O sintoma
Há alguns dias, noticiou-se que Gilberto Kassab, atual prefeito de São Paulo, estaria em vias de criar um “novo partido de esquerda”; mais cínico e, ao mesmo tempo, mais cômico, foi encontrar a importante referência na matéria de Folha Poder sobre o capital político – sem dúvida relevantíssimo – que Kassab amealhara ao novo partido: Kiko e Leandro, do (tel que J’espère “falecido” grupo) KLB. Deixando a zombaria de lado, o fato não parece poder ser interpretado apenas como um sintoma, sem dúvida derrisório, da decadência da esquerda no Brasil. Se compreendido em um horizonte mais amplo, o fato tão insólito de uma figura política tão anódina como Kassab querer vincular a seu nome a etiqueta “esquerda” deve mostrar-nos algo mais do que o simples esgotamento do sentido político que envolve o signo.
Abramos o horizonte, portanto. Há pouco saíram as primeiras pesquisas à sucessão presidencial francesa, realizadas pela internet. A despeito de a própria matéria da BBC Brasil referir uma crítica comum à metodologia da pesquisa via internet, não me surpreenderia se o resultado efetivamente condisser com a realidade francesa. Em primeiro plano, porque a orientação de centro-direita de Nicolas Sarkozy há muito tempo abandonou a referência centrista, trabalhista e multicultural que lhe rendeu a maioria dos votos dos franceses; em segundo plano, porque certos atos governamentais muito frugais – abertamente justificados pela iminência do terror em França – demonstram claramente uma guinada à direita. Minha tese, todavia, não é a da contemporânea corrupção dos referenciais de esquerda. Certos setores do governo Dilma – como, por exemplo, o Ministério da Cultura, chefiado por Ana (dita ironicamente “a rainha”) de Hollanda e sua intolerante e ultrapassada política acerca dos direitos autorais e de copyright imprimiram ao recente governo de Dilma a marca simbólica de que “estamos aqui para gerir conquistas” e, também, para retroceder em muitas delas, como o caso da política de cultura. Enquanto a grande mídia fala aos quatro ventos, desde a emblemática derrota de José (bolinha de papel) Serra, na inexistência de uma oposição de centro-direita e de direita articulada no Brasil, isso só pode ser verdadeiro porque o governo tomou o lugar da oposição. O próprio Partido dos Trabalhadores abdicou de uma série de postulados políticos e ideológicos constitutivos de seu programa original e, a bem da “governabilidade”, centralizou seu tom na maior parte dos temas. A antítese mais sensível das últimas eleições – e excluo Marina porque acredito que Marina representara uma terceira via que foi capaz de romper com essa polaridade -, implicada nas campanhas Dilma x Serra, mostrou a quem quisesse ver o debate vazio e de ódio travado entre uma coligação de centro (aquilo a que se reduziu a faixa petista-pemedebista no governo federal hoje) e uma coligação de extrema-direita (a coligação demo-tucana) que reviveu, inclusive, os (nem tão) velhos ares da perseguição religiosa amparada em uma rede de informação e de contra-informação digna de um verdadeiro aparato de guerra. À primeira vista, e sem pensar, a tese é fácil: assistimos a uma escalada mundial das políticas fascistas, uma revivescência da extrema-direita inclusive em governos cosidetti “populares”. A constatação não atinge o fundo da questão que, parece-me, encontra-se: (1) na compreensão de que a decadência da esquerda e da direita no Brasil, e a instantânea emulsão de uma na outra, não significa nem a ausência de oposição nem a escalada da direta, mas sintomas locais de uma dissolução global da polaridade – demasiadamente moderna – “esquerda-direita”; (2) na urgente e atual necessidade de superação das ambivalências para explicar a política. Não foi a esquerda, ou um pensamento de esquerda, que se tornou impossível. O problema está em reduzir a esquerda a uma etiqueta esvaziada de sentido – como quer o kassabismo cínico – ou mesmo creditar à esquerda uma consistência que se esgota em um atual e precário estado de coisas que a assim chamada esquerda brasileira encarna.
Horizontal, vertical, Neutro: a esquerda impossível
A esquerda, portanto, não se tornou impossível, e tampouco deve ser confundida com os valores que aqueles que se proclamam “de esquerda” fazem ressoar como uma espécie de termo final de toda política, em que direita e esquerda não apenas misturam-se mas, algo ontologicamente mais significativo, indeterminam-se.
Em meados da década de noventa, Giorgio Agamben escrevia suas “Notas sobre Política”, que traduzi aqui. Nelas, Agamben diagnosticava que os conceitos tradicionais da filosofia política, como “soberania, direito, nação, povo, democracia e vontade geral”, utilizados acriticamente, ocultariam uma essencial mudança na realidade: a esclada do estado de exceção como paradigma de governo. As polaridades dicotômicas e a facies tradicionalmente dualista da política moderna parecem superadas pela vitória da democracia capitalista espetacular em escala planetária. Se o Estado parece ser superado pelo modelo espetacular, como insiste Agamben, e é sensível que todo conceito de democracia reproduzido como valor universal seja o da democracia liberal do capitalismo cognitivo, como quiseram Negri e Hardt, tornou-se necessário pensar a política para muito além de seu esgotado presenteísmo. Uma esquerda para depois de amanhã não se conjuga no interior de um dualismo, porque não pode submeter-se a eles. Uma esquerda para depois de amanhã não é filha de seu tempo, mas de um tempo porvir. Deleuze costumava dizer que falta o povo, mas também falta o tempo, falta a resistência ao presente – e tal resistência só poderia consumar-se ao preço de combatermos o atual estado de coisas. Se o atual estado de coisas ainda utiliza cinicamente os conceitos de direita e esquerda para ocultar as indeterminações e a superação das polaridades, seria esse o momento para buscar outras orientações na esquerda: não a fim de restitui-la a um pensamento pretensamente mais original, mas a fim de fazermos da política o terreno de invenção de um "novo" completamente colonizado pelos signos vazios do discurso eleitoral.
Para isso, suscitar novos devires à esquerda significaria: (1) deslocar-se de todo referencial horizontal e totalizante da política: pensar uma esquerda para depois de amanhã implica fugir aos dualismos; (2) revolver o sentido da esquerda em um sentido vertical: ao fundo, em direção à arché, a fim de libertar o próprio Marx da doxa dos marxistas; acima dos referenciais horizontais, em direção à superação da esquerda tradicional por uma esquerda para depois de amanhã. (3) No entanto, retornar à arché marxiana ou superar os dualismos políticos – as duas primeiras orientações dessa esquerda que vem – são operações ainda demasiadamente presas à tarefa niilista e, por que não dizer, adorniana, de apressar o desabamento de um certo pensamento de esquerda que, hoje, pouco significa, porque já não pode ser vertido em práxis. Mesmo a confortável posição do marxista teorético que, querendo ver a práxis histórica e revolucionária, recai comumente na impotente crítica à práxis de centro-esquerda fundada no possível, também é algo a ser ultrapassado por uma esquerda para depois de amanhã.
Ela não se funda, porém, em qualquer utopia. A esquerda para depois de amanhã não faz apelo a um futuro que não vem: ela é o chamado, baixo e vulgar, a resistir ao presente, a entranhar-se nele, a cavar um pouco de virtual, feito de memória ou de futuro, no dorso de um presente que já os envolve e implica necessária e contingentemente. Nem horizontal, nem vertical – que são ainda trabalhos do negativo (a arché, a superação quase hegeliana); uma esquerda para depois de amanhã é negligente com os dualismos codificadores da diferença e, só assim, introduz a diferença em uma política da diferença: a única orientação que vem é a do desejo de Neutro barthesiano: “suspensão (epokhé) das ordens, leis, cominações, arrogâncias, terrorismos, intimações, exigências, querer agarrar. [...] recusa do puro discurso de contestação: suspensão do narcisismo: não ter mais medo das imagens (imago): dissolver sua própria imagem” (Barthes, O Neutro, 2003, p. 30).
Barthes costumava dizer que, enquanto o desejo é sempre vendável, pois todo desejo está sempre em comércio com os outros, o Neutro – escrito assim, com maiúscula – constituiria "o invendável". Muito distante das imagens inativas de imparcialidade e indiferença, o Neutro barthesiano (francês e, portanto, burguês demais para os hirsutos marxistas originais que já não sabem mais o que fazer com seus conceitos e com “a ascendência planetária dos novos fascismos de Estado”), poderia tirar a esquerda contemporânea da comodidade de seu niilismo.
Trata-se de um Neutro produtivo, ativo, afastado, enfim, da imagem que a cultura ocidental construiu para ele: a esterelidade indiferente. Só se constrói um significado negativo para um signo como o Neutro a fim de separar uma força daquilo que ela pode: subversão, reversão, boa distância... O Neutro, no entanto, é a própria diferença: como quisera Pasolini, "uma desesperada vitalidade" (Barthes, O neutro, p. 168). Para muito além de toda polaridade: macho-fêmea, direita-esquerda, bem-mal, original-cópia: o Neutro encarna a singularidade de uma relação atenta e não-arrogante com o presente – o que convém erigir a princípio de uma esquerda impossível, capaz de a-fundar os cinismos de esquerda e de direita, pois já não é mais solidária a eles: essa esquerda impossível com que nós sonhamos, uma esquerda para depois de amanhã...
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