Ensaio: Os umbrais do humano

17 março, 2011




Hoje à tardezinha, quando chegava de Salvador (e continuava, sozinho, a frutificar os muitos bons encontros que lá tive, com a gente, a música, o sol e a cidade), tive a feliz notícia de que fora publicado o último número do ano de 2010 da Revista Prisma Jurídico, revista de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Universidade Nove de Julho.
Trata-se do segundo artigo que publico em Prisma, que – medindo-se com os desafios de pensar um direito hoje seqüestrado pela técnica - tem uma proposta ao mesmo tempo árida, competente e audaciosa: ser, simplesmente, uma revista de Filosofia e Teoria Geral do Direito. Contando com os trabalhos editorias do jurista e poeta Pádua Fernandes, que, vale lembrar, escreve O palco e o mundo, tenho a sensação de que Prisma é uma das poucas revistas que ainda travam com seriedade e sinceridade acadêmicas essa fatigante batalha.
Uma das frases mais célebres e, é certo, engraçadas de Martin Heidegger teria sido: “a ciência não pensa”. Eis o que criou certo ódio nos cientistas... Pessoalmente, gostaria de ver se os advogados têm brios: a técnica, diríamos, não pensa, não pode pensar; nas faculdades de direito, a técnica jurídica é, precisamente, o aparelho de captura das menores possibilidades de pensamento. Gostamos de homens mecânicos; um aluno de direito é uma potência a ser docilizada, tornada servil, mantida no obscuro. Prisma, no entanto, é meio indomável, e pela mais singela das razões: ser uma revista de Filosofia e Teoria Geral do Direito, nadando à contracorrente, à deriva inocente do pensar...
Àqueles que estudam as interfaces entre Direito e Bios (do biodireito à biopolítica) têm, nas duas edições de 2010, um material a um só tempo vasto e vário para o estudo e a consulta. No segundo número, chamam-me à atenção especialmente "A desobediência biopoética e o direito de resistênciaentrevista com Julián Axat", realizada por Pádua Fernandes, bem como o artigo de Axat, Una voz no tan menor: Apuntes sobre jóvenes infractores, performances y estrategias defensivasPolicía, derecho administrativo y inmigración en Colombia, de Miguel Alejandro Malagón Pinzón, e A ideia barroca como direito e literatura na obra de Walter Benjamin, de Virginia Juliane Adami Paulino - sem falar nas duas resenhas de Pádua Fernandes, que encerram o volume.
Neste número, colaborei com um pequeno ensaio, “Os umbrais do humano: o homem como dispositivo biopolítico e o animal contemporâneo”, a cuja leitura convido os convivas de A Navalha de Dalí.
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@_mdcc

* Os umbrais do humano: o homem como dispositivo biopolítico e o animal contemporâneo

 Resumo
De acordo com a detecção de Giorgio Agamben, o dispositivo antropológico atualmente em obra na cultura ocidental opera, desde Aristóteles, recortando uma forma de vida humanamente predicada (bios) sobre a vida nua (zoé). Essa operação, qualificada pelo paradoxo e pela exceção que engendra, anima, em larga medida, a crítica que Agamben endereça às Cartas de Direitos Humanos em Al di là dei diritti del’uomo. Nas trilhas de uma tradição que remonta a Nietzsche e é legada a Foucault, Deleuze, Derrida e Agamben, traduzir-se-ia um pensamento que, ao operar no seio do dispositivo antropológico, busca desvencilhar-se do homem – seja pelo além-do-homem, seja por uma micropolítica de intensidades sem sujeito. O aporte dessas filosofias apela às indeterminações dos devires, mas também demonstra a negatividade que o conceito de homem opera em relação à vida dos homens quando se compreende a política como a potência de variação das formas de vida.