A. Máquina persecutória
A cada vez que perguntamos sobre o
passado, tornamo-nos os protagonistas e os agentes de uma guerra de guerrilhas
pela univocidade do sentido dos signos que devem produzir
memória. É disso que se trata também no caso Cesare Battisti, cujo último
acontecimento – sua libertação a um tempo em que já estava submetido a uma
prisão clamorosamente ilegal no Brasil – reacendeu a polêmica acerca das
relações políticas e comerciais Brasil-Itália. Jornais italianos (aqui
e aqui,
por exemplo), Espanhóis
e Ingleses
deram conta de sua tardia liberação. Por sua vez, a mídia brasileira fez de
tudo; esforçou-se por demonstrar que a decisão do STF teria sido covarde e
politicamente submissa, mas também fanfarronou uma
falsa extradição de Battisti.
É certo que temos ouvido coisas muito
disparatadas; se, por um lado, fico contente que meus alunos, por exemplo, em
sua maioria filhos da classe média, questionem sobre a validade dos pedidos da
Itália – um questionar de uma generosidade crítica que felizmente os saca do
imaginário comum autoritário da classe média brasileira – por outro lado, tenho
ouvido muitas manifestações dentro dessa mesma classe média segundo as quais o
caso Battisti é interpretado como uma forma de chancela e assunção da
impunidade e, se assim for, logo se proclama que toda forma de impunidade é
moralmente odiosa.
Por absurdo que pareça, na blogosfera, há
até mesmo quem
se tenha levantado contra a impunidade gerada pela hipertrofia do “garantismo
penal brasileiro”. Dizê-lo é o maior dos absurdos lógicos, especialmente quando
se vê que a recente decisão do Supremo Tribunal Federal, que redundou na
soltura de Battisti, foi estritamente legalista. Por certo, Battisti, que,
legalmente, deveria ter sido libertado assim que Luis Inácio decidira por sua
não-extradição, permaneceu mais alguns meses encarcerado. Criticar a “impunidade”
que resulta das concessões humanitárias do “garantismo brasileiro” a Cesare
Battisti ou é sinal de completa ignorância ou o sintoma de que uma perversão
obsessiva presidiu a interpretação dos fatos. Desse tipo de perversão, muito
comum nas mídias e nas médio-classes, resultam quatro falácias que é preciso
desmontar como operação de uma guerra de guerrilha conceitual.
São as falácias, muitas vindas do
governo de Berlusconi e repetidas acriticamente pela mídia brasileira: 1) Battisti não é um perseguido
político; logo, Battisti é um criminoso comum; 2) Battisti teve um julgamento
justo e democrático na Itália; 3) A Itália só quer fazer justiça moral às
famílias das vítimas; 4) O Supremo Tribunal Federal negou a extradição de
Battisti por razões políticas.
B. Desmonte histórico: 1 e 2
Nos anos de chumbo italianos, caracterizados
pela tentativa da Europa Ocidental de conter o avanço do comunismo, Battisti
participou de um grupo armado de resistência de esquerda, o PAC, “Proletários
Armados pelo Comunismo”, grupo qualificado pela Folha
de São Paulo com o fácil e fluido emblema de “terrorista”. Sobre o signo do
terror, sobre o qual não me demoro, fala por mim o texto Alexandre
Nodari.
Battisti, por sua vez, sempre se
declarou inocente das acusações. Sabe-se que, na Itália do pós-68, proliferaram
medidas excepcionais; o próprio Estado Italiano chegou a planejar, financiar e
executar atos de terrorismo como parte da estratégia de tensão (para
compreender um pouco melhor o ambiente político italiano daquele tempo, vale
assistir à primeira metade do
documentário sobre Antonio Negri, que postei recentemente). Um dos
primeiros exemplares dessa estratégia de tensão, promovida pelo governo
italiano, foi um atentado à bomba na Piazza Milan Fontana, seguida de sua
atribuição a “grupos terroristas de esquerda”.
Um direito de polícia, técnica mais
manejável no controle das situações fluidas criadas pela resistência e no
combate aos grupos de esquerda italianos, só seria possível ao passo em que o
terror fosse generalizado e o medo passasse a investir todo o campo social. Eis
o que explica que o primeiro terrorista tenha sido, forçosamente, o próprio
Estado Italiano: em momentos como o das greves e reivindicações operárias
pós-68 na Itália, diante do reconhecimento da força dos movimentos pela
abolição do trabalho assalariado, o Estado italiano sabia que era preciso
implantar violência e, ao mesmo tempo, segurança pública, diz Antonio Negri.
Violência e segurança pública logo são
aparelhadas por medidas de exceção; disso, resultou que dezenas de milhares de
pessoas foram sumariamente presas, o tempo de prisão provisória (para investigação)
fora continuamente dilatado por meio de decretos, e assim “a lei” italiana, que
já desertara completamente os espaços formalmente democráticos de sua produção,
pôde combater as ações políticas da esquerda italiana. No plano processual
penal, medidas de exceção, como a Legge
Reali, suspendiam defesas processuais dos réus baseadas em nulidades – e por
aí afora...
C. Desmonte
atual: 3 e 4
Como prova a
negativa italiana em extraditar o banqueiro Salvatore Cacciola a pedido do
Brasil, nenhum tratado internacional acerca da bilateralidade da extradição
derroga a soberania do Chefe de Estado para emitir juízo de caráter político na
extradição de quem quer que seja. Ademais, no Brasil, em toda extradição
passiva, o STF está juridicamente limitado pelo Estatuto do Estrangeiro e pela
adoção legislativa do sistema
de contenciosidade limitada, o que implica que o STF não pode manifestar-se
sobre o conteúdo político da decisão de extradição, mas apenas emite juízo de
legalidade acerca do pedido de extradição. Em se tratando do STF, que já
pronunciou decisões com
este teor, qualquer decisão em favor da eficácia da legalidade é uma
conquista institucional na manutenção do verdadeiramente frágil Estado de
Direito no Brasil. No caso Battisti, a tese que prevaleceu, e que resultou na
liberação do extraditando, seguiu simplesmente os ditames da legalidade – coisa
rara se considerarmos o Olimpo de onde vem.
De seu turno, a Itália
anuncia que pretende recorrer a Haia, pois a decisão brasileira de não
extraditar Battisti “não levou em consideração a expectativa legítima de que se
faça justiça, em particular para as famílias das vítimas de Battisti”, declarou
Silvio Berlusconi. Já Frattini, chefe da Diplomacia Italiana, afirmou que, ao
não extraditar Battisti, o Brasil “ofende o direito à justiça das vítimas dos
crimes cometidos por Battisti e está em contradição com as obrigações presentes
nos acordos internacionais que unem os dois países".
Se a estranha obstinação italiana em
executar a pena de prisão perpétua contra Battisti não comprovar que Battisti é
um perseguido político – especialmente em se tratando de um
país cuja justiça é tão licenciosa com crimes de seus políticos de primeiro
escalão (outros exemplos: aqui,
aqui
e aqui)
– nada será capaz de fazê-lo.
Se diante da ética da legalidade todo
crime tem a mesma importância, pois ameaça a higidez da ordem legal (dizem os moralistas,
os punitivistas, os classe-mídia...), vale deixá-los com dois dos dilemas
morais que tanto apreciam:
1) Por que se obstinar tanto em justiciar
as vítimas de Battisti, mas as de Berlusconi, nem tanto?
2) Por que o STF pôde compreender que
Battisti é extraditável “por não ser criminoso político” – pois teria cometido
crimes de sangue –, enquanto a
mesma caneta que o considera extraditável em tais termos anistia agentes do
Estado brasileiro considerando seus crimes comuns (assassinato, desaparição
forçada de pessoas, estupro, tortura...) não como crimes de sangue, mas como “crimes
conexos a atos de motivação política”? Eis o dilema lógico que emerge explícito
da estrutura de um dos poucos votos corajosos na ADPF 153 (conhecida como a
ADPF “da Lei da Anistia”), o do Ministro
Ricardo Lewandowski, centrado sobre a jurisprudência do STF em matéria do
significado jurídico do termo “crime político”.
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