Para #DesarquivandoBr
24.11.2012 – A data assinala o segundo
aniversário da sentença da Corte Interamericana de San José da Costa Rica, que
condenou o Brasil no caso Gomes Lund e outros vs. Brasil a uma série de
obrigações positivas decorrentes de obrigações internacionais em matéria de
Direitos Humanos, fundamentadas na Convenção Americana de Direitos Humanos. Eis
o que move jornalistas, blogueiros, juristas, historiadores, filósofos,
pesquisadores, intelectuais e outros a nos mobilizarmos uma vez mais, atendendo
à convocação de Niara
de Oliveria, a fim de trazer a público, por meio do projeto Desarquivando o Brasil, as
questões que, a nosso ver – embora capitais no contexto democrático brasileiro
contemporâneo –, permanecem em aberto em relação ao recente passado autoritário
brasileiro e seu acerto de contas ainda hoje inconcluso.
De
minha parte, não farei nenhum balanço das políticas transicionais dos últimos
anos; com a Comissão Nacional da Verdade – que, frisemos, visa a responder à
necessária busca da verdade, imposta pela sentença
da CADH no caso Araguaia –, e com a instalação de comissões estaduais
análogas país afora, o que se espera é que tenhamos, ao cabo dos trabalhos, um relatório
detalhado sobre as violações de direitos humanos cometidas pelo Estado e pelo
aparato civil de apoio à ditadura militar brasileira (1964-1985, por convenção
histórica).
Meu
papel, no entanto, é outro; o de lançar uma hipótese que afronta o fundo de boa
parte dos discursos oficiais e não-oficiais negacionistas. Tais discursos
possuem um amplo espectro, indo desde a simples negação (já escrevi sobre isso aqui
e aqui)
até a pura e simples afirmação do anacronismo da questão dos espectros
ditatoriais na democracia contemporânea brasileira.
Esta
última assertiva – a do anacronismo do problema, da ditadura como um evento
histórico delimitado no espaço-tempo e incomunicável com a atualidade –
carrega-nos rapidamente à afirmação do primeiro negacionismo e ao seu imobilismo
aparentemente pragmático. Da afirmação de que “não é preciso lembrar”, torna-se
fácil passar à afirmação radicalmente negacionista de que “nada há para lembrar”,
nada teria acontecido. O perigo do discurso puramente histórico, despido de
toda preocupação genealógica com o real de que a história deve deixar-se
penetrar, consiste precisamente na possibilidade de estabelecer o real
violentamente e por meio dos discursos oficiais. O discurso histórico está
sempre na iminência de ser capturado pelos dispositivos de poder vigentes, pelo
Estado e por suas instituições, que visam, por definição, à estabilidade seja
qual for o preço.
Atualmente,
toda a Teoria da Justiça de Transição estabelece-se ao redor da centralidade do
conceito de memória, dos imperativos de lembrar e da distinção entre anistia, e
seus efeitos jurídico-penais, e esquecimento. No entanto, a memória nunca
aparece definida enquanto tal – sempre se está a falar de um largo espectro conceitual que compreende
desde as lembranças individuais até a constituição de uma memória social, ou
coletiva, no sentido de Maurice Halbwachs, que, no entanto, se tudo – ou quase
tudo – parece dizer a respeito de indivíduos, de um grupo ou de uma nação, bem
como sobre seus valores constitutivos, rigorosamente nada é capaz de dizer
sobre a própria memória como uma realidade independente.
Ao
mesmo tempo em que o conceito aparece como central a todas as outras dimensões
pragmáticas das transições políticas e das concretas medidas de accountability que elas supõem – justiça,
reparação, purgas e reformas institucionais, verdade pública – nada, a não ser
uma prejudicialidade lógica da ordem do que é pressuposto e jamais enunciado
até o fundo, parece capaz de justificar a essencialidade da memória às
transições políticas.
O
lugar-comum segundo o qual as transformações institucionais só são possíveis
através da memória mostra, finalmente, o fundamento infundado da centralidade do
conceito de memória nessas transições. Mesmo Ruti Teitel criticará abertamente
o caráter redentor de que se reveste a memória política em períodos de
transição entre seus teóricos. É como se, no fim das contas, nem mesmo os
teóricos da Teoria da Justiça de Transição soubessem muito bem do que estão a
falar; intuem a centralidade da memória, mas confiam em sua autoposição
empírica.
Essa
lacuna se deve, sobretudo, ao fato de que uma Teoria da Justiça de Transição é
uma elaboração não apenas recente, mas sobretudo inacabada e, se quiser manter
sua aspiração francamente imanente, deverá permanecer em construção e variação
contínuas, atenta às singularidades em torno das quais se elabora. Disso deriva
a circunstância, reconhecida por Paul Gready, da undertheorised nature da
Teoria da Justiça de Transição, bem como da característica segundo a qual quase
todos os seus conceitos são abertos às singularidades, parcialmente indefinidos
e, quando elaborados, significados como decalques do empírico. Não à toa, praticamente
todo escrito sobre justiça de transição baseia-se na metodologia, nem sempre apropriadamente
empregada, de estudo de casos.
É
precisamente sobre esta lacuna teórica que me debruço atualmente: que ela seja
empírica, a que se deve a centralidade do conceito de memória nas transições
políticas e, sobretudo, de onde se extrai seu potencial transformador?
Parece-me que um dos únicos pensadores capazes de dar a essa questão uma resposta
adequada é Henri Bergson.
Não
é o caso de ensaiar uma resposta: ela é minha tese de doutorado, ainda por ser
escrita. Trata-se, antes, de buscar hipóteses para responder àqueles que creem
que realizamos uma discussão anacrônica – grandes teóricos (conservadores, é
preciso dizer) de uma suposta consolidação democrática atemporal, “dada de uma vez
por todas e toda de uma vez”, para parafrasear justamente a característica que
Bobbio negava aos direitos humanos, essencialmente históricos.
Mais
profundamente, deveria preocupar-nos os efeitos imediatamente políticos e
pragmáticos dessa lacuna teórica: não saber muito bem em que consiste a
memória, reduzi-la à lembrança individual, à escritura histórica – que não está
imune de girar no vácuo dos discursos monumentais –, à condição de fiador da
coesão social de grupos nacionais pretensamente homogêneos, significa
entregá-la à potência política negacionista. Sempre se pode dizer contra a vis memoralista: não há o que lembrar, a
história está escrita, estamos reconciliados – argumento que, inclusive,
apareceu na ADPF
153.
Fala-se
em memória todo o tempo e, no entanto, não há lugar para a memória pensada a
partir de sua própria realidade, de uma imanência; não há espaço para compreender
qual sua relação ontológica profunda com o aberto e com o devir: “como um
futuro vem a ser”, é a grande questão colocada desde o fundo inconsciente da
memória. Dinamismos virtuais sempre achatados por funções atuais que a memória deve
desempenhar. Eis o que retira, à memória, sua realidade própria; ela se torna,
então, memória antropológica estrita, quando, muito antes, é memória-mundo,
memória-vida, memória-espírito (o que não significa nenhuma transcendência, mas
a existência de um registro ontológico virtual), para dizê-lo em sentido
bergsoniano.
A
mesma questão se coloca em termos sociológicos e políticos, isto é, respeitam à
discussão presente das formas de vida. Como se pode compreender que jovens com
seus vinte ou trinta anos de idade, que pouco ou sequer viveram a intensidade
real da repressão, possam unir-se aos mais velhos, compreendendo profunda e
inconscientemente o que significa pensar a democracia e os direitos humanos
como um compromisso político m aberto e transgeracional? Como encontrar sentido
no levantar-se contra...? Seria amor ao anacrônico, saudades do jamais vivido, déjà vu coletivo? Como explicar essa partilha
mística que, pouco a pouco, penetra o seio social em camadas insuspeitáveis?
Bergson,
falando sobre as revoluções francesas, lembrava a afirmação de Émile Faguet, que
dizia que a Revolução Francesa havia acontecido não pela igualdade e pela
liberdade, mas por que se morria de fome. E por que, pergunta-se Bergson, de
repente decidimos que não queremos mais morrer de fome? Por que nós, jovens de
vinte e poucos anos, nos levantamos de repente?
Por que, enfim, em determinado momento, quisemos trocar os afetos da ordem por uma outra ordem dos afetos?
Porque
a política, como a liberdade, é uma questão de profundidade, de desejo e de
inconsciente; logo, por isso mesmo, de memória – virtual coalescente com o
atual que o acaso deforma no devir: aparentemente, nada muda (atual), mas tudo
mudou (virtual); “um prato racha”, dizia Deleuze, uma ruptura imperceptível
acontece e nada mais é como antes; temos uma linha de fuga.
Em
Bergson, o devir e o aberto vêm da deposição inconsciente e infinitesimal dos
eventos na memória do espírito (o virtual, a memória em profundidade). O
místico – que Bergson afirma ser o grande homem de ação –, mas também o artista
e o moralista – aquele que provoca intensas alterações de valores, que
instaura, pelo exemplo, uma abertura na moralidade social – são indivíduos
coextensivos a essa operação ontológica da memória mais profunda.
É
enganoso pensar o devir do ponto de vista individual: não é o devir que é
produzido por indivíduos, são os indivíduos que dão vazão ao devir que, em
Bergson, confunde-se com Deus – nada além de “um esforço criador” que não se
encontra fora deste mundo, mas entranhado nele, seu motor inaparente sempre
sujeito aos dinamismos do acaso –, o próprio elã vital, que não se confunde com
a vida orgânica mais com a sombria operação do tempo universal. Nesse sentido,
o místico, instrumento do Deus bergsoniano, é a prova de que o devir é da ordem
das singularidades impessoais; não há sujeitos fixos, apenas ilusões
superficiais, ficções de fixidez; em profundidade opera o acúmulo infinito das
experiências e afetos na memória dessas individuações. Eis a personalidade
bergsoniana atravessada pelo elã vital.
Se
os jovens hoje se levantam, se trocam os afetos da ordem por uma outra ordem dos afetos, é porque, de
alguma forma – que, felizmente, não me cabe demonstrar aqui – há um
encantamento rítmico de seus eus em
profundidade e o daqueles que os precederam na luta pela transfiguração do
real. Mas, para isso, é preciso saltar para o exterior dos códigos sociais, da
ficção do indivíduo e do círculo teso da própria espécie e das tendências
sociais e intelectuais naturais ao homem. Eis o super-homem bergsoniano, que já
não adoece de normalidade, que dispensa a religião porque sente na profundidade
de si o pulsar divino, o chamado heroico de um impulso criador que não oferecer
garantias.
Entre
os jovens do Levante, a evocação dos nomes dos companheiros “tombados na luta” seguidos
de um uníssono “- presente!” metaforiza nada mais do que o retorno e a rebelião
de memórias profundas, inconscientes, de desejos selvagens incompreensíveis,
mas cuja presença irresistível é evocada e aspirada pelo nome que contém um
desejo inteiro. Todos vibram na mesma intensidade dessa presença, não raro inconsciente,
mas sensível, da memória em comum: ponto de ressonância afetivo para, criando
uma abertura no superficial, superar nossas formas de vida atuais (círculos sociais,
individuais, inerentes à espécie), e saltar na ontologia: devolver ao virtual
da memória o que ela tem de afeto real, de energia eficaz e de profunda liberdade
de uma comunidade por vir, uma comunidade
de eus profundos.
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