativa a seus cidadãos senão a de dissimular o rosto para ganhar as ruas e ver o enxame amorfo que pouco a pouco receberá o nome impronunciável, impessoal e politicamente monstruoso de multidão. Dissimular o rosto: a única forma de pela qual essa multidão pode reapropriar-se do espaço público quando toda forma de dissidência parece ter se tornado virtualmente impossível. Tecida apenas de singularidades impessoais e precárias, é a própria multidão, constituída pela revolta profunda dos corpos que relança suas potências, que ocupa as ruas, negando as identidades que o poder não cessou de tentar fixar sobre seus corpos agora libertos.
Eis as táticas simbólicas, afetivas e, a um só tempo, inconscientes mobilizadas a fim de liberar os corpos do jugo normalizante dos poderes de uma sociedade de controle que ainda conserva muitos dos aparatos de poder das disciplinas. Romper seu princípio de transparência (as vidraças, os rostos, as identidades), destruir seu princípio de registro e controle contínuo (depredar câmeras de segurança ou a iluminação pública), apor seus signos e palavras de ordem que denunciam que, no limite, a partição entre o lícito e o ilícito, das formas jurídicas do Estado esconde, sob sua pele verminal, a repartição maquinal em que o poder seleciona ativamente certas ilegalidades para receberem a forma legalizadora e a despesa do direito de Soberania. Eis a macro-operação de poder capitalística que cobre com o véu da legalidade o infinito mapa de ilegalidades que essa comunidade de eus profundos coloca em questão: da máfia dos transportes públicos, à das montadoras de automóveis; da máfia dos empresários do petróleo às atitudes censoras que constituem a práxis da mídia; das violações de direitos civis que o Estado a Polícia cometem sistematicamente às ilegalidades do direito de exceção que já vige no país, mesmo antes da realização dos “grandes eventos”.
Quando os corpos destroem o princípio de controle sutil a que se encontravam submetidos – as disciplinas infinitesimais que produzem o sujeito e sua belle âme, que os colam a uma singularidade orgânica como efeito da insidiosa inscrição desses poderes nos corpos, e que classificam o bom e o ruim, repartem o normal e o anormal –, tudo o que resta aos poderes constituídos é fazer valer as estratégias de prerrogativas de um direito de Soberania. Isto é, só resta ao Estado – e as afirmações cínicas de Haddad, direto de Paris (corpo ausente do soberano), não poderiam prová-lo melhor – aplicar à massa informe, rebelde e perigosa na qual os indivíduos dóceis subitamente se converteram as prerrogativas de violência, fiadoras de primeiro tempo das disciplinas fustigadas pelos contrapoderes que corpos indóceis e inúteis descobriram sob a superfície artificial e verminal de seus eus sociais. Assim, o Estado pode transformar-se em máquina de abolição – como não raro se transforma – e fazer da justiciabilidade dos “vândalos, anormais e insubmissos” um desnecessário e, sob todos os aspectos, injustificável e criminoso espetáculo de crueldade.
Sob o eu social – superfície construída por mil e uma microssujeições (como viajar em ônibus lotados, pagar mais do que um serviço público vale, dar-se conta dos lucros astronômicos dos empresários do setor de transportes, conhecer as grandes ilegalidades convalidadas pelo direito que tornam essas malhas de poder cada vez mais tesas e “naturais”...) – não cessam de se acumular e renovar nossas potências rebeldes, os contrapoderes de corpos indisciplinados, indóceis e, do ponto de vista dos poderes que se organizam para sujeitá-los, inúteis.
Na medida em que, contra o Estado, produz-se a revolta profunda de todos os corpos, esses corpos transformam sua fenomenologia da revolta em uma ontologia da liberdade. Descobrem que a única consistência da liberdade é a práxis da rebelião e, ao mesmo tempo, que a única forma de fazer uma rebelião que seja também uma festa de destruição de todos os valores contestados é tomando parte nessa experiência de liberdade. Sob a práxis está a descoberta revolucionária de todos os corpos indisciplinados: jamais fomos sujeitos! O poder que circula pelos nossos corpos – seus fluxos domados e axiomatizados pelo capital, pelo Estado, pelos aparatos micrológicos e microfascistas das sociedades de controle – é desejo esquizo, potência revolucionária. Rebelando-se contra as disciplinas, todos os corpos poderão, um dia, descobrir-se profundamente anarquistas, questionando a repartição do lícito e do ilícito a partir das ações borderlines como a de quebrar vidraças, usar máscaras, incendiar lixo ou pichar palavras de ordem – travar discursivamente, também, esse combate pelo sentido e pelos signos.
O lixo incendiado é o signo último desse combate: de um lado, a recusa das dejeções que o sistema de exploração capitalista amontoa e produz sem cessar; de outro, o princípio incendiário e contaminador que comunica a indisciplina e a insubmissão como princípio de abertura e questionamento radical de um corpo a outro; já não podermos falar em comunicação do aberto entre almas, porque a alma foi queimada com o fogo. Ela também é, de alguma forma, um dejeto incendiado que o poder fabricou.
Eis o que todo corpo insubmisso, indócil e inútil que ocupa – e ainda ocupará por muito tempo – os espaços públicos coloca em jogo: um devir indomável de nossas formas de viver e de pensar para o mercado. Uma forma de reabrir o que parecia fechado, de combater o fechamento e as estases que o poder produz nos corpos sujeitados. Impedindo o trânsito violentamente com a mesma intensa doçura de quem escreve em um cartaz: “Desculpe o transtorno. Estamos lutando por seus direitos.”, é o devir de todo um modelo de exercício de poder que esses corpos jovens, indóceis e inúteis tentam precipitar no aberto. O devir é o novo, o interessante, o vital que jamais cessa de estar em jogo – mesmo quando os corpos cedem ao poder. O devir é o princípio vital, virtual e inorgânico que essas indomáveis existências políticas mobilizam. Eis o próprio tempo a colocar em xeque e a afetar irremediavelmente a totalidade das formas de vida que o poder produziu, e produz, como seus dejetos cotidianos: sujeitos, resto ao lado. Viva a rebelião profunda de todos os corpos: saímos às ruas e só encontramos máquinas desejantes, potências selvagens, tesão político. Precipitar as formas de vida no devir: o que podem esses corpos rebeldes não é pouco – sob nenhum aspecto.

* Originalmente publicado no site da Universidade Nômade: <http://uninomade.net/tenda/indoceis-e-inuteis-o-que-podem-os-corpos/>




A rebelião da memória: os afetos da ordem e uma outra ordem dos afetos

23 novembro, 2012




Para #DesarquivandoBr

24.11.2012 – A data assinala o segundo aniversário da sentença da Corte Interamericana de San José da Costa Rica, que condenou o Brasil no caso Gomes Lund e outros vs. Brasil a uma série de obrigações positivas decorrentes de obrigações internacionais em matéria de Direitos Humanos, fundamentadas na Convenção Americana de Direitos Humanos. Eis o que move jornalistas, blogueiros, juristas, historiadores, filósofos, pesquisadores, intelectuais e outros a nos mobilizarmos uma vez mais, atendendo à convocação de Niara de Oliveria, a fim de trazer a público, por meio do projeto Desarquivando o Brasil, as questões que, a nosso ver – embora capitais no contexto democrático brasileiro contemporâneo –, permanecem em aberto em relação ao recente passado autoritário brasileiro e seu acerto de contas ainda hoje inconcluso.
           De minha parte, não farei nenhum balanço das políticas transicionais dos últimos anos; com a Comissão Nacional da Verdade – que, frisemos, visa a responder à necessária busca da verdade, imposta pela sentença da CADH no caso Araguaia –, e com a instalação de comissões estaduais análogas país afora, o que se espera é que tenhamos, ao cabo dos trabalhos, um relatório detalhado sobre as violações de direitos humanos cometidas pelo Estado e pelo aparato civil de apoio à ditadura militar brasileira (1964-1985, por convenção histórica).
            Meu papel, no entanto, é outro; o de lançar uma hipótese que afronta o fundo de boa parte dos discursos oficiais e não-oficiais negacionistas. Tais discursos possuem um amplo espectro, indo desde a simples negação (já escrevi sobre isso aqui e aqui) até a pura e simples afirmação do anacronismo da questão dos espectros ditatoriais na democracia contemporânea brasileira.
            Esta última assertiva – a do anacronismo do problema, da ditadura como um evento histórico delimitado no espaço-tempo e incomunicável com a atualidade – carrega-nos rapidamente à afirmação do primeiro negacionismo e ao seu imobilismo aparentemente pragmático. Da afirmação de que “não é preciso lembrar”, torna-se fácil passar à afirmação radicalmente negacionista de que “nada há para lembrar”, nada teria acontecido. O perigo do discurso puramente histórico, despido de toda preocupação genealógica com o real de que a história deve deixar-se penetrar, consiste precisamente na possibilidade de estabelecer o real violentamente e por meio dos discursos oficiais. O discurso histórico está sempre na iminência de ser capturado pelos dispositivos de poder vigentes, pelo Estado e por suas instituições, que visam, por definição, à estabilidade seja qual for o preço.
    Atualmente, toda a Teoria da Justiça de Transição estabelece-se ao redor da centralidade do conceito de memória, dos imperativos de lembrar e da distinção entre anistia, e seus efeitos jurídico-penais, e esquecimento. No entanto, a memória nunca aparece definida enquanto tal – sempre se está a falar de  um largo espectro conceitual que compreende desde as lembranças individuais até a constituição de uma memória social, ou coletiva, no sentido de Maurice Halbwachs, que, no entanto, se tudo – ou quase tudo – parece dizer a respeito de indivíduos, de um grupo ou de uma nação, bem como sobre seus valores constitutivos, rigorosamente nada é capaz de dizer sobre a própria memória como uma realidade independente.
            Ao mesmo tempo em que o conceito aparece como central a todas as outras dimensões pragmáticas das transições políticas e das concretas medidas de accountability que elas supõem – justiça, reparação, purgas e reformas institucionais, verdade pública – nada, a não ser uma prejudicialidade lógica da ordem do que é pressuposto e jamais enunciado até o fundo, parece capaz de justificar a essencialidade da memória às transições políticas.
            O lugar-comum segundo o qual as transformações institucionais só são possíveis através da memória mostra, finalmente, o fundamento infundado da centralidade do conceito de memória nessas transições. Mesmo Ruti Teitel criticará abertamente o caráter redentor de que se reveste a memória política em períodos de transição entre seus teóricos. É como se, no fim das contas, nem mesmo os teóricos da Teoria da Justiça de Transição soubessem muito bem do que estão a falar; intuem a centralidade da memória, mas confiam em sua autoposição empírica.
            Essa lacuna se deve, sobretudo, ao fato de que uma Teoria da Justiça de Transição é uma elaboração não apenas recente, mas sobretudo inacabada e, se quiser manter sua aspiração francamente imanente, deverá permanecer em construção e variação contínuas, atenta às singularidades em torno das quais se elabora. Disso deriva a circunstância, reconhecida por Paul Gready, da undertheorised nature da Teoria da Justiça de Transição, bem como da característica segundo a qual quase todos os seus conceitos são abertos às singularidades, parcialmente indefinidos e, quando elaborados, significados como decalques do empírico. Não à toa, praticamente todo escrito sobre justiça de transição baseia-se na metodologia, nem sempre apropriadamente empregada, de estudo de casos.
            É precisamente sobre esta lacuna teórica que me debruço atualmente: que ela seja empírica, a que se deve a centralidade do conceito de memória nas transições políticas e, sobretudo, de onde se extrai seu potencial transformador? Parece-me que um dos únicos pensadores capazes de dar a essa questão uma resposta adequada é Henri Bergson.
            Não é o caso de ensaiar uma resposta: ela é minha tese de doutorado, ainda por ser escrita. Trata-se, antes, de buscar hipóteses para responder àqueles que creem que realizamos uma discussão anacrônica – grandes teóricos (conservadores, é preciso dizer) de uma suposta consolidação democrática atemporal, “dada de uma vez por todas e toda de uma vez”, para parafrasear justamente a característica que Bobbio negava aos direitos humanos, essencialmente históricos.
            Mais profundamente, deveria preocupar-nos os efeitos imediatamente políticos e pragmáticos dessa lacuna teórica: não saber muito bem em que consiste a memória, reduzi-la à lembrança individual, à escritura histórica – que não está imune de girar no vácuo dos discursos monumentais –, à condição de fiador da coesão social de grupos nacionais pretensamente homogêneos, significa entregá-la à potência política negacionista. Sempre se pode dizer contra a vis memoralista: não há o que lembrar, a história está escrita, estamos reconciliados – argumento que, inclusive, apareceu na ADPF 153.
            Fala-se em memória todo o tempo e, no entanto, não há lugar para a memória pensada a partir de sua própria realidade, de uma imanência; não há espaço para compreender qual sua relação ontológica profunda com o aberto e com o devir: “como um futuro vem a ser”, é a grande questão colocada desde o fundo inconsciente da memória. Dinamismos virtuais sempre achatados por funções atuais que a memória deve desempenhar. Eis o que retira, à memória, sua realidade própria; ela se torna, então, memória antropológica estrita, quando, muito antes, é memória-mundo, memória-vida, memória-espírito (o que não significa nenhuma transcendência, mas a existência de um registro ontológico virtual), para dizê-lo em sentido bergsoniano.
          A mesma questão se coloca em termos sociológicos e políticos, isto é, respeitam à discussão presente das formas de vida. Como se pode compreender que jovens com seus vinte ou trinta anos de idade, que pouco ou sequer viveram a intensidade real da repressão, possam unir-se aos mais velhos, compreendendo profunda e inconscientemente o que significa pensar a democracia e os direitos humanos como um compromisso político m aberto e transgeracional? Como encontrar sentido no levantar-se contra...? Seria amor ao anacrônico, saudades do jamais vivido, déjà vu coletivo? Como explicar essa partilha mística que, pouco a pouco, penetra o seio social em camadas insuspeitáveis?
            Bergson, falando sobre as revoluções francesas, lembrava a afirmação de Émile Faguet, que dizia que a Revolução Francesa havia acontecido não pela igualdade e pela liberdade, mas por que se morria de fome. E por que, pergunta-se Bergson, de repente decidimos que não queremos mais morrer de fome? Por que nós, jovens de vinte e poucos anos, nos levantamos de repente? Por que, enfim, em determinado momento, quisemos trocar os afetos da ordem por uma outra ordem dos afetos?
            Porque a política, como a liberdade, é uma questão de profundidade, de desejo e de inconsciente; logo, por isso mesmo, de memória – virtual coalescente com o atual que o acaso deforma no devir: aparentemente, nada muda (atual), mas tudo mudou (virtual); “um prato racha”, dizia Deleuze, uma ruptura imperceptível acontece e nada mais é como antes; temos uma linha de fuga.
            Em Bergson, o devir e o aberto vêm da deposição inconsciente e infinitesimal dos eventos na memória do espírito (o virtual, a memória em profundidade). O místico – que Bergson afirma ser o grande homem de ação –, mas também o artista e o moralista – aquele que provoca intensas alterações de valores, que instaura, pelo exemplo, uma abertura na moralidade social – são indivíduos coextensivos a essa operação ontológica da memória mais profunda.
            É enganoso pensar o devir do ponto de vista individual: não é o devir que é produzido por indivíduos, são os indivíduos que dão vazão ao devir que, em Bergson, confunde-se com Deus – nada além de “um esforço criador” que não se encontra fora deste mundo, mas entranhado nele, seu motor inaparente sempre sujeito aos dinamismos do acaso –, o próprio elã vital, que não se confunde com a vida orgânica mais com a sombria operação do tempo universal. Nesse sentido, o místico, instrumento do Deus bergsoniano, é a prova de que o devir é da ordem das singularidades impessoais; não há sujeitos fixos, apenas ilusões superficiais, ficções de fixidez; em profundidade opera o acúmulo infinito das experiências e afetos na memória dessas individuações. Eis a personalidade bergsoniana atravessada pelo elã vital.
            Se os jovens hoje se levantam, se trocam os afetos da ordem por uma outra ordem dos afetos, é porque, de alguma forma – que, felizmente, não me cabe demonstrar aqui – há um encantamento rítmico de seus eus em profundidade e o daqueles que os precederam na luta pela transfiguração do real. Mas, para isso, é preciso saltar para o exterior dos códigos sociais, da ficção do indivíduo e do círculo teso da própria espécie e das tendências sociais e intelectuais naturais ao homem. Eis o super-homem bergsoniano, que já não adoece de normalidade, que dispensa a religião porque sente na profundidade de si o pulsar divino, o chamado heroico de um impulso criador que não oferecer garantias.
            Entre os jovens do Levante, a evocação dos nomes dos companheiros “tombados na luta” seguidos de um uníssono “- presente!” metaforiza nada mais do que o retorno e a rebelião de memórias profundas, inconscientes, de desejos selvagens incompreensíveis, mas cuja presença irresistível é evocada e aspirada pelo nome que contém um desejo inteiro. Todos vibram na mesma intensidade dessa presença, não raro inconsciente, mas sensível, da memória em comum: ponto de ressonância afetivo para, criando uma abertura no superficial, superar nossas formas de vida atuais (círculos sociais, individuais, inerentes à espécie), e saltar na ontologia: devolver ao virtual da memória o que ela tem de afeto real, de energia eficaz e de profunda liberdade de uma comunidade por vir, uma comunidade de eus profundos.

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O amor como introdução à filosofia (parte 3 de 3)

12 dezembro, 2011




"Amor não falta"


         Dizíamos que a história da má compreensão da filosofia confunde-se com a história dos mal-entendidos sobre o amor. No entanto, toda uma tradição clássica e medieval que pensara o amor como falta encontrará na modernidade ora sua reafirmação, ora os lampejos de seus primeiros desvios.

         Em um texto sobre O amigo, Giorgio Agamben pergunta-se sobre o significado do sintagma “eu te amo”. O fato de que “eu te amo” não tenha recebido até hoje nenhuma definição satisfatória constituiria o indício de que a afirmação tem caráter performativo; isto é, seu significado coincidiria com o ato de seu proferimento.

         Seguindo a definição espionsana de desejo como causa imanente, Nietzsche já afirmava um desejo imanente como princípio do amor no aforismo 175 de Além do Bem e do Mal: “Por fim, amamos o próprio desejo, e não o desejado”; princípio semelhante se repetiria, mais tarde, em Vontade de Potência, em que Nietzsche afirmava “Eu não desejo; algo em mim deseja”. Não há, pois, sujeito de desejo na medida em que é o desejo o que antecede e pode constituir o sujeito. A boca, demasiadamente certa de si, que pronuncia “eu” balbucia um outro como o desejo que em mim deseja.

         Se Agamben estivera certo, e “eu te amo” não admite significação satisfatória, afirmaríamos que há amores, ainda que não-conceituais. Se assim for, o amor e o desejo já não admitem inclusão no plano dos conceitos, mas no plano do pré-conceitual, do pré-filosófico, na dimensão da experiência pura, do campo de imanência (que, por definição, é aconceitual).

         Se falamos de um amor que já não pode ser definido, e sequer significa, que não existe em função de um sujeito, mas que pode subjetivar, criar suas máscaras e mudar os rostos e impressionar os corpos, a pergunta que deve ser feita altera-se, também: não se trata mais de perguntar “o que é o amor?”, mas, sim, “como o amor funciona?”; e, se o fio condutor de nosso problema é mostrar em que medida o tema do amor pode servir como uma introdução à filosofia, talvez fosse o caso de perguntar-nos “em que consiste tomar o amor como experiência contra o saber?”, experiência de erotismo sem egotismo: eu dissolvido em proveito de um si singular, impessoal.

Assim como Descartes e Kant erigiram o sujeito como o ponto de gravidade de toda teoria do conhecimento possível, ao dissolver as identidades demasiadamente personalistas, o amor abriria uma outra chance de pensar em comum: quando os sujeitos são dissolvidos, é o que Deleuze chamava de Campo Transcendental – a dimensão comum e imanente – que resta, e ela altera não apenas os rostos e corpos, mas também os afectos que vem inscrever-se nos corpos tornados a mais própria dimensão da experiência sensível.

Por essa abertura, podemos ensaiar uma primeira relação entre as escrituras do amor e da filosofia. A escritura do amor em comum é a escritura eventual: biográfica, franzida nos traços da vida, entremeadas nos acontecimentos. A biografia amorosa escreve-se, assim como a escritura filosófica, na ponta de nossa mais extrema ignorância. Os relatos dos apaixonados e dos filósofos não raro são os mesmos: “eu não sabia o que estava fazendo...”, “... simplesmente aconteceu...”, “eu não sabia que era isso...”; no amor, como na filosofia, somos sempre os últimos a saber – quando o eu se apropria de um sentimento qualquer, de uma intuição que se esboça sob os olhos perdidos da nossa desatenção, já nos encontramos apaixonados, já se instaurou o conceito. É nessa ponta de extrema ignorância – inconsciente, como o próprio princípio do desejo – que não será defeso criar conceitos e amar o amor como duplo de um único gesto vital.


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Gostaria, agora, de percorrer ao longo de dois ensaios para responder à questão “como o amor funciona?”.
Deleuze, em Proust e os Signos, afirmava que apaixonar-se é individualizar alguém pelos signos que emite; tornar-se sensível a esses signos... se a amizade nasce da observação e da conversa – isto é, da comunicação –, o amor surgiria de uma espécie de interpretação silenciosa, marcada pelo desenvolvimento dos signos que recebemos da pessoa amada; o que Deleuze quer dizer é que não é possível amar sem instaurar um novo sentido no mundo, sem se sensibilizar pelos signos de outrem que, povoando um campo heterogêneo,apela a um outro mundo possível.
O que é o amado? Há, em Deleuze, ao menos três respostas a esta questão: o amado pe um emissor de signos, e apenas amamos ao preço de deixar nossos corpos serem impressionados por estes signos; o amado é um outro mundo possível que se encontra envolvido em cada signo emitido; e, finalmente, o amado é uma senha: que exige decifração, paciência, entrega. O signo é, para Deleuze, o afecto, a violência, “aquilo que dá a pensar”, que engendra o pensar no pensamento, que tira o intelecto de seu inatismo e de seu natural estupor.
         Uma vez que ao amar desembocaríamos em mundos que se formaram em nossa ausência, que nos excluem essencialmente, as palavras o amado soariam sempre como mentiras. O amado nos envia seus signos desde outros mundos possíveis, que não podemos compreender inteiramente; por isso o ciúme, ao ir mais além na decifração dos signos, seria mais profundo que o amor. Enquanto o ciúme busca, suspeitosamente, a mentira no signo amável como índice de um outro mundo possível, o amor funciona como a comunidade entre duas singularidades irredutíveis, a diferença mais estrangeiras, o que Deleuze chamara “a realidade feminina original, o mundo de Gomorra”...

        

         Giorgio Agamben, em A ideia da Prosa, escreve sobre uma Ideia do amor:

“Viver na intimidade de um ser estranho, não para nos aproximarmos dele, para o dar a conhecer, mas para o manter estranho, distante, e mesmo inaparente - tão inaparente que o seu nome o possa conter inteiro. E depois, mesmo no meio do mal estar, dia após dia não ser mais que o lugar sempre aberto, a luz inesgotável na qual esse ser único, essa coisa, permanece para sempre exposta e murada.” 
           

O que é um autor, um filósofo, uma obra? Um mundo possível, um território desconhecido, um ser em cuja estranha intimidade podemos viver; o ser que mantemos distante, inaparente, a fim de que seu nome possa contê-lo inteiro; um amante emissor de signos aos quais podemos ter nos tornado sensíveis, a partir dos quais se tornou possível instaurar um novo sentido no mundo, mas apenas ao atingir seu mais fino grão: sua diferença mais irredutível.


Argentina e união homossexual: uma partilha dos devires

15 julho, 2010



Sobre o reconhecimento jurídico das uniões civis homoafetivas na Argentina, o jurista italiano Luigi Ferrajoli disse tratar-se da “homologación jurídica de las diferencias”. Talvez fosse preferível encará-lo como uma partilha dos devires. 
Se com Gilles Deleuze aprendemos a desprezar os universais como explicações – ao contrário, é o universal que deve ser explicado –, Michel Foucault teria ensinado, em algumas das mais belas páginas da filosofia ocidental, o sentido intenso de uma forma de existência homossexual. Isso nada tem a ver com a sexualidade em sentido estrito, mas sim com as possibilidades de vida que uma existência homossexual seria capaz de suscitar, uma nova política de virtualidades que se abririam à discussão e constituição de novas formas de vida e partilha da existência.
Há uma leitura antiinstitucionalista e antinormativista bastante equivocada de Foucault nesse ponto: a ideia de que só se podem suscitar novos modos de existência do lado de fora das instituições ditas tradicionais. A própria biografia de Foucault revela o engano dessa concepção. Foucault era pesquisador e professor no Collège de France, uma das instituições mais tradicionais de França, e diversas vezes foi criticado precisamente por isso. Sua resposta era das mais interessantes; ele afirmava fazer de seu pensamento e de sua escritura uma guerra de guerrilhas – e que guerrilheiro fugiria a uma fronteira interior, intra-sistêmica? Por que se negar a conduzir sua guerrilha por dentro das trincheiras do antagonista? Por que não roer as instituições por dentro?
Não se trata de simplesmente destruir ou abolir as instituições – ao menos, não era isso que Foucault ou Deleuze queriam dizer; fazê-lo seria simplesmente transformar o potencial liberatório dos devires em linhas fascistas de abolição. Nesse sentido, o primeiro texto de Daniel Link sobre o reconhecimento da união civil homossexual na Argentina – ao qual cheguei pela amiga Flávia Cera – é exemplar em prová-lo. Trata-se, isso sim, de desembaraçar-se das instituições para pensar, mas de nunca se negar a conduzir nossas guerras de guerrilhas, bem como nossas ações políticas, ao interior das fronteiras mais heterogêneas – sem que isso signifique a pura pretensão de aboli-las por completo. Só assim se pode fazer uma micropolítica de intensidades, reunir mesmo as instituições mais tradicionais àquilo que elas podem, lançá-las a um devir.
Reconhecer a união homoafetiva não é um golpe no casamento, especialmente o religioso, simplesmente porque essa não é a guerrilha dos homossexuais. Tampouco se trata de uma pura e simples luta pelo reconhecimento social. Trata-se, sim, de algo mais singelo: institucionalizar mais uma possibilidade de existência...  Nisso, não se destrói a instituição do matrimônio (heterossexual, civil ou cristão), e tampouco se o reafirma como modelo.
Os efeitos políticos desse "reconhecimento" institucional atingem não apenas os homossexuais, mas, sem dúvida, também os heterossexuais - e positivamente. Não invalidam o matrimônio tradicional, mas virtualizam novas possibilidades de vida – institucionais e não-institucionais – a homo e heterossexuais. Essas novas formas de existência, institucionalizadas, atingem o seio do comum: a partilha homogênea do amor e seus signos heterogêneos; atingem, por outro lado, também a partilha homo-heterossexual de um potencial político para inventar outros modos de viver-junto - a partilha homogênea de devires heterogêneos, no interior e para além das instituições.


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P.S.: Daniel Link, editor do blog Linkillo, republicou nosso post aqui. Vale conhecer seu blog; li alguns textos e gostei tanto que passei a segui-lo; é um prato cheio para quem gosta de Deleuze, Foucault, Agamben etc. @_mdcc

Lançamento: O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia

20 junho, 2010


Com esta, já são três as traduções portuguesas de O anti-Édipo, escrito a quatro (só quatro?!) mãos por Gilles Deleuze e Félix Guattari e publicado originalmente em 1972 por Les Éditions de Minuit. No Brasil, chegaram-nos, desde 1976, três traduções: a precursora, da editora Imago (1976), atualmente esgotada; a da Assírio & Alvim (a edição que tenho data do ano 2004), em português “lusitano” pré-reforma ortográfica; e esta, que ora apresento, da Editora 34, de São Paulo, assinada pelo tenaz Luiz B. L. Orlandi – professor, ensaísta e um dos mais autorizados tradutores das obras de Deleuze no Brasil. 
Pude comparar a nova tradução da Editora 34 com a tradução da Assírio & Alvim e  acredito que a tradução brasileira de Orlandi é meritória: clara, conceitualmente afiada, e, de longe, mais cômoda aos leitores brasileiros – principalmente àqueles desacostumados ao vocabulário tão singular de Deleuze. Mais um ponto a favor da tradução brasileira: o custo. Não se trata de um livro importado, como a edição da Assírio & Alvim.
Finalmente, é sempre positivo vermos reedições de livros como O anti-Édipo que, malgrado as críticas feitas a seu misticismo filosófico, hermetismo conceitual e aparente impenetrabilidade, é mais um convite à (re)leitura desafiadora e prazerosa desse que já é um texto clássico da filosofia francesa contemporânea. Mais importante é lembrar que este é um texto vivo, fruto público da atividade docente de Deleuze no período de Vincennes, no início dos anos 70. A tradução de Orlandi dá fôlego novo a essa obra, que continua mais viva do que nunca. Fica a dica dessa bela tradução, com o release da Editora 34 abaixo para os curiosos.


* * *

O anti-Édipo
Capitalismo e esquizofrenia 1

Gilles Deleuze
Félix Guattari
Tradução de Luiz B. L. Orlandi
Coleção Trans
560 p. - 14 x 21 cm
ISBN 978-85-7326-446-3
2010 - 1ª edição (Acordo Ortográfico)

    Este é um livro revolucionário, em múltiplos sentidos. Não só porque seus autores o escreveram sob o influxo de Maio de 68, mas sobretudo porque seu alvo é compreender e libertar a potência revolucionária do desejo, dinamitando as categorias em que a psiquiatria e a psicanálise o enquadraram.
     No centro do conflito está a concepção freudiana do inconsciente como teatro e representação — e sua pedra de toque, o drama de Édipo. Para Deleuze e Guattari, ao contrário, o inconsciente não é teatro, mas usina; não é povoado por atores simbólicos, mas por máquinas desejantes; e Édipo, por sua vez, não passa da história de um longo "erro" que bloqueia as forças produtivas do inconsciente, aprisiona-as no sistema da família e assim as remete a um teatro de sombras.
     Com agilidade impressionante, O anti-Édipo combina dispositivos da filosofia, da literatura, da antropologia, da arte, da economia, da ciência, da política e da biologia — além de um sem-número de alusões e citações que correriam o risco de passar despercebidas não fosse o trabalho rigoroso do tradutor Luiz B. L. Orlandi, que dotou esta edição de valiosas notas informativas —, para articular uma crítica radical da cultura que acabou por definir uma das linhas de força do pensamento contemporâneo.

Sobre os autores
     O filósofo Gilles Deleuze nasceu em Paris em 18 de janeiro de 1925. Frequentou o Liceu Carnot e formou-se em Filosofia na Universidade de Paris I (Sorbonne), em 1948. Lecionou no ensino secundário até 1957, quando tornou-se professor de História da Filosofia na Sorbonne. Entre 1960 e 1964 foi pesquisador do CNRS, tendo sido depois professor em Lyon (1964-1969) e na Universidade de Paris VIII, Vincennes, (1969-1987). Escreveu diversos livros que dialogam com o legado de Kant, Bergson, Nietzsche e Spinoza; o primeiro deles, Empirismo e subjetividade, foi lançado em 1953.
     Durante seu período de docência em Vincennes, em 1969, Deleuze conheceu o psicanalista Félix Guattari, com quem escreveu uma série de livros fundamentais, como O anti-Édipo (1972) e Mil platôs (1979). Seu último livro, Crítica e clínica, uma coletânea de ensaios sobre literatura e filosofia, foi publicado em 1993.
     Morreu em 4 de novembro de 1995, em Paris.

     Psicanalista e filósofo, Félix Guattari nasceu em 30 de março de 1930, em Villeneuve-les-Sablons, próximo a Paris. Fundou, com Jean Oury, a famosa clínica de La Borde, em Court-Cheverny. Conheceu Gilles Deleuze na Universidade de Vincennes, em 1969, iniciando uma colaboração que resultaria nos livros O anti-Édipo (1972), Mil platôs (1979) e O que é a filosofia? (1991), entre outros. Morreu em 29 de agosto de 1992.

Sobre o tradutor
     Luiz B. L. Orlandi nasceu em Jurupema, SP, em 1936. Graduou-se em Pedagogia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara no ano de 1964, cursando em seguida Pós-Graduação em Filosofia na Universidade de São Paulo. Em 1968 tornou-se professor do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Campinas, transferindo-se em seguida para a França, onde concluiu seus estudos. De volta ao Brasil, doutorou-se em Filosofia em 1974 pela Unicamp, onde é atualmente professor titular do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, lecionando também no Núcleo de Estudos da Subjetividade da PUC-SP. A partir da década de 80 passa a se dedicar regularmente à tradução, atividade que mantém em paralelo com as de professor e ensaísta. Da obra de Gilles Deleuze — da qual é um dos grandes intérpretes no Brasil — traduziu Diferença e repetição (com Roberto Machado, 1988); A dobra: Leibniz e o barroco (1991); Bergsonismo (1999); Empirismo e subjetividade (2001); A ilha deserta e outros textos (como coordenador da tradução coletiva, 2006); e, de Gilles Deleuze e Félix Guattari, O anti-Édipo (2010).
  
| Fonte: release, Editora 34 |

As unhas de Gilles: o animal contemporâneo

03 junho, 2010


uma filosofia “menormenormenormenormenor enorme”

Para além dessa paráfrase do poema “Epitáfio” (publicada em Calendário Perplexo, 1983), em que José Paulo Paes presta uma homenagem à memória de Manuel Bandeira, sabemos, desde Jorge Luis Borges, o quanto custa ser um poeta menor. Deleuze sempre foi um filósofo menor, avesso aos holofotes, mas com uma fala intensamente musical; não fosse, antes de qualquer coisa, um professor público, teria sido quase um filósofo privado.
Em Carta a um crítico severo, Deleuze desfaz-se de algumas críticas endereçadas por um antigo e ressentido interlocutor; por exemplo: “critica o Édipo, mas mantém uma esposa e edipianiza os próprios filhos”; “diz-se avesso aos palcos, mas suas unhas cumpridas e seu casaco de operário (na carta Deleuze o corrige e diz: ‘não é verdade, é uma jaqueta de camponês’) são como o corpete plissado de Marilyn Monroe e os óculos de Greta Garbo”; “analisa o devir-mulher, mas sequer deixa de ser heterossexual” etc.
     Deleuze é protagonista de um pensamento incômodo; sobretudo, é uma figura incômoda, rebelde, capaz de puxar o fio de toda a história da filosofia. Com ele, nada fica intocado. Mesmo os autores sobre os quais se debruçava como historiador da filosofia (Hume, Spinoza, Kant, Bergson, Leibniz, Foucault), Deleuze apenas o fizera “concebendo a história da filosofia como uma espécie de enrabada, ou, o que dá no mesmo, de imaculada concepção. Eu me imaginava chegando pelas costas de um autor e lhe fazendo um filho, que seria seu, e no entanto seria monstruoso.”
Talvez a própria Carta a um crítico severo, seja a prova maior de uma filosofia capaz de tocar a própria vida singular de um filósofo que já não é o sujeito “Gilles”, mas um campo subjetivo de forças afetado de maneira singular pelas intensidades que podem despertar um corpo demasiadamente inerte.


Nunca abolir o outro

     A delicadeza forte com que Deleuze – sem nunca apelar ao juízo – desembaraça-se das críticas ressentidas de seu interlocutor (benevolente até o ponto em que seu interesse decai) parece ser uma espécie prática da matéria de sua própria filosofia: nunca destruir um pensamento, nunca negativizá-lo pelo juízo, mas confrontar-se com ele; utilizar sempre a fina lima da prudência, a fim de impedir que uma linha de fuga torne-se uma linha de abolição completa e obstrua os devires. Assim é com a droga, o álcool e com a própria filosofia deleuziana.
Uma máquina de guerra – que, no fim das contas, será o próprio pensamento –, como a máquina de guerra nômade, age, desde Pierre Clastres, sobre as formações de estado, contra as territorialidades demasiadamente fixas; a linha de fuga não age destruindo as pontuações de estado que subordinam o movimento da linha nômade, mas, retirando as pontuações capitalísticas, tirânicas, despóticas, estatais de sua fixidez a priori, Deleuze impede-nos de pensar que as determinações histórico-políticas estejam dadas de uma vez por todas.
Aliás, uma máquina de guerra age sempre no exterior de um aparelho de estado que, não obstante, pode capturá-la, territorializá-la, nacionalizá-la e utilizá-la como uma máquina militar, engendrá-la na polícia, no terror e no aniquilamento.
Uma máquina de guerra como os nômades a conheciam, porém, age por fora, promove uma desarticulação positiva – não se trata de desarticular negativamente, destruindo, abolindo, mas de retirar as pontualidades de sua placidez sedentária, de devolvê-las ao trânsito móvel dos fluxos da história; tal desarticulação não promove o desabamento dos pontos fixos, mas os reconduz às singulares velocidades dos devires, a um princípio de agitação.
Desarticular não significa destruir, abolir, negativizar, mas multiplicar as articulações, liberá-las, potenciá-las, relançá-las no interior de um devir – ou, como talvez Espinosa preferisse, reuni-las àquilo que elas podem. O outro, o pensamento absolutamente outro, é algo que deve passar pelo crivo seletivo de uma máquina de guerra, mas isso não significa que deve ser abolido. Ao contrário, o outro permanece, em Deleuze, não como a estrutura significante que funda a possibilidade da intersubjetividade (essa mitologia que não sabemos bem se nos chega através de uma modernidade decaída ou de uma pós-modernidade nascente que só consegue pensar o Real ao rebatê-lo sobre determinadas estruturas), mas, sim, na bela definição de O que é a filosofia?, “um outro mundo possível”, uma realidade encarnada, um devir-todo mundo.


Os devires
    
     Embora uma aproximação entre Barthes e Deleuze possa parecer despropositada, quando Roland Barthes afirmava que ler ou escrever é uma questão de corpo (uma espécie de poder de afetar e ser afetado), talvez o espinosismo deleuziano concordasse. Em Gilles Deleuze, tudo se resume a “como criar o novo?”, “como favorecer que o novo advenha?”, “como encontrar na repetição a própria condição da diferença, libertando-a da nudez do Mesmo?”.
     Nesse ponto, vêm imiscuir-se as relações entre o filosófico e o não-filosófico, o humano e o animal, os devires em que uma forma deveras atual, como o homem, pode ser lançada. O plano, ou o campo, de imanência é precisamente a intervenção do não-filosófico na filosofia, que surge tão logo criamos um conceito. Ao criá-lo, ao “fazer filosofia”, já nos encontramos em uma íntima relação com o não-filosófico.


O animal imperceptível...

     As unhas de Deleuze evocam uma passagem muito bonita de sua obra com Guattari; excerto que desafia à antropologia filosófica. Seu quadro de sentido é o pensamento que pode advir das diversas formas de sentir vergonha de ser um homem, e a evocação do intempestivo (isto é, do inatual, do extemporâneo, do virtual) se apresenta: “Não nos sentimos fora de nossa época, ao contrário, não cessamos de estabelecer com ela compromissos vergonhosos. Este sentimento de vergonha é um dos mais poderosos motivos da filosofia. Não somos responsáveis pelas vítimas, mas diante das vítimas. E não há outro meio senão fazer como o animal (rosnar, escavar o chão, nitrir, convulsionar-se) para escapar ao ignóbil (...)”.
Sua Carta a um crítico severo apresenta três hipóteses para as longas unhas de Deleuze: a psicanalítica (“castração, minha mãe as cortava”), a teratológica e selecionista (“faltam as impressões digitais normalmente protetoras”), a psicossociológica ( “eu sonho é ser imperceptível, e o compenso ao poder enfiar as unhas no bolso”) e, finalmente, a interpretação política: “não precisa comer as unhas só porque são suas; se você gosta de unha, coma a dos outros, se quiser ou puder”.
     São poucas as fotografias em que as unhas de Deleuze aparecem, mas nunca em primeiro plano; olhamos para Deleuze e, sem qualquer pestanejo, dizemos – sem a interrogação de Levi: “É isto um homem”.
Contudo, no seio da humanidade deleuziana, o próprio corpo, por força de uma dezena de pequenos anexos, é o lugar de inscrição dos signos do animal imperceptível que habita o cerne do humano.
     Nas fotografias, encaramos o rosto de Deleuze: “alguns buracos negros” cavados sobre “uma parede branca”. As unhas passam despercebidas à primeira vista. Um olhar mais atento as percebe, mas apenas secundariamente ao rosto. O corpo (magro e frágil de Deleuze), então, submete-se à desarticulação entre homem (rostificação) e a singularização selvagem de um homem que não pode escapar senão por meio de um devir-animal (as unhas de Deleuze).
     Ao menos para nós, que conservamos nossas unhas aparadas, as unhas de Gilles - curvadas em forma de garra - constituem o signos que, emitidos como exterioridades puras, são passíveis de desenvolverem-se no heterogêneo. Eles apelam a uma potência estranha, que vem, mas apenas em segundo plano, sob a forma de uma imperceptível, mas potente, sombra (ou sobra) animal contemporânea dos homens.