A partir do movimento de blogagem coletiva pelo desarquivamento dos documentos da ditadura militar, o #DesarquivandoBr - já em sua terceira edição -, a blogosfera e a twittosfera passaram compor um novo campo de nossas guerras de guerrilha pelo direito à verdade e à memória no Brasil pós-ditadura. Em um tempo em que se tornou lugar comum afirmar que vivemos em uma democracia amadurecida, que superou historicamente suas agruras ditatoriais, talvez fosse o caso de fazer ressoar uma espécie de resistência incômoda ao peso de um presente violentamente pacificado, e que já não podemos suportar sem envergonhar-nos: “No olvidamos, no perdonamos, no nos reconciliamos”, é preciso repetir sempre, e hoje.
Há qualquer coisa que, em nós, murmura o tom de um imemorial que parece acossar-nos desacomodando-nos. Repetimos o refrão da democracia liberal, do capitalismo de consumo, da meritocracia paradoxal que reserva os verdadeiros privilégios apenas para poucos; por vezes gritamos por memória, mas sem saber exatamente do que se trata: na raiz, memória é puro imemorial, real inconsciente.
Um dos grandes desafios do pensamento de esquerda no Brasil contemporâneo é auxiliar a compreender que o liberalismo brasileiro carrega marcas autoritárias. Enquanto praticamente todos os países latino-americanos instauram comissões de verdade e justiça e apuram os fatos, narram suas histórias políticas recentes e punem aqueles que cometeram graves violações a Direitos Humanos utilizando-se do aparato burocrático de Estado, no Brasil, os resistentes políticos – em grande parte de esquerda –, têm de conviver com as alcunhas de “assassinos”, “ladrões de banco”, “terroristas” etc. Ao lado disso, recentes declarações racistas, sexistas e intolerantes de um ex-militar são aplaudidas pela grande mídia e ressalvadas no seio do direito “democrático e inviolável” de opinião; quando tanto, são tachadas de “polêmicas” ou “empáfias”, as declarações do Deputado Boçalnaro.
Mas por que nosso presente autoritário teria algo a ver com nosso passado autoritário? O direito à memória e à verdade não será encontrado apenas em arquivos, ele é produto das narrativas, criações e resistências coletivas, de uma potência impessoal de apreensão das dimensões imemoriais de um povo, e não uma verdade mais essencial que retornaria do fundo das coisas para atormentar-nos. Com o desarquivamento é todo um novo campo de trabalhos que se abre. A potência de narrá-lo, de utilizá-lo livremente para resistir àquilo que um tempo tem de insuportável, é o que deve ser afiançado pelo desarquivamento. Nenhum passado empoeirado tem valor em si mesmo; queremos, como Nietzsche, usar livremente a história para servir à vida, mas para isso, não basta viver, bestialmente, o instante presente, que parece durar uma eternidade imóvel. É urgente que nos tornemos intempestivos.
Quando compreendermos que, mais do que resistir ao passado, é o passado que, ao coexistir conosco em toda a estreita dimensão da atualidade, faz com que esse presente ignóbil ao qual é preciso resistir possa passar, compreenderemos que a memória não condiz com uma verdade mais essencial que seria encontrada no fundo das coisas. Compreenderemos que não podemos falar em herança autoritária, pois nunca deixamos de sê-lo, verdadeiramente; compreenderemos que ser tolerante com os intolerantes, como o Deputado Boçalnaro, não é sinal de maturidade democrática, mas a reafirmação de um compromisso com o autoritarismo político do qual nunca deixamos de ser signatários. Compreenderemos, outrossim, que não vivemos autênticas democracias ou rupturas constitucionais, mas, desde 1988, vivemos uma democracia mitigada: nossa democracia é pós-ditatorial.
É preciso assumir o risco. É preciso arriscar a vida. É urgente produzir memória. Só ao preço de encarar o fundo de horror e morte no fundo de nossas instituições democráticas é que poderemos, enfim, arrostando a morte, resistindo a ela - como André Malraux dizia que só as obras de arte o podem -, pensar uma comunidade que vem...