Australian Scott Jones kisses his Canadian girlfriend Alex Thomas after she was knocked to the ground by a police officer's riot shield in Vancouver, British Columbia. Canadians rioted after the Vancouver Canucks lost the Stanley Cup to the Boston Bruins. (Getty Images / Rich Lam)
A história da má-compreensão do amor é a história da má-compreensão da filosofia
Não podemos culpar os filósofos que nos
ensinaram toda a macia mansidão da etimologia da palavra filosofia -
ingenuamente, "philos" +
"sophos" indicaria
o "ser amigo" do saber. Eles não haviam sido tocados pelo mistério do
amor, eles nunca haviam penetrado absolutamente nada com o próprio ser.
Se tudo passa por aí, como começar a
falar de filosofia sem falar de amor, de conjunção, dos encontros entre os
corpos? Em Atenas, se há um modelo para a filosofia, não se trata pura e
simplesmente do modelo do amigo. É em Foucault, e na história da sexualidade,
que a amizade surge como a possibilidade da estética da existência, mas o que
Foucault descobre em O Uso dos
Prazeres é que o amigo é
apenas a ponta mais extrema que a relação antes de tudo amorosa, inquieta e
concupiscente, deve ter como destino. O amigo só se constitui, na polis grega, ao preço de ter sido, antes de
tudo, o amante. A amizade é a relação social estável e conveniente à política e
ao espaço público; o amor e os prazeres, o que perturba e faz variar esses
tecidos sociais calmos ao mesmo tempo em que constitui a condição de
possibilidade para os reinstaurar sempre e a cada vez.
Se há um procedimento em geral da
filosofia é o do sujeito, demasiadamente certo de si, dissolvendo-se para
entrar em conjunção com o outro (o filósofo, a obra, o conceito, o campo de
imanência, as intensidades, as afecções). É isso o que acontece quando nos
deixamos tocar pela filosofia: tudo vira Eros, queremos fazer amor com o mundo,
tornamo-nos sensíveis a seus signos exteriores. A filosofia não é, nem nunca
foi, um território vazio, frígido ou inerte; está mais para um contato sem
dúvida incômodo, difícil, em que é aquilo que você chama de “eu” que é
colocado, de repente, e sem querer, em jogo. Filosofia é uma espécie de
delírio, como o amor; quem nunca alucinou as pernas de uma mulher nas pernas de
todas as outras mulheres; os olhos da mulher amada nos olhos de todas as
outras, os lábios da amada na boca das outras? É por isso que o amante olha
para as outras: para alucinar a amada no campo mais heterogêneo; para
descobrir, nele, a diferença que torna absolutamente singular a multiplicidade
da mulher amada.
Assim como um poeta alucina a
gramática, um filósofo alucina os conceitos: conserta, enxerta, engendra novos,
repete-os fazendo-os engendrar qualquer coisa de diferente. A filosofia é uma
alucinação dissonante, um compromisso com o que há de obscuro e ao mesmo tempo
potente na existência e no comum.
O Banquete platônico teria
iniciado toda a história dos mal-entendidos sobre o amor e, de consequência –
se é imposível filosofar sem amor – sobre a própria filosofia; nele, Eros é
definido por Aristófanes como completude (a raiz do imaginário coletivo sobre o
amor romântico), mas só atinge verdadeiramente seu ponto máximo quando o
Sócrates - velhaco, mas sedutor -, tentará demonstrar o seu engano. No entanto,
Sócrates não fala em nome próprio. Tendo aprendido a genealogia do amor com uma
mulher, a voz socrática fala pela boca da sacerdotisa Diotima de Mantinea. Em
seu discurso, no qual tomará lugar por excelência o feminino, Eros será
definido genealogicamente como filho do recurso e da pobreza. Sua mais simples
e célebre elaboração encontrará na suposição de que, para amar, é necessário
que algo essencialmente nos falte: “O que deseja, deseja aquilo de que é
carente, sem o que não deseja, se não for carente”, afirma Sócrates. Só se pode
amar aquilo que não se tem; sendo Eros filho do recurso e da pobreza, o objeto
do amor será, a um só tempo, sempre ausente e sempre solicitado.
Cronologicamente mais próxima de
nós, a psicanálise lacaniana não definirá o desejo por meio de outro termo que
a falta, o objeto menor, a,
fruto, como a Lei, da castração. Aquilo que falta, aquilo a que o Simbólico não
pode atingir de todo, será, para Lacan, o Real. Mas, se for assim – se o amor
for falta -, como fazer a experiência dessa ausência? Como experimentar o vazio
naquilo que ele deveria ter de desejo?
-------> (Continua).