O inatual: É urgente produzir memória

30 março, 2011





A partir do movimento de blogagem coletiva pelo desarquivamento dos documentos da ditadura militar, o #DesarquivandoBr - já em sua terceira edição -, a blogosfera e a twittosfera passaram compor um novo campo de nossas guerras de guerrilha pelo direito à verdade e à memória no Brasil pós-ditadura. Em um tempo em que se tornou lugar comum afirmar que vivemos em uma democracia amadurecida, que superou historicamente suas agruras ditatoriais, talvez fosse o caso de fazer ressoar uma espécie de resistência incômoda ao peso de um presente violentamente pacificado, e que já não podemos suportar sem envergonhar-nos: “No olvidamos, no perdonamos, no nos reconciliamos”, é preciso repetir sempre, e hoje.

Há qualquer coisa que, em nós, murmura o tom de um imemorial que parece acossar-nos desacomodando-nos. Repetimos o refrão da democracia liberal, do capitalismo de consumo, da meritocracia paradoxal que reserva os verdadeiros privilégios apenas para poucos; por vezes gritamos por memória, mas sem saber exatamente do que se trata: na raiz, memória é puro imemorial, real inconsciente.

Um dos grandes desafios do pensamento de esquerda no Brasil contemporâneo é auxiliar a compreender que o liberalismo brasileiro carrega marcas autoritárias. Enquanto praticamente todos os países latino-americanos instauram comissões de verdade e justiça e apuram os fatos, narram suas histórias políticas recentes e punem aqueles que cometeram graves violações a Direitos Humanos utilizando-se do aparato burocrático de Estado, no Brasil, os resistentes políticos – em grande parte de esquerda –, têm de conviver com as alcunhas de “assassinos”, “ladrões de banco”, “terroristas” etc. Ao lado disso, recentes declarações racistas, sexistas e intolerantes de um ex-militar são aplaudidas pela grande mídia e ressalvadas no seio do direito “democrático e inviolável” de opinião; quando tanto, são tachadas de “polêmicas” ou “empáfias”, as declarações do Deputado Boçalnaro.

Mas por que nosso presente autoritário teria algo a ver com nosso passado autoritário? O direito à memória e à verdade não será encontrado apenas em arquivos, ele é produto das narrativas, criações e resistências coletivas, de uma potência impessoal de apreensão das dimensões imemoriais de um povo, e não uma verdade mais essencial que retornaria do fundo das coisas para atormentar-nos. Com o desarquivamento é todo um novo campo de trabalhos que se abre. A potência de narrá-lo, de utilizá-lo livremente para resistir àquilo que um tempo tem de insuportável, é o que deve ser afiançado pelo desarquivamento. Nenhum passado empoeirado tem valor em si mesmo; queremos, como Nietzsche, usar livremente a história para servir à vida, mas para isso, não basta viver, bestialmente, o instante presente, que parece durar uma eternidade imóvel. É urgente que nos tornemos intempestivos.

Quando compreendermos que, mais do que resistir ao passado, é o passado que, ao coexistir conosco em toda a estreita dimensão da atualidade, faz com que esse presente ignóbil ao qual é preciso resistir possa passar, compreenderemos que a memória não condiz com uma verdade mais essencial que seria encontrada no fundo das coisas. Compreenderemos que não podemos falar em herança autoritária, pois nunca deixamos de sê-lo, verdadeiramente; compreenderemos que ser tolerante com os intolerantes, como o Deputado Boçalnaro, não é sinal de maturidade democrática, mas a reafirmação de um compromisso com o autoritarismo político do qual nunca deixamos de ser signatários. Compreenderemos, outrossim, que não vivemos autênticas democracias ou rupturas constitucionais, mas, desde 1988, vivemos uma democracia mitigada: nossa democracia é pós-ditatorial.

É preciso assumir o risco. É preciso arriscar a vida. É urgente produzir memória. Só ao preço de encarar o fundo de horror e morte no fundo de nossas instituições democráticas é que poderemos, enfim, arrostando a morte, resistindo a ela - como André Malraux dizia que só as obras de arte o podem -, pensar uma comunidade que vem...



Direito e imanência: o que é pensar a diferença?

26 março, 2011



Índice. I Imagens da Filosofia do Direito; II Signos e afectos: “aquilo que dá a pensar”; III A diferença à enésima potência; IV Notas; V Referência


Resumo. O presente texto é fruto da comunicação realizada na mesa “Direito e pós-estruturalismo”, do I Colóquio Baiano de Filosofia e Direito (“Direito e Filosofia: Conversações”), organizado pelo curso de Graduação em Direito da Universidade Católica de Salvador (UCSAL/BA). Partindo de uma breve cartografia da condição da Filosofia do Direito contemporânea, bem como de suas principais influências modernas, pretende-se elucidar uma via alternativa à Filosofia contemporânea do Direito baseada na filosofia da diferença e da crítica à representação que atravessam por toda a obra de Gilles Deleuze. Sem adiantar conclusões sobre a viabilidade da presente proposta à luz da Filosofia do Direito, o presente ensaio, de pequeno fôlego, afigura-se uma investida em direção à renovação do direito a partir de um pensamento da diferença. Trata-se, pois, de uma etapa antecedente e, no entanto, necessária, àquilo que – evocando uma tradição renegada pela Filosofia do Direito do ocidente – chamei outrora “Filosofia do Direito na imanência” ou, simplesmente, “Direito na Imanência”.

Palavras-chave. Diferença; Pós-Estruturalismo; Direito; Pensamento.


Um presente reunido àquilo que ele pode (não)

19 março, 2011



1. O que pode um instante? - Deleuze tentava responder a essa pergunta em 1968, em Diferença e Repetição. Como compreender o presente como qualquer coisa que difere de si, como singularidade, como diferença em si e para consigo mesmo? A resposta de Deleuze é simples: suscitando devires no presente, suscitando acontecimentos – e Deleuze-Guattari fizeram lembrar – prudentemente, pois nunca sabemos, de início, até onde nos levará uma linha de fuga. Um dos princípios da micropolítica deleuze-guattariana teria sido precisamente este: uma linha de fuga pode suscitar devires ou converter-se em linha de abolição absoluta. Nunca estamos completamente a salvo; portanto, prudência.


2. A salvação não vem. - O erro de toda a política teria sido ter sido atravessada pela teologia. Não há políticas salvíficas: há micropolíticas travando combates-entre e guerras de guerrilha com políticas de estado. Não há políticos messiânicos: políticos são, por definição, os que testemunham que o messias não retornará.


3. Trevas, luz. - Os passos de gigante dados por Agamben ou Negri na direção de reconectar ontologia e política parecem, hoje, longe de lográ-lo. Esse é, ainda, um dos grandes problemas da esquerda contemporânea: passar a ler a realidade das práticas vinculadas à da teoria. A cisão entre teoria e prática é uma das primeiras a cair no crepúsculo da modernidade. Nós, contudo, continuamos a mirar a obscuridade desta e de outros dualismos que nos afetam da mesma forma como a sobrevivência incandescente de uma estrela que há muito se apagou. Sua luz é a prova de que apenas as trevas que as envolvem nos concernem.


4. Uma resposta - Hugo Albuquerque desafiou-me amavelmente com um sintético e bonito texto, “Uma esquerda para o aqui-agora”, em resposta a meu recente “Uma esquerda para depois de amanhã”. Portanto, amavelmente, tal como imagino que devesse dar-se a prática tão política do pensamento ligado à ação entre os amigos na "ágora", ofereço nesse pequeno texto minha resposta às considerações do querido amigo e intercessor.
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 O que significa uma esquerda para depois de amanhã? Minha resposta envolve-se aparentemente em um paradoxo que é preciso compreender: significa uma esquerda como quisera Hugo “para o aqui-e-agora”. Até hoje a esquerda houvera sido, sempre, cronologicamente, uma esquerda para depois de amanhã, incumbida de realizar o absoluto na história. No entanto, o depois de amanhã da esquerda que proponho é tão póstumo e atual quanto o próprio contemporâneo. Se quisermos colocá-lo sob o signo do presente, façamo-lo, mas apenas naquilo que o instante tem de virtual e potente, apenas naquilo que permite a um presente diferir em si e para si mesmo.
Uma esquerda para depois de amanhã, compreendida sob o signo do intempestivo, reúne o presente às potências do futuro. Nesse sentido, a inatualidade esquiva do Neutro barthesiano permite burlar os dualismos, suspendê-los, desativá-los. Só a esse preço poderemos olhar o sintoma no fundo de sua tão atual indeterminação.
A pergunta que nosso amigo comum, Bruno Cava – escritor e editor do Quadrado dos Loucos – propõe é “como devir esquerda?”. Precisamente a pergunta que está no fundo da proposta de Uma esquerda para depois de amanhã. Sinto, mas não me ressinto por isso, que estamos a falar da mesma coisa, e a pergunta que Bruno propõe funciona como uma espécie de catalisador de toda a discussão. A esquerda, como diz Cava, é sempre um devir. Ninguém é essencialmente de esquerda; a esquerda não se submete às políticas de estado, está sempre do lado das políticas minoritárias, da micropolítica, roendo as engrenagens ou, para usar uma expressão de Adorno, apressando os desabamentos.
Em uma esquerda para depois de amanhã, e com relação à suspensão dos dualismos, falo, de fato, da superação do que Bruno chama em seu texto “uma certa esquerda”, não da superação de uma esquerda em devir. Mas reconhecer como a língua e os dualismos podem ser enganadores são, por outro lado, condição necessária para compreender uma esquerda que recolhe o “aqui-e-agora” hugoalbuquerquiano e, cavianamente, coloca-se-o em devir.
Acredito que é só uma esquerda para depois de amanhã (intempestiva, inatual, sempre já em devir) aquela capaz de reunir o presente àquilo que ele pode. Estou certo de que devemos temer aquilo que, em breve, chamaremos de nova esquerda brasileira. Esse novo já surge codificado, sem singularidade, redentor, salvífico, “alternativo”, identificado ou, ao menos, referencializado pelo paradigma.


5. Neutro, potência e poder não... - Uma esquerda para depois de amanhã – aquela que, no presente, o reúne àquilo que ele pode (e o reúne também à sua potência de não) – não é uma esquerda cronologicamente tardia, que só surgiria depois... ela não nos salva nem redime, mas burla, esquiva, cria espaço-tempo, produz pensamento, suscita devires, faz do pensamento a prática mais política de resistência àquilo que, no presente, permanece insuportável.
No interior do Neutro barthesiano, não se anula o conflito ou a polaridade, mas se suspende. A suspensão barthesiana é o que, hoje, torna possível reunir um presente àquilo que ele pode, bem como àquilo que ele pode não... (a relação essencial de toda potência com seu próprio poder não).
A operação de poder empreendida por uma “nova esquerda brasileira”, kassabista e perversa com os signos, não consiste tanto em separar a esquerda daquilo que ela pode, mas em separar a esquerda daquilo que ela pode não. Assim, realizar o Neutro na política já não se trata de um problema. Nunca houve política, ou devir-esquerda, senão em relação com aquilo que reconecta as potência da esquerda com as potências de seu mais próprio poder não. Não se trata de realizar o Neutro na política; a política é que sempre celebrou, como micropolítica, as núpcias entre Neutro e Devir.
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Ensaio: Os umbrais do humano

17 março, 2011




Hoje à tardezinha, quando chegava de Salvador (e continuava, sozinho, a frutificar os muitos bons encontros que lá tive, com a gente, a música, o sol e a cidade), tive a feliz notícia de que fora publicado o último número do ano de 2010 da Revista Prisma Jurídico, revista de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Universidade Nove de Julho.
Trata-se do segundo artigo que publico em Prisma, que – medindo-se com os desafios de pensar um direito hoje seqüestrado pela técnica - tem uma proposta ao mesmo tempo árida, competente e audaciosa: ser, simplesmente, uma revista de Filosofia e Teoria Geral do Direito. Contando com os trabalhos editorias do jurista e poeta Pádua Fernandes, que, vale lembrar, escreve O palco e o mundo, tenho a sensação de que Prisma é uma das poucas revistas que ainda travam com seriedade e sinceridade acadêmicas essa fatigante batalha.
Uma das frases mais célebres e, é certo, engraçadas de Martin Heidegger teria sido: “a ciência não pensa”. Eis o que criou certo ódio nos cientistas... Pessoalmente, gostaria de ver se os advogados têm brios: a técnica, diríamos, não pensa, não pode pensar; nas faculdades de direito, a técnica jurídica é, precisamente, o aparelho de captura das menores possibilidades de pensamento. Gostamos de homens mecânicos; um aluno de direito é uma potência a ser docilizada, tornada servil, mantida no obscuro. Prisma, no entanto, é meio indomável, e pela mais singela das razões: ser uma revista de Filosofia e Teoria Geral do Direito, nadando à contracorrente, à deriva inocente do pensar...
Àqueles que estudam as interfaces entre Direito e Bios (do biodireito à biopolítica) têm, nas duas edições de 2010, um material a um só tempo vasto e vário para o estudo e a consulta. No segundo número, chamam-me à atenção especialmente "A desobediência biopoética e o direito de resistênciaentrevista com Julián Axat", realizada por Pádua Fernandes, bem como o artigo de Axat, Una voz no tan menor: Apuntes sobre jóvenes infractores, performances y estrategias defensivasPolicía, derecho administrativo y inmigración en Colombia, de Miguel Alejandro Malagón Pinzón, e A ideia barroca como direito e literatura na obra de Walter Benjamin, de Virginia Juliane Adami Paulino - sem falar nas duas resenhas de Pádua Fernandes, que encerram o volume.
Neste número, colaborei com um pequeno ensaio, “Os umbrais do humano: o homem como dispositivo biopolítico e o animal contemporâneo”, a cuja leitura convido os convivas de A Navalha de Dalí.
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@_mdcc

* Os umbrais do humano: o homem como dispositivo biopolítico e o animal contemporâneo

 Resumo
De acordo com a detecção de Giorgio Agamben, o dispositivo antropológico atualmente em obra na cultura ocidental opera, desde Aristóteles, recortando uma forma de vida humanamente predicada (bios) sobre a vida nua (zoé). Essa operação, qualificada pelo paradoxo e pela exceção que engendra, anima, em larga medida, a crítica que Agamben endereça às Cartas de Direitos Humanos em Al di là dei diritti del’uomo. Nas trilhas de uma tradição que remonta a Nietzsche e é legada a Foucault, Deleuze, Derrida e Agamben, traduzir-se-ia um pensamento que, ao operar no seio do dispositivo antropológico, busca desvencilhar-se do homem – seja pelo além-do-homem, seja por uma micropolítica de intensidades sem sujeito. O aporte dessas filosofias apela às indeterminações dos devires, mas também demonstra a negatividade que o conceito de homem opera em relação à vida dos homens quando se compreende a política como a potência de variação das formas de vida.


Uma esquerda para depois de amanhã

07 março, 2011




O sintoma

Há alguns dias, noticiou-se que Gilberto Kassab, atual prefeito de São Paulo, estaria em vias de criar um “novo partido de esquerda”; mais cínico e, ao mesmo tempo, mais cômico, foi encontrar a importante referência na matéria de Folha Poder sobre o capital político – sem dúvida relevantíssimo – que Kassab amealhara ao novo partido: Kiko e Leandro, do (tel que J’espère “falecido” grupo) KLB.
            Deixando a zombaria de lado, o fato não parece poder ser interpretado apenas como um sintoma, sem dúvida derrisório, da decadência da esquerda no Brasil. Se compreendido em um horizonte mais amplo, o fato tão insólito de uma figura política tão anódina como Kassab querer vincular a seu nome a etiqueta “esquerda” deve mostrar-nos algo mais do que o simples esgotamento do sentido político que envolve o signo.
            Abramos o horizonte, portanto. Há pouco saíram as primeiras pesquisas à sucessão presidencial francesa, realizadas pela internet. A despeito de a própria matéria da BBC Brasil referir uma crítica comum à metodologia da pesquisa via internet, não me surpreenderia se o resultado efetivamente condisser com a realidade francesa. Em primeiro plano, porque a orientação de centro-direita de Nicolas Sarkozy há muito tempo abandonou a referência centrista, trabalhista e multicultural que lhe rendeu a maioria dos votos dos franceses; em segundo plano, porque certos atos governamentais muito frugais – abertamente justificados pela iminência do terror em França – demonstram claramente uma guinada à direita.
            Minha tese, todavia, não é a da contemporânea corrupção dos referenciais de esquerda. Certos setores do governo Dilma – como, por exemplo, o Ministério da Cultura, chefiado por Ana (dita ironicamente “a rainha”) de Hollanda e sua intolerante e ultrapassada política acerca dos direitos autorais e de copyright imprimiram ao recente governo de Dilma a marca simbólica de que “estamos aqui para gerir conquistas” e, também, para retroceder em muitas delas, como o caso da política de cultura.
            Enquanto a grande mídia fala aos quatro ventos, desde a emblemática derrota de José (bolinha de papel) Serra, na inexistência de uma oposição de centro-direita e de direita articulada no Brasil, isso só pode ser verdadeiro porque o governo tomou o lugar da oposição. O próprio Partido dos Trabalhadores abdicou de uma série de postulados políticos e ideológicos constitutivos de seu programa original e, a bem da “governabilidade”, centralizou seu tom na maior parte dos temas. A antítese mais sensível das últimas eleições – e excluo Marina porque acredito que Marina representara uma terceira via que foi capaz de romper com essa polaridade -, implicada nas campanhas Dilma x Serra, mostrou a quem quisesse ver o debate vazio e de ódio travado entre uma coligação de centro (aquilo a que se reduziu a faixa petista-pemedebista no governo federal hoje) e uma coligação de extrema-direita (a coligação demo-tucana) que reviveu, inclusive, os (nem tão) velhos ares da perseguição religiosa amparada em uma rede de informação e de contra-informação digna de um verdadeiro aparato de guerra.
            À primeira vista, e sem pensar, a tese é fácil: assistimos a uma escalada mundial das políticas fascistas, uma revivescência da extrema-direita inclusive em governos cosidetti “populares”. A constatação não atinge o fundo da questão que, parece-me, encontra-se: (1) na compreensão de que a decadência da esquerda e da direita no Brasil, e a instantânea emulsão de uma na outra, não significa nem a ausência de oposição nem a escalada da direta, mas sintomas locais de uma dissolução global da polaridade – demasiadamente moderna – “esquerda-direita”; (2) na urgente e atual necessidade de superação das ambivalências para explicar a política. Não foi a esquerda, ou um pensamento de esquerda, que se tornou impossível. O problema está em reduzir a esquerda a uma etiqueta esvaziada de sentido – como quer o kassabismo cínico – ou mesmo creditar à esquerda uma consistência que se esgota em um atual e precário estado de coisas que a assim chamada esquerda brasileira encarna.


Horizontal, vertical, Neutro: a esquerda impossível

            A esquerda, portanto, não se tornou impossível, e tampouco deve ser confundida com os valores que aqueles que se proclamam “de esquerda” fazem ressoar como uma espécie de termo final de toda política, em que direita e esquerda não apenas misturam-se mas, algo ontologicamente mais significativo, indeterminam-se.
            Em meados da década de noventa, Giorgio Agamben escrevia suas “Notas sobre Política”, que traduzi aqui. Nelas, Agamben diagnosticava que os conceitos tradicionais da filosofia política, como “soberania, direito, nação, povo, democracia e vontade geral”, utilizados acriticamente, ocultariam uma essencial mudança na realidade: a esclada do estado de exceção como paradigma de governo. As polaridades dicotômicas e a facies tradicionalmente dualista da política moderna parecem superadas pela vitória da democracia capitalista espetacular em escala planetária.
Se o Estado parece ser superado pelo modelo espetacular, como insiste Agamben, e é sensível que todo conceito de democracia reproduzido como valor universal seja o da democracia liberal do capitalismo cognitivo, como quiseram Negri e Hardt, tornou-se necessário pensar a política para muito além de seu esgotado presenteísmo. Uma esquerda para depois de amanhã não se conjuga no interior de um dualismo, porque não pode submeter-se a eles. Uma esquerda para depois de amanhã não é filha de seu tempo, mas de um tempo porvir. Deleuze costumava dizer que falta o povo, mas também falta o tempo, falta a resistência ao presente – e tal resistência só poderia consumar-se ao preço de combatermos o atual estado de coisas. Se o atual estado de coisas ainda utiliza cinicamente os conceitos de direita e esquerda para ocultar as indeterminações e a superação das polaridades, seria esse o momento para buscar outras orientações na esquerda: não a fim de restitui-la a um pensamento pretensamente mais original, mas a fim de fazermos da política o terreno de invenção de um "novo" completamente colonizado pelos signos vazios do discurso eleitoral.
Para isso, suscitar novos devires à esquerda significaria: (1) deslocar-se de todo referencial horizontal e totalizante da política: pensar uma esquerda para depois de amanhã implica fugir aos dualismos; (2) revolver o sentido da esquerda em um sentido vertical: ao fundo, em direção à arché, a fim de libertar o próprio Marx da doxa dos marxistas; acima dos referenciais horizontais, em direção à superação da esquerda tradicional por uma esquerda para depois de amanhã. (3) No entanto, retornar à arché marxiana ou superar os dualismos políticos – as duas primeiras orientações dessa esquerda que vem – são operações ainda demasiadamente presas à tarefa niilista e, por que não dizer, adorniana, de apressar o desabamento de um certo pensamento de esquerda que, hoje, pouco significa, porque já não pode ser vertido em práxis. Mesmo a confortável posição do marxista teorético que, querendo ver a práxis histórica e revolucionária, recai comumente na impotente crítica à práxis de centro-esquerda fundada no possível, também é algo a ser ultrapassado por uma esquerda para depois de amanhã.
Ela não se funda, porém, em qualquer utopia. A esquerda para depois de amanhã não faz apelo a um futuro que não vem: ela é o chamado, baixo e vulgar, a resistir ao presente, a entranhar-se nele, a cavar um pouco de virtual, feito de memória ou de futuro, no dorso de um presente que já os envolve e implica necessária e contingentemente. Nem horizontal, nem vertical – que são ainda trabalhos do negativo (a arché, a superação quase hegeliana); uma esquerda para depois de amanhã é negligente com os dualismos codificadores da diferença e, só assim, introduz a diferença em uma política da diferença: a única orientação que vem é a do desejo de Neutro barthesiano: “suspensão (epokhé) das ordens, leis, cominações, arrogâncias, terrorismos, intimações, exigências, querer agarrar. [...] recusa do puro discurso de contestação: suspensão do narcisismo: não ter mais medo das imagens (imago): dissolver sua própria imagem” (Barthes, O Neutro, 2003, p. 30).
Barthes costumava dizer que, enquanto o desejo é sempre vendável, pois todo desejo está sempre em comércio com os outros, o Neutro – escrito assim, com maiúscula – constituiria "o invendável". Muito distante das imagens inativas de imparcialidade e indiferença, o Neutro barthesiano (francês e, portanto, burguês demais para os hirsutos marxistas originais que já não sabem mais o que fazer com seus conceitos e com “a ascendência planetária dos novos fascismos de Estado”), poderia tirar a esquerda contemporânea da comodidade de seu niilismo.
Trata-se de um Neutro produtivo, ativo, afastado, enfim, da imagem que a cultura ocidental construiu para ele: a esterelidade indiferente. Só se constrói um significado negativo para um signo como o Neutro a fim de separar uma força daquilo que ela pode: subversão, reversão, boa distância... O Neutro, no entanto, é a própria diferença: como quisera Pasolini, "uma desesperada vitalidade" (Barthes, O neutro, p. 168). Para muito além de toda polaridade: macho-fêmea, direita-esquerda, bem-mal, original-cópia: o Neutro encarna a singularidade de uma relação atenta e não-arrogante com o presente – o que convém erigir a princípio de uma esquerda impossível, capaz de a-fundar os cinismos de esquerda e de direita, pois já não é mais solidária a eles: essa esquerda impossível com que nós sonhamos, uma esquerda para depois de amanhã...

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