Primeiro foi Porto Alegre; depois, Natal,
São Paulo, Goiânia e o Rio de Janeiro... Uma multidão de corpos indóceis e
inúteis impede as vias públicas, para o tráfego eternamente estagnado das seis
da tarde das grandes capitais e, paradoxalmente – dirão alguns –, em nome da
liberdade de circular insujeitos pela cidade. Quem teria lhes dado esse direito
– por tanto tempo exclusivo dos automóveis?
Os corpos jovens, liberados e frenéticos
que nos últimos dias ocuparam as praças e as principais avenidas de grandes
cidades em um movimento meta-regional interromperam os fluxos do capital que as
sucessivas isenções de IPI tornaram possível. É a potência e a virtù desses corpos indóceis e inúteis,
insubmissos e nada comportados, que constitui o princípio de desarticulação das
estratégias de poder que se dissimulam sob a questão da tarifa do transporte
público nas grandes metrópoles. Eis o que torna urgente tentar lançar luzes
sobre os protestos que se espalham pelo Brasil, para muito além das frases
efectistas e midiáticas, das gritas reativas de um Arnaldo Jabor – ou de
qualquer outro ex-comunista arrependido que hoje ocupa os postos discursivos
por meio dos quais a grande mídia, a serviço do Estado e, sobretudo, dos
interesses corporativos, tenta incessantemente controlar as margens de crítica
social.
As vidraças quebradas – alvo
aparentemente preferido desses corpos anarquistas – forma, ao lado das máscaras
de “V, de Vingança” e do lixo incendiado,
o conjunto das grandes marcas simbólicas – ou melhor, demasiadamente inconscientes
e reais – das passagens revoltas dos corpos pelas cidades. Eis alguns dos
signos que permitem produzir uma genealogia dos acontecimentos de superfície
que visa a romper com os quadros de inteligibilidade dados, e enxergar um pouco
além do que, no movimento pelo passe livre e pela tarifa zero, parece ser meramente
acidental. Trata-se de desentocar a própria potência política vital de que a
coragem crua desses corpos se tornou depositária.
As vidraças estilhaçadas – nem
sempre pelos manifestantes – nada mais são do que o acontecimento de
superfície de um atentado contra o princípio de uma sociedade disciplinar e de
controle em que os corpos são constantemente vigiados e controlados nas margens
virtuais de seus gestos; basta um esboço ou um descuido para que o poder que
transforma cada corpo em um sujeito, ou em um indivíduo, torne-se sutilmente
eficaz e maquinal. Assim, a disciplina vai moldando cotidiana e continuamente,
em um nível infralegal e infrajudiciário, os corpos dóceis e úteis. À luz das
patologias da normalidade que o poder implanta no coração das subjetividades
que produz, tudo o que ameaça a tranquila normalidade do retorno para casa após
um dia extenuante de trabalho só poderia significar um atentado à liberdade dos
“cidadãos de bem” – esses efeitos do poder – que se comprazem em se comprimir
uns contra os outros nos infinitos engarrafamentos das metrópoles ou no
interior dos coletivos abarrotados; porém, esta não passa da perspectivação do
fenômeno pela sensibilidade estrábica dos doentes de normalidade, os sujeitos
constituídos pelas finas malhas de poder dos panoptismos que jamais deixaram de
integrar as estratégias das sociedades disciplinares ou de controle. Como as
vidraças estilhaçadas, deixadas para trás pelos corpos revoltos, não seriam,
também, o signo do contrapoder que circula em corpos que se desejam anônimos, impessoais
e inindividualizáveis?
Não se trata de fazer um elogio da
violência; porém, tampouco se trata de sacralizá-la nas ilegalidades cometidas
pelas Polícias e pelos Estados pseudodemocráticos – como o Brasil revela ser. O
poder circula pelos corpos das multidões. Assim como ele explode contra elas,
nas ações criminosas legalizadas em aparência pelas formas jurídicas do Estado e
do capital-dinheiro, ele explode a partir
delas também. É nesse sentido que Negri pudera afirmar que um protesto pode
ser não-violento, mas jamais será pacífico – é com o poder que circula nos
corpos que os contra-poderes, até então sujeitados, produzem sua rebelião
profunda e mística.
Esses corpos indóceis usam máscaras. “Estratégia
de terroristas e bandidos que não querem ser reconhecidos e identificados” – logo
dispararam alguns. No entanto, o gesto de dissimular o rosto no espaço público não
consiste em outra coisa senão na mais radical afirmação de democracia –
especialmente quando um Estado que se pretende democrático reprime tão
sistematicamente qualquer manifestação pública que não deixa outra alternativa
a seus cidadãos senão a de dissimular o rosto para ganhar as ruas e ver o
enxame amorfo que pouco a pouco receberá o nome impronunciável, impessoal e
politicamente monstruoso de multidão. Dissimular o rosto: a única forma de pela
qual essa multidão pode reapropriar-se do espaço público quando toda forma de
dissidência parece ter se tornado virtualmente impossível. Tecida apenas de
singularidades impessoais e precárias, é a própria multidão, constituída pela
revolta profunda dos corpos que relança suas potências, que ocupa as ruas,
negando as identidades que o poder não cessou de tentar fixar sobre seus corpos
agora libertos.
Eis as táticas simbólicas, afetivas
e, a um só tempo, inconscientes mobilizadas a fim de liberar os corpos do jugo
normalizante dos poderes de uma sociedade de controle que ainda conserva muitos
dos aparatos de poder das disciplinas. Romper seu princípio de transparência
(as vidraças, os rostos, as identidades), destruir seu princípio de registro e
controle contínuo (depredar câmeras de segurança ou a iluminação pública), apor
seus signos e palavras de ordem que denunciam que, no limite, a partição entre
o lícito e o ilícito, das formas jurídicas do Estado esconde, sob sua pele
verminal, a repartição maquinal em que o poder seleciona ativamente certas
ilegalidades para receberem a forma legalizadora e a despesa do direito de
Soberania. Eis a macro-operação de poder capitalística que cobre com o véu da
legalidade o infinito mapa de ilegalidades que essa comunidade de eus profundos
coloca em questão: da máfia dos transportes públicos, à das montadoras de
automóveis; da máfia dos empresários do petróleo às atitudes censoras que
constituem a práxis da mídia; das violações de direitos civis que o Estado a
Polícia cometem sistematicamente às ilegalidades do direito
de exceção que já vige no país, mesmo antes da realização dos “grandes
eventos”.
Quando os corpos destroem o princípio
de controle sutil a que se encontravam submetidos – as disciplinas
infinitesimais que produzem o sujeito e sua belle
âme, que os colam a uma singularidade orgânica como efeito da insidiosa
inscrição desses poderes nos corpos, e que classificam o bom e o ruim, repartem
o normal e o anormal –, tudo o que resta aos poderes constituídos é fazer valer
as estratégias de prerrogativas de um direito de Soberania. Isto é, só resta ao
Estado – e as afirmações cínicas de Haddad, direto de Paris (corpo ausente do
soberano), não poderiam prová-lo melhor – aplicar à massa informe, rebelde e
perigosa na qual os indivíduos dóceis subitamente se converteram as
prerrogativas de violência, fiadoras de primeiro tempo das disciplinas
fustigadas pelos contrapoderes que corpos indóceis e inúteis descobriram sob a
superfície artificial e verminal de seus eus sociais. Assim, o Estado pode transformar-se
em máquina de abolição – como não raro se transforma – e fazer da
justiciabilidade dos “vândalos, anormais e insubmissos” um desnecessário e, sob
todos os aspectos, injustificável e criminoso espetáculo de crueldade.
Sob o eu social – superfície
construída por mil e uma microssujeições (como viajar em ônibus lotados, pagar
mais do que um serviço público vale, dar-se conta dos lucros astronômicos dos
empresários do setor de transportes, conhecer as grandes ilegalidades
convalidadas pelo direito que tornam essas malhas de poder cada vez mais tesas
e “naturais”...) – não cessam de se acumular e renovar nossas potências
rebeldes, os contrapoderes de corpos indisciplinados, indóceis e, do ponto de
vista dos poderes que se organizam para sujeitá-los, inúteis.
Na medida em que, contra o Estado,
produz-se a revolta profunda de todos os corpos, esses corpos transformam sua
fenomenologia da revolta em uma ontologia da liberdade. Descobrem que a única
consistência da liberdade é a práxis da rebelião e, ao mesmo tempo, que a única
forma de fazer uma rebelião que seja também uma festa de destruição de todos os
valores contestados é tomando parte nessa experiência de liberdade. Sob a
práxis está a descoberta revolucionária de todos os corpos indisciplinados: jamais fomos sujeitos! O poder que
circula pelos nossos corpos – seus fluxos domados e axiomatizados pelo capital,
pelo Estado, pelos aparatos micrológicos e microfascistas das sociedades de
controle – é desejo esquizo, potência
revolucionária. Rebelando-se contra as disciplinas, todos os corpos poderão, um
dia, descobrir-se profundamente anarquistas, questionando a repartição do
lícito e do ilícito a partir das ações borderlines
como a de quebrar vidraças, usar máscaras, incendiar lixo ou pichar palavras de
ordem – travar discursivamente, também, esse combate pelo sentido e pelos
signos.
O lixo incendiado é o signo último
desse combate: de um lado, a recusa das dejeções que o sistema de exploração
capitalista amontoa e produz sem cessar; de outro, o princípio incendiário e
contaminador que comunica a indisciplina e a insubmissão como princípio de
abertura e questionamento radical de um corpo a outro; já não podermos falar em
comunicação do aberto entre almas, porque a alma foi queimada com o fogo. Ela
também é, de alguma forma, um dejeto incendiado que o poder fabricou.
Eis o que todo corpo insubmisso,
indócil e inútil que ocupa – e ainda ocupará por muito tempo – os espaços
públicos coloca em jogo: um devir indomável de nossas formas de viver e de
pensar para o mercado. Uma forma de reabrir o que parecia fechado, de combater
o fechamento e as estases que o poder produz nos corpos sujeitados. Impedindo o
trânsito violentamente com a mesma intensa doçura de quem escreve em um cartaz:
“Desculpe o transtorno. Estamos lutando por seus direitos.”, é o devir de todo
um modelo de exercício de poder que esses corpos jovens, indóceis e inúteis
tentam precipitar no aberto. O devir é o novo, o interessante, o vital que
jamais cessa de estar em jogo – mesmo quando os corpos cedem ao poder. O devir
é o princípio vital, virtual e inorgânico que essas indomáveis existências
políticas mobilizam. Eis o próprio tempo a colocar em xeque e a afetar
irremediavelmente a totalidade das formas de vida que o poder produziu, e
produz, como seus dejetos cotidianos: sujeitos, resto ao lado. Viva a rebelião profunda de todos os corpos: saímos às
ruas e só encontramos máquinas desejantes, potências selvagens, tesão político.
Precipitar as formas de vida no devir:
o que podem esses corpos rebeldes não é pouco – sob nenhum aspecto.
* Originalmente publicado no site da Universidade Nômade: <http://uninomade.net/tenda/indoceis-e-inuteis-o-que-podem-os-corpos/>