1. A queda do Partido comunista soviético e o domínio sem véus do Estado democrático-capitalista em escala planetária apagaram o campo dos dois principais obstáculos ideológicos que impediam a retomada de uma filosofia política à altura de nosso tempo: o stalinismo, de um lado, o progressismo e o Estado de direito, de outro. Assim, o pensamento encontra-se, hoje, pela primeira vez defronte a sua tarefa sem qualquer ilusão, sem álibis possíveis. Diante de nossos olhos, está por cumprir-se, por toda parte, a “grande transformação” que empurra, um após o outro, os reinos de nosso planeta (repúblicas e monarquias, tiranias e democracias, federações e Estados nacionais) em direção ao Estado espetacular integrado (Debord) ou “capital-parlamentarismo” (Badiou), que constitui o estágio extremo da forma-Estado. Assim como a grande transformação da primeira revolução industrial destruíra as estruturas sociais e políticas e as categorias de direito público do Ancién Régime, também os termos soberania, direito, nação, povo, democracia e vontade geral cobrem, agora, uma realidade que nada tem a ver com aquela que esses conceitos designavam, e quem continua acriticamente a deles se servir, não sabe, literalmente, do que está falando. A opinião pública e o consenso nada têm a ver com a vontade geral, como a “polícia internacional” que conduz hoje as guerras nada tem a ver com a soberania do jus publicum Europaeum. A política contemporânea é este experimento devastador que desarticula e esvazia por todo o planeta instituições e crenças, ideologias e religiões, identidade e comunidade, para tornar, então, a propô-los sob uma forma definitivamente nulificada.
2. O pensamento que vem deverá, por isso, tentar levar a sério o tema hegeliano-kojéviano (e marxiano) do fim da história, como o tema heideggeriano da entrada na Ereignis como fim da história do ser. Com respeito a esse problema, o campo é hoje dividido entre aqueles que pensam o fim da história sem o fim do Estado (os teóricos pós-kojévianos ou pós-modernos da realização do processo histórico da humanidade em um Estado universal homogêneo) e aqueles que pensam o fim do Estado sem o fim da história (os progressistas de diversas matrizes). Ambas as posições remanescem aquém de sua tarefa, pois pensar a extinção do Estado sem a realização do telos histórico é tão impossível quanto pensar uma realização da história na qual permanecesse a forma vazia da soberania estatal. Como a primeira tese demonstra-se de todo impotente diante da tenaz sobrevivência da forma estatal em uma transição infinita, também a segunda se choca com a resistência sempre mais viva de instâncias históricas (de tipo nacional, religioso ou étnico). As duas posições podem, de fato, conviver perfeitamente através da multiplicação de instâncias estatais tradicionais (isto é, de tipo histórico), sob a égide de um organismo técnico-jurídico de vocação pós-histórica.
Apenas um pensamento capaz de imaginar conjuntamente o fim do Estado e o fim da história, e de mobilizá-los um contra o outro, está à altura da tarefa. É o que procurou fazer, ainda que de modo absolutamente insuficiente, o último Heidegger, com a idéia de uma Ereignis, de um evento último, no qual o que é apropriado e subtraído ao destino histórico é o próprio restar-oculto do princípio historicizante, a própria historicidade. Se a história designa a própria expropriação da natureza humana em uma série de épocas e de destinos históricos, a realização e a apropriação do telos histórico que está em questão não significa que o processo histórico da humanidade é simplesmente composto em um arranjo definitivo (cuja gestão possa ser confiada a um Estado universal homogêneo), mas que a mesma anárquica historicidade que, restando pressuposta, destinou o homem vivente nas diversas épocas e culturas históricas, deve hoje devir como tal ao pensamento; ou seja, que o homem já se apropria de seu próprio ser histórico, de sua própria impropriedade. O tornar-se próprio (natureza) do impróprio (linguagem) não pode ser formalizado nem reconhecido segundo a dialética do Anerkennung,[3] porque é, na mesma medida, um devir impróprio (linguagem) do próprio (natureza).
A apropriação da historicidade não pode, por isso, possuir ainda uma forma estatal – não sendo, o Estado, outro senão a pressuposição e a representação do restar-oculto da arké histórica –, mas deve deixar campo a uma vida humana e a uma política não-estatal e não-jurídica, que permanecem ainda inteiramente por pensar.
3. Os conceitos de soberania e poder constituinte, que estão no âmago da nossa tradição política, devem, portanto, ser abandonados ou, ao menos, pensados do início. Eles assinalam o ponto de indiferença entre violência e direito, natureza e logos, próprio e impróprio e, como tais, não designam um atributo ou um órgão do ordenamento jurídico ou do Estado, mas sua própria estrutura original. A soberania é a idéia de que há um nexo indecidível entre violência e direito, vivente e linguagem, e que esse nexo tem necessariamente a forma paradoxal de uma decisão sobre o estado de exceção (Schmitt) ou de um bando (Nancy), no qual a lei (a linguagem) se mantém em relação com o vivente retirando-se dele, abandonando-o à sua própria violência e a seu próprio irrelato. A vida sacra, isto é, pressuposta e abandonada pela lei no estado de exceção, é o mudo portador da soberania, o verdadeiro sujeito soberano.
Desse modo, a soberania é a guardiã que impede que o limiar indecidível entre violência e direito, natureza e linguagem, venha à luz. Nós devemos, ao contrário, manter os olhos fixados sobre o que a estátua da justiça (que, como lembra Montesquieu, devia ser coberta no momento em que fosse declarado o estado de exceção) não deveria ver, que (como hoje é claro para todos) o estado de exceção é a regra, que a vida nua é imediatamente portadora da relação soberana e, como tal, ela é, hoje, abandonada a uma violência tanto mais eficaz quanto anônima e cotidiana.
Se ela é hoje uma potência social, deve ela ir até o fim de sua própria impotência e, declinando toda vontade tanto de pôr o direito quanto de conservá-lo, despedaçar por todo lugar a relação entre violência e direito, entre vivente e linguagem que constitui a soberania.
4. Enquanto o declínio do Estado deixa em toda parte subsistir seu envoltório vazio como pura estrutura de soberania e de domínio, a sociedade, em seu conjunto, é confiada irrevogavelmente à forma da sociedade de consumo e de produção orientada unicamente ao fim do bem-estar. Os teóricos da soberania política, como Schmitt, viam nisso o signo mais certo do fim da política. E, em verdade, as massas planetárias de consumidores (quando elas não recaem simplesmente nos velhos ideais étnicos ou religiosos) não deixam entrever nenhuma figura nova da polis.
Todavia, o problema que a nova política tem defronte é precisamente este: é possível uma comunidade política que seja ordenada exclusivamente à plena fruição da vida mundana? Mas não é esse, precisamente, olhando bem, o escopo da filosofia? Quando um pensamento político moderno nasce com Marsilio di Padova, este não se define propriamente por meio da retomada, com fins políticos, do conceito averroísta de “vida suficiente” e de “bem-viver”? Benjamin, também, no Frammento teologico-politico, não deixa dúvida quanto ao fato de que “a ordem do profano deve ser orientada à idéia de felicidade”. A definição do conceito de “vida feliz” (que, em verdade, não deve ser separado da ontologia, porque do “ser: nós não temos outra experiência que não a de viver”) resta como uma das tarefas essenciais do pensamento que vem.
A “vida feliz” sobre a qual deve fundar-se a filosofia não pode mais ser nem a vida nua que pressupõe a soberania para dela fazer seu próprio sujeito, nem a estranheza impenetrável da ciência e da biopolítica moderna que se busca, hoje, em vão sacralizar, mas, note-se, trata-se de uma “vida suficiente” e absolutamente profana, que atingiu a perfeição da própria potência e da própria comunicabilidade, e acerca da qual a soberania e o direito não promovem mais qualquer captura.
5. O plano de imanência no qual se constitui a nova experiência política é a expropriação da linguagem efetuada pelo Estado espetacular. Enquanto, de fato, no velho regime, a alienação da essência comunicativa do homem se substancializava em um pressuposto que servia de fundamento comum (a nação, a língua, a religião...), no Estado contemporâneo, essa mesma comunicabilidade, essa mesma essência genérica (ou seja, a linguagem) constitui-se em uma esfera autônoma na exata medida em que ela se torna o fator essencial do ciclo produtivo. O que impede a comunicação é, assim, a própria comunicabilidade; os homens são separados por isso que os une.
Isso, porém, quer dizer também que, desse modo, é nossa própria natureza linguística que nos vem ao encontro, revertida. Por isso (justamente porque ser expropriada é a possibilidade própria do Comum), a violência do espetáculo é tão destrutiva; mas, pela mesma razão, ela contém ainda qualquer coisa como uma possibilidade positiva que pode ser usada contra si mesma. A época que estamos por viver é, em verdade, também aquela na qual se torna pela primeira vez possível para os homens fazer experiência de sua própria essência linguística – não desse ou daquele conteúdo de linguagem, dessa ou daquela proposição verdadeira, mas do próprio fato de que se fala.
6. A experiência que está aqui em questão não tem nenhum conteúdo objetivo, e não é formulável em uma proposição sobre um estado de coisas ou sobre uma situação histórica. Ela concerne não a um estado, mas a um evento de linguagem; não concerne a esta ou àquela gramática, mas, por assim dizer, ao factum loquendi como tal. Ela deve construída como uma experiência que concerne à matéria mesma, ou à potência do pensamento (em termos spinozianos, uma experiência de potentia intellectus, sive de libertate).
O que está em jogo nesta experiência não é, de nenhum modo, a comunicação enquanto destino e fim específico do homem, ou como condição lógico-transcendental da política (como nas pseudo-filosofias da comunicação), mas a única experiência material possível do ser genérico (isto é, a experiência da “aparência” – Nancy – ou, em termos marxianos, do General Intellect), a primeira consequência que deriva é a subversão da falsa alternativa entre fins e meios, que paralisa toda ética e toda política. Uma finalidade sem meios (o bem ou o belo como fins em si) é, com efeito, tão alienador de uma medialidade que tem sentido apenas em relação a um fim. O que está em questão na experiência política não é um fim mais elevado, mas o próprio ser-na-linguagem como medialidade pura, o ser-em-um-meio como condição irredutível dos homens. Política é a exibição de uma medialidade, ela torna visível um meio como tal. Essa é a esfera não de um fim em si, nem de meios subordinados a um fim, mas a de uma medialidade pura e sem fim como campo da ação e do pensamento humano.
7. A segunda consequência do experimentum linguae é que, para além dos conceitos de apropriação e expropriação, o que convém pensar é, sobretudo, a possibilidade e a modalidade de um livre uso. A práxis e a reflexão política se movem, hoje, exclusivamente na dialética entre o próprio e o impróprio, em que o impróprio (como ocorre nas democracias industriais) impõe por toda parte seu domínio em uma irrefreável vontade de falsificação e de consumo, ou, como ocorre nos Estados integralistas ou totalitários, o próprio pretende excluir de si toda impropriedade. Se chamamos, ao revés, Comum (ou, como querem outros, igual) a um ponto de indiferença entre o próprio e o impróprio, isto é, qualquer coisa que não pode mais ser apreendida em termos de uma apropriação ou de uma expropriação, mas somente como uso, então o problema político essencial torna-se: “como se usa um comum?” (É, talvez, em qualquer coisa do gênero que Heidegger pensava quando formulava seu conceito supremo nem como apropriação nem como expropriação, mas como apropriação de uma expropriação).
Se conseguirem articular o lugar, os modos e os sentidos desta experiência do evento de linguagem como uso livre do comum e como esfera dos puros meios, as novas categorias do pensamento político – comunidade inoperosa,[4] aparência, igualdade, lealdade, intelectualidade de massa, povo por vir, singularidade qualquer – poderão dar uma forma à matéria política a que estamos defronte.
[1] NT: [Texto original: AGAMBEN, Giorgio. Note sulla politica. In: Mezzi senza fine. Note sulla politica. Bollati Boringhieri: Torino, 1996, p. 87-93].
[2] Advogado e professor. Mestrando em Filosofia e Teoria do Direito pelo Curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (CPGD/UFSC). Graduado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (FD/UFPR).
[3] NT: [Trata-se do conceito hegeliano de reconhecimento; remete à Fenomenologia do Espírito e à luta pelo reconhecimento].