Os delírios de pensar a terra: para ler “Périclès et Verdi”

06 janeiro, 2011


"L’universel n’a jamais couru ni nagé, mais fait les mouvements de la nage sur le sable sec, et ceux de la course sur place, parce qu’il ne s’occupe que des fins. Tout autre est l’acte de la raison singulière qui saut dans l’immanence de la vie, parce qu’elle se donne des mobiles". (Gilles Deleuze, Périclès et Verdi, p. 21-22).

Deleuze-Châtelet
        Pode parecer paradoxal que Deleuze, que na década de oitenta já havia escrito os dois grossos volumes de Capitalismo e Esquizofrenia com Guattari, venha a ocupar-se, em 1988, de um racionalista como François Châtelet (1925-1985). Chamado pelo Collège International de Philosophie para compor a última das mesas redondas dedicadas à morte do amigo e filósofo da história, Deleuze encontra na recusa châteletiana de Deus e de toda transcendência um dos mais interessantes ateísmos tranqüilos depois de Nietzsche.
      Châtelet realiza seus estudos de Filosofia na Sorbonne, e ali entra em contato com Deleuze pela primeira vez, bem como com grupos da esquerda trotskista; tal contato será constituinte de sua projeção como filósofo da história bem assim como filósofo político. No pós-Maio de 1968, Châtelet passa a trabalhar juntamente com Michel Foucault e Gilles Deleuze na implantação do Departamento de Filosofia da Universidade de Vincennes (Paris-VIII), que Châtelet dirigirá por aproximadamente dez anos; em 1983, colaborará com a criação do Collége International de Philosophie, vindo a falecer em 1985.
         Isso seria suficiente para explicar o interesse de Deleuze pela filosofia de Châtelet. Foucault morrera em 1984; Châtelet, em 1985, e Deleuze parece, aos poucos, refazer a trajetória filosófica dos amigos e intercessores, seja como forma de conjurar sua morte, seja como modo de lhes render uma homenagem póstuma por sua ressonância na própria filosofia deleuziana.
        Contudo, para um filósofo para o qual a criação de cada conceito constitui um acontecimento absolutamente singular, como Deleuze, e para quem a literatura e a escritura poderiam funcionar como um relógio que adianta, outras explicações seriam igualmente plausíveis.
    Nesse sentido, não deve passar despercebido de que modo a noção foucaultiana de “dobra”, desenvolvida paralelamente na monografia sobre Foucault (1986), antecipa uma preocupação com o conceito de dobra em Le pli: Leibniz et le barroque (1988). Por outro lado, Deleuze é repetidamente apresentado como um historiador da filosofia incomum, que não acredita em recenseamentos conceituais, mas que engendra no seio da história da filosofia a diferença finalmente emancipada do conceito em geral, da abstração e das formas decaídas da identidade; isto é, a história da filosofia deleuziana responde ao chamado de recolocar sob uma forma nova, sob outras determinações, o ser do problemático – daí a marcante liberdade expressiva da filosofia deleuziana. 
Ainda que nos limitemos a falar de Deleuze como monografista, Périclès et Verdi é um texto frequentemente esquecido, reputado menor em sua bibliografia. Talvez por Châtelet não ter alcançado a celebridade de Foucault, ou p texto ter exatas vinte e oito páginas, o que constituiria mais um ensaio que propriamente uma monografia sobre a filosofia de Châtelet. Se a idéia de dobra, em Foucault, é tão importante a ponto de ter podido ser estendida e repensada a partir de Leibniz alguns anos mais tarde, talvez não fosse despropositado recuperar o Périclès et Verdi deleuziano a fim de estimar que sorte de antecipações o ensaio monográfico sobre Châtelet – com todas as peculiaridades de um Deleuze a fazer História da Filosofia – engendra.

Imanência, Potência, Razão
Ao afirmar que, para Châtelet, ato e razão constituem o mesmo, Deleuze (1988, p. 09) indica a intranscendência singularizante do racionalismo châteletiano.  Assim como Nietzsche, Châtelet não pensa a existência ou a morte de Deus como um problema, mas, sim, como as condições para pensar os verdadeiros problemas. Contra as outrecuidances (presunções, pretensões, insolências) das transcendências, o pensamento de Châtelet é humilde e, portanto, terreno. Segundo Deleuze (1988, p. 07), “Jamais uma filosofia se instalara mais firmemente sobre um campo de imanência”. 
        A singularidade do racionalismo aristotélico de Châtelet pode ser estimada precisamente a partir das relações Potência-Ato; a recusa de Deus e de toda transcendência afasta o aristotelismo de Châtelet do tomismo, aproximando-o do que Deleuze chama de um certo “fascínio” pela Potência, pelo homem como potência e matéria.
A passagem da potência ao ato, a um ato que é a própria razão, não constitui uma faculdade, mas antes um processo, a atualização de uma potência ou a formação de uma matéria (Deleuze, 1988, p. 09). Criam-se processos de racionalização a cada vez que estabelecemos relações humanas com uma matéria qualquer. Eis o que faz com que o ato “enquanto relação” seja “sempre política” (Idem, loc. cit.).  A potência, por sua vez, constitui uma certa passividade, uma receptividade inumana imanente ao homem, um pathos indissociável do próprio ato: “exercido ou submetido, o poder não é apenas a atividade da existência social do homem sem ser também a passividade de sua existência natural” (Deleuze, 1988, p. 11).
      Châtelet reencontra em Marx os temas da Razão e de sua irracionalidade, e Deleuze afirma que a suposição de uma Razão pura constituiria, segundo Châtelet, uma impolidez metafísica, uma outrecuidance, isto é, para Châtelet, sinônimo de transcendência. É entre os gregos, e essencialmente na Atenas de Péricles, que Châtelet se encontraria com Foucault; Atenas, portanto, não significaria o advento de uma razão eterna, universal e teológica, mas “o acontecimento singular de uma racionalidade provisória, notável” (Deleuze, 1988, p. 17).

Universal, singular
    O racionalismo empírico e plural de Châtelet assenta-se em uma dupla negação do universal; primeiro, do universal como o que seria capaz de explicar qualquer coisa; segundo, a inexistência do universal como tal – só existiriam singularidades. Precisamente essas duas fórmulas “O universal nada explica; ao contrário, é ele quem deve ser explicado” e “o universal não existe, só há singularidades” terão ressonância mais tarde em Qu’est-ce que la philosophie (1991), livro que, como atestado por François Dosse (Gilles Deleuze e Félix Guattari, biografia cruzada, Artmed, 2010), fora majoritariamente escrito por Deleuze, embora tenha contado também com a assinatura de Félix Guattari. As quatro ilusões que envolvem o plano de imanência (Deleuze; Guattari, 1991, p. 50 e ss.) parecem mimetizar a recusa châteletiana dos universais. 
       Em Périclès et Verdi, Deleuze (1988, p. 19) conceitua: “A ‘singularidade’ não é o individual, é o caso, o acontecimento, o potencial, ou antes, a repartição de potenciais em uma dada matéria”; mesmo os indivíduos mais insignificantes, continua Deleuze, não passariam de “um tal campo de singularidades que não recebe seu nome próprio senão das operações que empreende sobre si e na vizinhança [...]” (Idem, loc. cit). 
      Para Châtelet, os processos de atualização e singularização são chamados de “decisão”, em oposição aos universais da comunicação, da reflexão etc., que esboçam movimentos unicamente abstratos e, portanto, irreais. Produzir movimentos reais passa a ser a questão; atualizar os potenciais, decidir, racionalizar torna-se, então, singularizar. Sua filosofia passa a ser, assim, uma filosofia da decisão como movimento natural de singularização. 
       Tal produção material e molecular de movimento e singularização, Châtelet encontra na ópera de Giuseppe Verdi. Segundo Deleuze, a vizinhança musical faz recordar que a razão não possuiria uma função representativa, mas atualizadora das relações entre homem e matéria sonora, em que as qualidades sonoras e suas combinações tornam sensível toda a superfície do corpo.
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