"Amor não
falta"
Dizíamos que a história da má compreensão da filosofia confunde-se com a história dos mal-entendidos sobre o amor. No entanto, toda uma tradição clássica e medieval que pensara o amor como falta encontrará na modernidade ora sua reafirmação, ora os lampejos de seus primeiros desvios.
Dizíamos que a história da má compreensão da filosofia confunde-se com a história dos mal-entendidos sobre o amor. No entanto, toda uma tradição clássica e medieval que pensara o amor como falta encontrará na modernidade ora sua reafirmação, ora os lampejos de seus primeiros desvios.
Em um texto sobre O amigo, Giorgio Agamben
pergunta-se sobre o significado do sintagma “eu te amo”. O fato de que “eu te
amo” não tenha recebido até hoje nenhuma definição satisfatória constituiria o
indício de que a afirmação tem caráter performativo; isto é, seu significado coincidiria
com o ato de seu proferimento.
Seguindo a definição
espionsana de desejo como causa imanente, Nietzsche já afirmava um desejo
imanente como princípio do amor no aforismo 175 de Além do Bem e do Mal: “Por fim,
amamos o próprio desejo, e não o desejado”; princípio semelhante se repetiria,
mais tarde, em Vontade de
Potência, em que Nietzsche afirmava “Eu não desejo; algo em mim deseja”.
Não há, pois, sujeito de desejo na medida em que é o desejo o que antecede e
pode constituir o sujeito. A boca, demasiadamente certa de si, que pronuncia
“eu” balbucia um outro como o desejo que em mim deseja.
Se Agamben
estivera certo, e “eu te amo” não admite significação satisfatória,
afirmaríamos que há amores, ainda que não-conceituais. Se assim for, o amor e o
desejo já não admitem inclusão no plano dos conceitos, mas no plano do
pré-conceitual, do pré-filosófico, na dimensão da experiência pura, do campo de
imanência (que, por definição, é aconceitual).
Se falamos de um
amor que já não pode ser definido, e sequer significa, que não existe em função
de um sujeito, mas que pode subjetivar, criar suas máscaras e mudar os rostos e
impressionar os corpos, a pergunta que deve ser feita altera-se, também: não se
trata mais de perguntar “o que é o amor?”, mas, sim, “como o amor funciona?”;
e, se o fio condutor de nosso problema é mostrar em que medida o tema do amor
pode servir como uma introdução à filosofia, talvez fosse o caso de
perguntar-nos “em que consiste tomar o amor como experiência contra o saber?”,
experiência de erotismo sem egotismo: eu dissolvido em proveito de um si
singular, impessoal.
Assim como Descartes e Kant erigiram o sujeito como o ponto de
gravidade de toda teoria do conhecimento possível, ao dissolver as identidades
demasiadamente personalistas, o amor abriria uma outra chance de pensar em
comum: quando os sujeitos são dissolvidos, é o que Deleuze chamava de Campo
Transcendental – a dimensão comum e imanente – que resta, e ela altera não
apenas os rostos e corpos, mas também os afectos que vem inscrever-se nos
corpos tornados a mais própria dimensão da experiência sensível.
Por essa abertura, podemos ensaiar uma primeira relação entre as
escrituras do amor e da filosofia. A escritura do amor em comum é a escritura
eventual: biográfica, franzida nos traços da vida, entremeadas nos
acontecimentos. A biografia amorosa escreve-se, assim como a escritura
filosófica, na ponta de nossa mais extrema ignorância. Os relatos dos
apaixonados e dos filósofos não raro são os mesmos: “eu não sabia o que estava
fazendo...”, “... simplesmente aconteceu...”, “eu não sabia que era isso...”;
no amor, como na filosofia, somos sempre os últimos a saber – quando o eu se
apropria de um sentimento qualquer, de uma intuição que se esboça sob os olhos
perdidos da nossa desatenção, já nos encontramos apaixonados, já se instaurou o
conceito. É nessa ponta de extrema ignorância – inconsciente, como o próprio
princípio do desejo – que não será defeso criar conceitos e amar o amor como
duplo de um único gesto vital.
* * *
Gostaria, agora, de percorrer ao longo de dois ensaios para
responder à questão “como o amor funciona?”.
Deleuze, em Proust
e os Signos, afirmava que apaixonar-se é individualizar alguém pelos signos
que emite; tornar-se sensível a esses signos... se a amizade nasce da
observação e da conversa – isto é, da comunicação –, o amor surgiria de uma
espécie de interpretação silenciosa, marcada pelo desenvolvimento dos signos
que recebemos da pessoa amada; o que Deleuze quer dizer é que não é possível
amar sem instaurar um novo sentido no mundo, sem se sensibilizar pelos signos
de outrem que, povoando um campo heterogêneo,apela a um outro mundo possível.
O que é o amado? Há, em Deleuze, ao menos três respostas a esta
questão: o amado pe um emissor de signos, e apenas amamos ao preço de deixar
nossos corpos serem impressionados por estes signos; o amado é um outro mundo
possível que se encontra envolvido em cada signo emitido; e, finalmente, o
amado é uma senha: que exige decifração, paciência, entrega. O signo é, para
Deleuze, o afecto, a violência, “aquilo que dá a pensar”, que engendra o pensar
no pensamento, que tira o intelecto de seu inatismo e de seu natural estupor.
Uma vez que ao
amar desembocaríamos em mundos que se formaram em nossa ausência, que nos
excluem essencialmente, as palavras o amado soariam sempre como mentiras. O
amado nos envia seus signos desde outros mundos possíveis, que não podemos
compreender inteiramente; por isso o ciúme, ao ir mais além na decifração dos
signos, seria mais profundo que o amor. Enquanto o ciúme busca,
suspeitosamente, a mentira no signo amável como índice de um outro mundo
possível, o amor funciona como a comunidade entre duas singularidades
irredutíveis, a diferença mais estrangeiras, o que Deleuze chamara “a realidade
feminina original, o mundo de Gomorra”...
Giorgio Agamben, em A ideia da
Prosa, escreve sobre uma Ideia
do amor:
“Viver na intimidade de um ser estranho, não para nos
aproximarmos dele, para o dar a conhecer, mas para o manter estranho,
distante, e mesmo inaparente - tão inaparente que o seu nome o
possa conter inteiro. E depois, mesmo no meio do mal estar, dia após dia
não ser mais que o lugar sempre aberto, a luz inesgotável na qual esse ser
único, essa coisa, permanece para sempre exposta e murada.”
O que é um autor, um filósofo, uma obra? Um mundo possível, um
território desconhecido, um ser em cuja estranha intimidade podemos viver; o
ser que mantemos distante, inaparente, a fim de que seu nome possa contê-lo
inteiro; um amante emissor de signos aos quais podemos ter nos tornado
sensíveis, a partir dos quais se tornou possível instaurar um novo sentido no
mundo, mas apenas ao atingir seu mais fino grão: sua diferença mais irredutível.