Só há memória subterrânea

14 dezembro, 2011




O longo silêncio sobre o passado, longe de conduzir ao esquecimento, é a resistência que uma sociedade civil impotente opõe ao excesso dos discursos oficiais(Michael Pollak)



            Em um pequeno texto, do ano de 1925, Freud lembrava que a negação constitui “uma forma de tomar conhecimento do que foi reprimido” (Freud, 2011, p. 277). Embora a negação não seja uma aceitação do reprimido, negar implicaria “um levantamento da repressão”, capaz de dar testemunho de uma divisão mais profunda entre as faculdades intelectuais e a dimensão afectiva.
            Entre os sons moucos brandidos pelos discursos oficiais, as decisões dos tribunais superiores, o fórceps para fazer nascerem instituições encarregadas do impossível - a exemplo da Comissão Nacional da Verdade (Lei Federal n. 12.528/2011), cuja tarefa política é a de reproduzir simbolicamente o silêncio – o Estado Brasileiro e o governo federal não tem cessado de reinstaurar o negacionismo como postura intelectual e política fundamental de nosso tempo.
         O primeiro dos sintomas desse negacionismo encontra-se na recusa pelo Supremo Tribunal Federal em declarar a não-recepção da Lei de Anistia pela Constituição da República de 1988. Quase que paralelamente ao ajuizamento da ADPF 153 pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil perante o STF, em 26 de março de 2009 o Caso Gomes Lund e Outros contra a República Federativa do Brasil era recebido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, situada na cidade de San José, na Costa Rica, tendo por objeto responsabilizar a União por detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de 70 pessoas (membros do Partido Comunista do Brasil e camponeses da região) como resultado de operações do Exército brasileiro empreendidas entre 1972 e 1975 com o objetivo de erradicar a Guerrilha do Araguaia.
          A derrisória defesa brasileira, que chegou a alegar em seus últimos estertores, a perda de objeto da demanda - dado que o STF, em abril de 2010, julgou constitucional a Lei de Anistia -, acabou derrotada pela sentença de 24 de novembro de 2010 proferida no âmbito de uma Corte Internacional de Direitos Humanos.
Desnecessário lembrar que os votos dos Ministros do Supremo Tribunal Federal que redundaram na decisão da ADPF 153, se não ignoraram completamente as disposições de Direitos Humanos aplicáveis ao caso, não atenderam sob nenhum aspecto à jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos que considera permanentes, e logo insujeitos à prescrição, os crimes de lesa-humanidade.
            A Corte interamericana de Direitos Humanos concluiu que as disposições da Lei de Anistia brasileira não podem obstar a investigação e a punição dos responsáveis por graves violações de direitos humanos, especialmente em se tratando de lei de autoanistia, preceito incompatível com a Convenção Americana de Direitos Humanos segundo a jurisprudência da Corte Internacional. Reconheceu, ademais, o caráter permanente do desaparecimento forçado, a imprescritibilidade dos crimes e a violação do dever brasileiro de tipificar o desaparecimento forçado de pessoas. Ainda, consubstanciou-se a violação ao direito à verdade e da integridade pessoal (especialmente psicológica) dos familiares das vítimas.
            Diante disso, a CIDH fixou uma série de reparações, determinando ao Estado brasileiro a investigação, o processamento e a punição dos responsáveis pelas violações de direitos humanos na época da ditadura, o esclarecimento público do paradeiro das vítimas, o atendimento psicológico a ser dispensado aos familiares das vítimas que o desejarem pela via do sistema de saúde pública.
Determinou, ainda, que se desse ampla publicidade da condenação, com ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional, prevendo como garantias de não-repetição a criação de um programa permanente e obrigatório sobre direitos humanos em todos os níveis hierárquicos das Forças Armadas, tipificação penal do delito de desaparecimento forçado, acesso, sistematização e publicação de documentos em poder do Estado sobre os fatos, instituição de Comissão da Verdade etc. Finalmente, oportunizou-se às vítimas o acesso a indenizações por danos materiais e imateriais.

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            Muito além de expor a fratura entre as interpretações nacional e internacionalista dos Direitos Humanos, o caso Gomes Lund expõe o negacionacionismo de fundo que há décadas orienta as políticas institucionais brasileiras empenhadas em acertar contas com o passado ajustando-o a um discurso histórico oficial. É Freud quem, há pouco, auxiliava-nos a compreender que a postura negacionista implica o reconhecimento do negado ao mesmo tempo em que o reprime, e que a negação testemunha uma ruptura entre dimensões afectivas e intelectuais.
       A divisão encontrada por Freud entre afecto e intelecto na negação, com toda a sua ambiguidade, poderia remeter à clivagem entre discurso oficial e memória subterrânea que o sociólogo e germanista francês Michael Pollak (1989) apresentava em Memória, esquecimento, silêncio. Por oposição à memória institucional, as memórias subterrâneas, dos grupos marginais, dos excluídos, são as memórias do sofrimento e da dominação.
        O campo das disputas sobre a memória e seus signos esteve sempre aberto: memórias segmentarizadas, de Estado, enunciados oficiais permeados por excessos do perdão e negligências pardas, encontram-se com linhas de ruptura que são subrepticiamente desenhadas, cingidas, esboçadas pelas memórias subterrâneas que se infiltram pelos espaços não-oficiais e podem quebrar suas linhas molares.
            Se, como quiseram Nietzsche e Clastres, a memória, mas também a lei, é inscrita no corpo a partir de um sistema de afectos e de crueldade, são as memórias subterrâneas, não raro resistentes na morada de seu silêncio, que podem emergir e travar combates no campo da formação simbólica do político. Combates, guerras de guerrilhas, não guerras de abolição: não se trata de suprimir os discursos oficiais, mas de penetrá-los por baixo, pelas costas, traí-los, fazerem-se cravar o ferrão nas próprias costas, pronunciar no interior dos espaços institucionais – e também para muito além deles – as linhas de ruptura de que os saberes de Estado, as investigações documentais e o poder jamais serão capazes.
       O que Pollak, como Freud, compreenderam muito bem é que a negação está longe de ser um dispositivo puro de reconhecimento ou de repressão: a negação é um misto; negar-se a cumprir a decisão da Corte Interamericana, como vem fazendo o Estado Brasileiro já há um ano, nem reprime o conteúdo negado – pois algo sombrio dele se desprende e parece persistir como uma memória silenciosa, roída por dentro – nem o dá integralmente à vista.
          A decisão do caso Gomes Lund constitui um dos primeiros espaços institucionais povoados pelas memórias subterrâneas. A negação de seu cumprimento constitui, mais que uma atitude hipócrita, o gesto do reprimido daquele que confessa: o momento enrubescente em que a repetição consciente do “Não é isso” torna-se, sem que percebamos, afirmação: “Não, é isso”.
        A negação, no entanto, não contém nunca a condição para sua própria superação dialética. O que sua impenetrabilidade inaparente e atual oferece, com a rotura entre o intelectual e o afectivo, é o próprio limiar entre o silêncio e o simbólico: pequenas rahaduras no interior das continuidades supostamente monolíticas, linhas de fuga ou de ruptura que se insinuam por entre as linhas de segmentariedade dos aparelhos de Estado. Esse limiar constitui a positividade possível do passado que Deleuze afirmava ser o fundamento do próprio tempo: só há memória subterrânea.



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