Angels and demons
M. C. Escher
1.
Esta noite, pediram-me para que falasse brevemente sobre um tema que mereceria
alguns anos de pesquisa e, depois, precisaria de pelo menos algumas horas de exposição: o status da Teoria Contemporânea do
Direito no Brasil sob o enfoque da relação entre as instituições e a
democracia. Minha questão, portanto, poderia resumir-se em perguntar junto a
vocês quais são os caminhos teóricos para
pensarmos juridicamente as relações entre instituições e democracia? Sobre
esse tema, muito já foi escrito e muito ainda há de ser. A fim de evitar que
percamos tempo, enuncio diretamente as premissas do raciocínio que, muito
brevemente, devemos desenvolver como ponto de partida para nossa discussão
posterior.
Sugiro abordar o tema das relações
entre instituições e democracia sob o ponto de vista crítico de uma teoria do direito
que está em vias de constituir-se desde o pós-segunda guerra mundial, e que surge
no cenário europeu pós-guerra como reação aos efeitos humanos, sociais e
políticos nefastos de uma práxis jurídica sincrética, mas teoricamente
sustentada, e marcada pela miscibilidade metodológica de signos aparentemente tão
paradoxais como o formalismo, o voluntarismo e o decisionismo. Se quisermos dar
apenas um ou dois nomes a essa teoria reativa, que define suas pretensões em
termos de “revolução paradigmática”, poderemos chamá-la por pós-positivismo ou neoconstitucionalismo.
2. Comecemos definindo-os por seus
antecedentes teóricos mais imediatos, segundo três pontos de vista que lhe são
constitutivos:
2.1 Do
ponto de vista metodológico: o surgimento de um direito como argumentação,
inicialmente idealizado por Perelman, a fim de oferecer uma compreensão mais
ampla do que podemos entender por lógica jurídica, mas também pelos raciocínios
de aplicação do direito. Sua grande censura a Kelsen poderia ser resumida no
estranho fato de que este teórico, tão preocupado com a descrição científica da
realidade do direito que chegou ao ponto de ontologizar a regra jurídica, tenha
podido escarnecer – seguindo a melhor tradição crítica kantiana – da
argumentação tal como ela se desenvolvia nos tribunais. Essa perspectiva é, hoje,
continuada sob pontos de vista metodológicos relativamente originais por
teóricos como Robert Alexy, Neil Maccormick e Manuel Atienza;
2.2 Do
ponto de vista epistêmico: O realismo e o sociologismo jurídicos, que
constituem a longa resposta às doutrinas formalistas e de normativismo estrito;
a contrapelo das doutrinas derivadas da escola da exegese, tais abordagens
teóricas chegarão, no limite, a apelar a certa “força normativa dos fatos”,
visando a superar a tradicional distinção entre ontologia (o que é dos domínios
do “ser”) e deontologia (o que diz respeito ao “dever-ser” normativo, o que constitui
ordem destinada a influenciar condutas) – distinção, esta, sob todos os
aspectos, fundante da ciência jurídica moderna e de sua metodologia analítica
que, entre os anos 30 e 40 do século passado, encontrarão na Teoria Pura do Direito
sua forma mais em acabada;
2.3
Do ponto de vista axiológico: se
Kelsen é mal-lido e mal-visto na Europa dos anos 30, é justamente porque era
pela boca de seus adversários jusnaturalistas que Kelsen era ensinado nas universidades.
Erradamente, e ignorando toda sua discussão com Carl Schmitt – o teórico do Führer –, Kelsen não cessará de ser responsabilizado
teoricamente pelas defesas de legalidade estrita que surgiram como argumentos
nos tribunais ad hoc de Nüremberg e
Tóquio, e que visavam a pôr fim à impunidade de agentes nazistas e fascistas
responsáveis pelos crimes de guerra e contra a Humanidade ocorridos durante a
Segunda Guerra Mundial – aí incluído o assassinato de massas populacionais
inteiras de judeus, ciganos, homossexuais, pessoas com deficiência etc.,
realizados de forma administrada e fabril nos campos de extermínio da Europa
sitiada pelos países alinhados ao III Reich.
Durante os julgamentos de Nüremberg e
Tóquio, a excusa que mais se ouvia era “eu não fiz as regras; estava apenas
cumprindo ordens”. A defesa da legalidade – que o próprio Hitler, perguntado
sobre o que era a lei, respondera “a lei é aquilo que é bom para o povo alemão”
– colocava o positivismo kelseniano como o alvo privilegiado dos jusnaturalistas
no pós-guerra. É fácil compreender que, desse contexto, algo como uma
reorientação das relações entre direito e moral poderia surgir. O grande argumento
dos aliados para punir os agentes e colaboracionistas responsáveis pelo
holocausto era, precisamente, um argumento moral: leis e ordens moralmente
intoleráveis não devem ser cumpridas; mais que um direito, é um dever
reconhecido por todo o mundo civilizado o de desobedecer a ordens ou a leis
injustas, desprovidas de conteúdo moral. Eis o que os liberais já teriam
afirmado ao longo do século XVI como constitutivo do direito de resistência – e
contemporaneamente fora afirmado em mais de uma ocasião por teóricos liberais
substancialistas a exemplo de Ronald Dworkin.
Assim, Kelsen – que não apenas jamais
havia defendido ideologicamente o III Reich ou suas políticas antissemitas, mas
havia fugido em 1942 e se refugiado em Harvard, depois em Berkeley mas,
sobretudo, era judeu! – tornou-se
presa de sua própria armadilha teórica. “A regra nada prova. A exceção prova a
regra com muito mais paixão”, escrevera certa vez Carl Schmitt, seu maior
adversário teórico. Apesar de Kelsen ter se sagrado vencedor na batalha político-jurídica
sobre quem deve ser o guardião da Constituição – a esta pergunta, Schmitt
respondia “o Führer”; Kelsen respondia “um tribunal constitucional” –, a
história, e o real, como veremos, parecem ter dado uma perversa volta no
normativismo de Kelsen – em relação ao qual tampouco cumpre derramar qualquer
olhar acrítico ou complacente. Hoje, os valores e os princípios parecem ter
vencido – mas estaremos, ainda nesse campo da moral normalizada, tão distantes
assim do decisionismo de Schmitt?
3. A fim de respondê-lo, é necessário
determinar a consistência própria desse novo marco teórico. Em grandes linhas,
o pós-positivismo, ou o neoconstitucionalismo, podem ser definidos como a
matriz teórica plural – para não dizer conceitualmente ambígua, como quiseram
Miguel Carbonnell e Suzana Pozollo – que resulta desse complicado panorama da
teoria do direito europeia pós-guerra. Em Direito
e Ruptura, livro para o qual tomo a liberdade de remetê-los nesse ponto, tentei
demonstrar, entre outras coisas, que o pós-positivismo jamais abandonou o plano
teórico do direito como norma; ao contrário, conservou-o como seu terreno mais
íntimo, embora parcialmente modificado. Alguns de seus defensores, e não sem
certo mal-estar, ora reconhecerão trabalhar com um conceito de direito que está
entre a Ciência Analítica (de um Austin, ou de um Kelsen, e.g.) e a Hermenêutica; ora, outros de seus advogados utilizarão, não
casualmente, em suas descrições do pós-positivismo, os mesmos standards que Bobbio utilizava para
descrever, em um célebre livro homônimo, o positivismo jurídico (como método,
como teoria, como ideologia).
Todavia, os pós-positivistas não
cessarão de postular alterações substanciais nesses três níveis, nem de indicar
a consistência de um objeto parcialmente modificado. De um ponto de vista teórico,
o pós-positivismo se caracteriza por enfeixar as teorias do direito pós-segunda
guerra. Nesse período, os estados europeus recompõem seus ordenamentos
jurídicos internos erigindo “constituições invasoras”; isto é, constituições
que dominam espaços cada vez mais amplos da vida social e, sobretudo, que
exprimem a exigência de uma fundamentação ética mínima como critério para
identificar o próprio direito, superando parcialmente as agruras do formalismo
herdado de Kant. Dessa forma, antigos referenciais positivistas como o
estatalismo das fontes, a centralidade das leis e o raciocínio lógico-formal
são teoricamente deslocados em benefício de uma descrição teórica da
Constituição e de seus valores como normas jurídicas. Encontram-se lançadas, a
partir desse momento, as bases de um modelo axiológico do Direito, em que os
valores constitucionalizados são dotados de força normativa e passam a exigir
também uma alteração prática e metódica, que, nos anos 70 do século XX,
redundará na Teoria dos Princípios, desenvolvida segundo linhas parcilamente
convergentes por Ronald Dworkin e Robert Alexy.
Ideologicamente, abandonam-se progressivamente
as exigências liberais segundo as quais a Constituição deveria ser vista como
um documento formal contemplando garantias individuais capazes de limitar o
poder do Estado; esta proteção formal é, pouco a pouco, substituída por aquilo
que ainda hoje constitui uma preocupação radicalmente vinculada à implementação
de condições mínimas da coexistência democrática: a preocupação com a
efetividade dos direitos fundamentais e do Direito Internacional dos Direito
Humanos – a exigir, no último caso, uma perspectiva teórica transconstitucional
que vem progressivamente se consolidando desde meados dos anos 2000. Esta
seria, hoje, uma linha de fuga inultrapassável da teoria do direito
contemporânea para além de seus referenciais secularmente estatizantes.
Nesse panorama, reconhece-se que o
método possui a capacidade de construir seu objeto. Segundo Alexy, a
imperatividade do direito residiria mais nos valores constitucionalizados e na
argumentação racional que nas regras jurídicas propriamente ditas. Eis o que
acarretaria um rompimento da clássica dicotomia entre juspositivismo e
jusnaturalismo. Écio Oto Ramos Duarte chegará a dizer que na medida em que os
valores constitucionalizados são respeitados como normas, tudo se passa como se
houvesse uma “ampliação do conteúdo da grundnorm”
– embora saibamos que, para Kelsen, a Norma Fundamental não possui qualquer
conteúdo, jamais coincide com qualquer lei concreta, por constituir o
fechamento lógico-transcendental do sistema jurídico.
4. As
duas saídas. Voltemos, no entanto, para nosso tema: quais os caminhos teóricos para compreender a relação entre Democracia
e Instituições no Brasil? Para radicalizar a problematização de tudo o que
apontamos – esta saída fácil e, hoje, aparentemente natural que é a do
pós-positivismo –, gostaria de propor um brevíssimo estudo de caso que colocará
em xeque tudo o que apreendemos até aqui. Não me parece coerente responder a
essa questão sem procurar na prática judiciária o ponto mais ou menos obscuro
em que essas teorias morais terminam por recair em um decisionismo digno da
defesa apaixonadamente schmittiana do estado de exceção.
Qual o sentido de nos perguntarmos hoje
sobre a indeterminação entre Estado de Direito e estado de exceção, zonas
normativas e de anomia? Especialmente quando o pós-positivismo – uma vez
ressurgido no cenário do debate neoconstitucionalista – parece, enfim, ter
superado metodologicamente as doutrinas jusnaturalistas (imprecisas demais), as
positivistas (formais demais), e as decisionistas (sumamente arbitrárias)? Em
que ponto a sombra da exceção ainda nos tocaria? Temos os valores, os
princípios, arrecadam-se nos tribunais boas intenções, elas estão nos
frontispícios da literatura jurídica mais vendida, elas informam a
pseudoimanência dos ideais do dia, povoam as bancas de jornal, talvez tenham
aparecido até mesmo nas questões do último exame nacional da Ordem dos
Advogados do Brasil...
Que tenhamos sido enfim despertados
para as continuidades entre Estado de Direito e estado de exceção, não
significa que tenhamos compreendido suas consequências e suas distensões
radicalmente práticas. O que parece mais paradoxal é que o Brasil, mesmo aí,
encontra-se na vanguarda da produção de decisões que elogiam o estado de
exceção no interior de instituições democráticas.
Exemplarmente, refiro-me ao relatório de Eros Grau,
ex-Ministro da Corte Constitucional brasileira, que, na análise da ADI 2240,
repetia argumentos presentes em um texto por meio do qual ele próprio
apresentara a tradução brasileira de Teologia
Política, de Carl Schmitt. Na ocasião de seu relatório, afirmava
categoricamente que “Ao Supremo Tribunal Federal incumbe decidir regulando
também [...] situações de exceção. Não se afasta do ordenamento, ao fazê-lo,
eis que aplica a norma à exceção desaplicando-a, isto é, retirando-a da
exceção.” A decisão, datada de 2006 – não por acaso, o mesmo ano da publicação
da edição brasileira de Teologia Política –, atribui categoricamente ao Supremo
Tribunal Federal competência para decidir sobre a exceção, para suspender a
ordem Constitucional como um todo. Não bastasse, idêntico argumento fora
repetido, nos mesmos termos, ainda outras sete vezes no Tribunal
Constitucional, e em casos relatados por outros Ministros, todos referendados
pelo Pleno.
É claro que a interpretação moral constitucional do STF não
se resume, e não poderia resumir-se, a esses tristes exemplares em que a
indeterminação entre Estado de Direito e estado de exceção se torna visível. Nos
últimos anos, decidiram-se questões vitais, e de forma bastante progressista,
como as questões envolvendo a pesquisa com células-tronco, união civil de
pessoas do mesmo sexo, a autorização para o aborto de fetos anencefálicos, a
confirmação da constitucionalidade das cotas raciais nas universidades etc. Isso, porém, não serve de excusa para
decisões que, para dizer o mínimo, chamaremos de conservadoras, como foi o caso
da ADPF 153 (a chamada “revisão” da lei de anistia), ou a liminar que,
permitindo a continuidade das obras da usina de Belo Monte, autorizou o
genocídio indígena e o ecocídio em terras paraenses, por exemplo.
5. A
moral da aporia; a aporia da moral. Na literatura latino-americana, ninguém
melhor do que Jorge Luis Borges compreendeu a natureza do fenômeno do fascismo.
Em um dentre os que podem ser considerados os grandes textos de O Aleph (livro de Borges, que tem por
título o nome da primeira letra do alfabeto hebraico), de 1949, Deutsches requiem narra a história do
condenado Otto Dietrich Zur Linde:
Meu nome é Otto
Dietrich zur Linde. Um de meus antepassados, Christoph zur Linde, morreu na
carga de cavalaria que decidiu a vitória de Zorndorf. Meu bisavô materno,
Ulrich Forkel, foi assassinado na floresta de Marchenoir por franco-atiradores
franceses, nos últimos dias de 1870; o capitão Dietrich zur Linde, meu pai,
distinguiu-se no cerco de Namur, em 1914, e, dois anos depois, na travessia do
Danúbio. Quanto a mim, serei fuzilado por tortura e assassinato. O tribunal
procedeu com retidão; desde o princípio, eu me declarei culpado. Amanhã, quando
o relógio da prisão der as nove horas, estarei morto; é natural que pense em
meus antepassados, já que tão perto estou de sua sombra, já que de alguma forma
sou eles.
Durante o julgamento
(que por sorte durou pouco) não falei; justificar-me, então, teria perturbado o
veredicto e parecido covardia. Agora as coisas mudaram; nesta noite que precede
minha execução, posso falar sem medo. Não pretendo ser perdoado, porque não
sinto culpa, mas quero ser compreendido. Os que souberem ouvir-me,
compreenderão a história da Alemanha e a futura história do mundo. Eu sei que
casos como o meu, excepcionais e assombrosos agora, serão muito em breve
triviais. Amanhã morrerei, mas sou um símbolo das gerações futuras.
[...].
Disseram que todos
os homens nascem aristotélicos ou platônicos. Isso equivale a afirmar que não
há debate de caráter abstrato que não seja um momento da polêmica de
Aristóteles e Platão; através dos séculos e latitudes, mudam os nomes, os dialetos,
os rostos, mas não os eternos antagonistas. Também a história dos povos
registra uma continuidade secreta. Armínio, quando degolou num pântano as
legiões de Varo, não se sabia precursor de um Império Alemão; Lutero, tradutor
da Bíblia, não suspeitava que seu fim era forjar um povo que destruísse para
sempre a Bíblia; Christoph zur Linde, que foi morto por uma bala moscovita em
1758, preparou de alguma forma as vitórias de 1914; Hitler acreditou lutar
por um país, mas lutou por todos, até por aqueles que agrediu
e detestou. Não importa que seu eu o ignorasse; seu sangue, sua vontade o
sabiam. O mundo morria de judaísmo e dessa enfermidade do judaísmo que é a fé de
Jesus; nós lhe ensinamos a violência e a fé da espada. Essa espada nos mata e
somos comparáveis ao feiticeiro que tece um labirinto e que se vê forçado a
errar nele até o fim de seus dias, ou a David, que julga um desconhecido e o
condena à morte e ouve depois a revelação: "Tu és aquele homem".
Muitas coisas há que destruir para construir a nova ordem; agora sabemos que a
Alemanha era uma dessas coisas. Demos algo mais que nossa vida, demos a sorte de
nosso querido país. Que outros maldigam e outros chorem; eu me regozijo de que
nosso dom seja orbicular e perfeito.
Uma época
implacável pesa agora sobre o mundo. Nós a forjamos, nós que já somos sua vítima.
Que importa que a Inglaterra seja o martelo e nós a bigorna? O importante é que
mande a violência, não a servil timidez cristã. Se a vitória e a injustiça e a
felicidade não são para a Alemanha, que sejam para outras nações. Que o céu
exista, mesmo que nosso lugar seja o inferno.
Contemplo meu
rosto no espelho para saber quem sou, para saber como me portarei dentro de
algumas horas, quando me defrontar com o fim. Minha carne pode ter medo; eu,
não. (Borges, 2009, p. 73-74 e p. 80-81).
Para além dos muitos mal-entendidos que este poderoso texto borgiano
gerou em sua biografia, ele possui o dom de dar-nos a compreender a natureza
profunda dos fenômenos totalitários. Segundo Borges, o nazismo não passou de um fenômeno moral. Invertida a polaridade
de uma moral cristã, piedosa e humanista, sobrevém, como sua contraface, uma moralidade
da crueldade, que a personagem de Otto Dietrich Zur Linde não cessa de
reivindicar: “O mundo morria de judaísmo e dessa enfermidade do
judaísmo que é a fé de Jesus; nós lhe ensinamos a violência e a fé da espada.”
(BORGES, 2009, p. 80); “Que importa que a Inglaterra seja o martelo e nós a
bigorna? O importante é que mande a violência, não a servil timidez cristã. Se
a vitória e a injustiça e a felicidade não são para a Alemanha, que sejam para
outras nações. Que o céu exista, mesmo que nosso lugar seja o inferno.” (Idem,
loc. cit.). A moral cristã e a ética
da espada e da violência encontram seu ponto de fusão e indistinção – nada mais
as separa de uma ordem de valores comum; o amor ao próximo e a produção fabril
de sua morte já não parecem estar assim tão distantes nesse texto de Borges. Sua
incômoda intuição nos permite questionar se a interpretação moral da
Constituição não pode capturar-nos em sua própria armadilha.
Se Schmitt foi suficientemente sagaz
para precisar o ponto em que Estado de Direito e estado de exceção se
indeterminam, penetram e articulam, hoje, temos de ser suficientemente
humildes, ou rebeldes, para, diante de toda a moralia teórica messiância pós-positivista, perguntar com
Agostinho Ramalho Marques “quem nos salvará da bondade dos bons?”.
Esses, me parecem ser, os não-caminhos,
as aporias estratégicas, políticas e jurídicas com as quais todo aquele que
deseja pensar os caminhos teóricos da relação entre instituições e democracia
sob o ponto de vista da Teoria do Direito. A Teoria do Direito não passa de um
aparelho de Estado, de um aparelho de captura, mas a Filosofia do Direito
comporta a potência específica de uma máquina de guerra capazes de
desestratificar as capturas do saber teórico e as estratégias de poder que as
governam e consolidam; ela, sim, uma vez que se desprenda das tradições da
soberania e do direito disciplinar, pode desempenhar, no campo jurídico, o
papel anárquico e revolucionário da sociedade contra o Estado clastreana.
Que me perdoem os pós-positivistas e
suas cantigas para ninar ideologias, mas é preciso recusar-se a capturar a
política apenas nos horizontes da hermenêutica – legado recente, simbólico, ambíguo
e problemático da adoção à brasileira do standard
miscível dos neoconstitucionalismo . A relação entre direito e política, como
entre direito, poder e formas de vida, jamais pode ser reduzida – senão como
fruto já da implantação de uma estratégia de poder – a uma questão hermenêutica.
Muito pelo contrário, o que qualquer julgado de qualquer corte constitucional
poderia nos mostrar é que a hermenêutica é que é uma questão política – e, sob
todos os aspectos, uma questão profundamente política, na qual estão em jogo
nossos modos de existência e nossas formas de vida. É preciso politizar a
hermenêutica, antes de aderir a conceitos prontos e fechados de democracia que,
em geral, nada mais fazem senão reproduzir uma ordem de valores que deve ser
cartografada, recusada e denunciada como conservadora das formas de vida para o
mercado e para a servidão voluntária. Eis o trabalho político que nos espera no
campo da teoria e da filosofia do direito; e assim, talvez, no cerne desse
trabalho político que se confunde com a
afirmação radical de nossa própria liberdade, a aporia deixe de representar o
que etimologicamente significa – um não-caminho
–, para tornar-se apenas a impenetrável e invisível trilha que não percorremos ainda...
*Comunicação realizada em 15.04.2013, aos alunos de graduação e pós-graduação da Faculdade de
Direito do Centro de Ensino Superior dos Campos Gerais (CESCAGE, Ponta Grossa).
--
Moebius Strip II, 1963
M. C. Escher