(ingenuidade...)
Entremeados nas diferenças internas aos planos de organização do direito, há que se reconhecer a ingênua precedência teórica de Gustavo Zagrebelsky ao postular a constituição de um direito dúctil, e de uma dogmática fluida, baseados na pluralidade material de valores combinados já não mais segundo a constituição, mas segundo uma “política constitucional”. Não se trata apenas de reconhecer aí um direito flexível ou a decadência pura da lei. Mais que isso, a proposta de uma dogmática fluida – convenhamos, expressão de raro paroxismo –, é que encontramos, sob suas formas decaídas, menos sofisticadas, os objetos transcendentes que constituem a teoria contemporânea do direito; um discurso de miscibilidade dos objetos e, ao mesmo tempo, de modelagem, de fundamentações, de transcendências, das quais só nos é dado extrair cópias, semelhanças, imagens sem desvios; assim, a filosofia jurídica contemporânea não pode passar de um império das cópias, de um horizonte de representações sem realidade própria.
Norma fundamental, ordenamento jurídico, legitimação pela participação no processo decisório ou democrático-consensual de constituição social do direito, direito como conceito interpretativo, ou disciplina racional das regras de argumentação, ou ainda a decisão como momento em que forjamos Hércules, argumentamos racionalmente ou debelamos, schmittianamente, vez por todas, as ficções da legalidade; como não seria este um inventário dos objetos que recentemente furaram o plano de imanência de uma filosofia do direito mais ou menos contemporânea?
A idéia de uma dogmática fluida está muito longe de nos apresentar a uma contradição em termos, ou a um paroxismo insuperável na teoria do direito. Pelo contrário, o que vemos é uma série de reforçaduras conceituais que tentam debater-se, confrontar-se umas contra as outras; mas esse confronto é o que mantém unidos seus mais capilares pontos de contato.
Não meramente o fato de que a maioria dos planos de organização ata-se em pontos de singularidade – a decisão, a exceção e a soberania perpassam toda decisão, em Schmitt; mas, principalmente, a verificação de que toda a teoria contemporânea do direito continua a fazer aquilo que Nietzsche renegava: destruir um altar para construir outro em seu lugar.
Uma espécie de platonismo separa o direito de sua realidade, tornando-o modular, ideal, evanescente e, nessa medida, irreal. No fundo, todos os planos de organização da teoria do direito contemporâneo, do direito como norma, processo, interpretação e decisão, terminam por enformar uma estrutura jurídica que, permeada pelo poder, e disposta a servir como dispositivo de captura, resume-se ora à norma disciplinar, ora a um direito de soberania, que de nada mais são capazes senão continuar a tornar eficaz a fictícia relação do direito com a vida.
A norma, o processo, a interpretação, a decisão. O inventário, a paulatina escritura do que recolhe todos os objetos transcendentes: a própria transcendência que retira o direito de qualquer possibilidade de ter uma realidade. De repente, um clarão: a miscibilidade, a fluidez, a harmonia dos contrários em figuras de assustadora semelhança. Nunca foi tão necessário uma filosofia da diferença na filosofia do direito. Nunca foi tão urgente confrontar o mesmo, suas cópias e as fabulações da transcendência com uma filosofia da imanência.