Tradução de: “Face
aos governos, os direitos humanos”, Libération,
n. 967, 30 junho- 1º julho, 1984, p. 22. (Republicado
em Dits et Écrits, tome IV, texte n°
355).
Tradução
de Murilo Duarte Costa Corrêa*
Michel Foucault lera
este texto alguns minutos após tê-lo escrito, na ocasião da conferência de
imprensa que anunciava, em Genebra, a criação do Comitê Internacional Contra a
Pirataria, em junho de 1981. Em seguida, fizera questão de fazer reagir a esse
texto o maior número de pessoas possível na esperança de chegar àquilo que poderia
ter sido uma nova Declaração dos Direitos do Homem.
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"Não somos, aqui,
outra coisa que homens privados que não podem falar senão a esse titulo, e a
falar juntos, sobre uma certa dificuldade comum à suportar o que se passa.
Sei-o bem, e é
preciso encaminhar-se na direção da evidência: em relação às razões que fazem
com que homens e mulheres prefiram deixar seu país a ali viver, não se pode
fazer grande coisa. O fato está fora de nosso alcance.
Quem então o
cometera? Ninguém. E é precisamente isso que constitui nosso direito. Parece-me
que é preciso ter presentes três princípios que, creio, guiam essa iniciativa,
bem como outras que a precederam: : a Île-de-Lumière[1], o cap Anamour, o Avion pour le Salvador, e também Terre des hommes, Amnesty
International.
1) Existe uma cidadania internacional que implica
seus direitos, seus deveres e que conduz a insurgir-se contra todos os abusos
de poder, seja quem for seu autor – e quem quer que sejam
suas vítimas. No fundo, nós somos todos governados e, a esse título,
solidários.
2) Na medida em que
pretendem ocupar-se da felicidade das sociedades, os governos se arrogam o
direito de inventariar os ganhos e as perdas, a infelicidade dos homens, que
suas decisões provocam ou que suas negligências permitem. Constitui um dever
dessa cidadania internacional de sempre fazer valer aos olhos e ouvidos dos
governos as infelicidades dos homens em relação às quais não é verdade que eles
não são responsáveis. A infelicidade dos
homens não deve jamais ser um resto mudo da política. Ela funda um direito
absoluto de se insurgir e de interpelar aqueles que detêm o poder.
3) É preciso recusar a divisão de
tarefas que, com frequência, propõe-se-nos: aos indivíduos, de se indignar e
falar; aos governos, de refletir e de agir. É bem verdade: os bons governantes
amam a santa indignação dos governados, desde que ela permaneça lírica. Creio que é preciso dar-se conta de que
frequentemente são os governos que falam – não podem e não querem senão falar.
A experiência demonstra que se pode e se deve recusar o papel teatral da pura e
simples indignação que se propõe a nós. Amnesty
International, Terre des hommes, Médicins
du monde são iniciativas que criaram esse novo direito: este direito dos
indivíduos privados de intervirem efetivamente na ordem das políticas e das
estratégias internacionais. A vontade dos indivíduos deve inscrever-se em uma
realidade cujo monopólio os governos quiseram reservar para si mesmos – esse monopólio
que é preciso arrancar pouco a pouco e a cada dia."
[1]
Do navio-hospital Île-de-Lumière, que
socorria os boat people no mar da
China em 1979, à defesa internacional de todos os prisioneiros políticos, M.
Foucault evoca, nesse ponto, as iniciativas humanitárias das organizações
não-governamentais que, a partir dos anos 1970, promoveram o novo direito de
livre acesso às vítimas de todos os conflitos.
*O original ("Face aux gouvernements, les droits de l'homme"), em francês, encontra-se digitalizado aqui: http://1libertaire.free.fr/MFoucault162.html