“Vou escrever”. Não, não. Simplesmente “escrever”, sem “vou”. Porque em “vou” tem eu, e eu é indesejável quando se escreve. Eu se mete em tudo, tropeça, corre, chora, fuça todos os vãozinhos das letras na folha; passa pelas palavras atordoado, perguntando “isso aí que você escreveu, é comigo?”. Eu só atrapalha a escritura, o gesto, o blanchotianismo da mão que escreve. Eu só dá desgosto. Quem escreve é a mão, é a prova da escritura; para escrever, a mão ata o pescoço do eu, aperta, sufoca, segura, não deixa respirar – e, por uns instantes, tão necessários, tão essenciais à escrita, eu morre. Fica só o impessoal, só aquele espaço em que não digo, e sobre o qual não posso dizer “sou eu, é meu”. Escritura é mundo, é sem domínio. A mão que pode ser a sua, traçando o corpo nas letras; aliás, poesia erótica é isso, não? Desenhar uma silhueta de mulher sem traçar uma linha sequer. Quando se consegue isso, então é febre, é festa, é gozo, é desterro, é dissolução. De escrever também faz parte nutrir-se, lavar-se, pentear-se, preparar-se para o amor. Aquela silhueta, mais atrás, deixou cair seu eu quando tirou as roupas para o poema – claro, na escrita também se fica nu. Escrever seria, então, um modo de exibicionismo? Para alguns; escritores medíocres, a todo momento, querem fazer aparecer seu eu por cima da escrita. Para os bons escritores, contudo, é uma forma de erotismo, um modo do em-dois, uma maneira de fazer o mundo e a vida passarem inteiros por si, rasgando o sujeito que diziam ser. É a constituição de um outro, é uma despedida de eu e a abertura de um alhures. A escritura de si é também uma escritura do mundo, porque si não se confunde com eu. “Eu” poda. Si faz germinar; faz infiltrar hastezinhas terra adentro. Si deixa a terra, as larvas, os vermezinhos virem à luz para acarinhar nossos pés, para lamber as pedrinhas e banharem-se na chuva. Escrever é uma das coisas mais baixas que existem. Manoel de Barros o sabe muito bem, sabe que escrever e rastejar são verbos irmãos, que comungam do gosto, da umidade da terra; escritor, ele parece dizer-nos, é preciso largar a caneta, pegar do barro, é preciso ser uma larva... É viver, deixar viver – embora sempre quando se escreve, eu morra.