[resenha / lançamento] - O físico e professor da Dartmouth University, Hanover, nos Estados Unidos, Marcelo Gleiser, lançou, há pouco, o livro Criação imperfeita: cosmo, vida e código oculto da natureza, pela Editora Record. O prefácio e o primeiro capítulo podem ser lidos em PDF aqui. Gleiser é doutor em física pela University of London, realiza pesquisas na área de filosofia das ciências, e é conhecido por buscar tornar acessíveis ao grande público algumas investigações científicas que possuem raízes no seio da cultura ocidental, e que podem ser consideradas como uma espécie de extensão dela: “quem somos?”, “de onde viemos?” e “para onde vamos?”.
A sofisticação das funções e proposições científicas, sua linguagem própria, apela à partilha do saber preconizada por Gleiser. Para isso, o professor de filosofia natural utiliza uma linguagem que mistura o poético, o concreto e o quotidiano, envolvendo o leitor desde a primeira página em uma leitura agradável e interessante. Esses problemas (“quem somos?”, “de onde viemos?” e “para onde vamos?”), aparentemente tão ingênuos, mas ao mesmo tempo, insolvidos até hoje por nossa tradição ocidental de pensamento – que já apelou desde a soluções metafísicas e impalpáveis até a obturação dos possíveis pela proposição de uma realidade confundida com o puramente atual – nos permitem atravessar, ombro a ombro com Gleiser, em direção a uma outra margem; precisamente, a das funções e proposições próprias ao conhecimento epistêmico.
A proposta é das mais instigantes: abandonarmos definitivamente, ao pensar cientificamente, a noção de uma ordem transcendente à natureza, organizadora, para conceber uma espécie de imperfeição imanente, caótica, plena de possibilidades, sempre-aberta ao novo. Evidentemente, trata-se de um ponto de partida filosófico para passar à ciência, que já não pleiteia uma objetividade absoluta, mas tampouco admite a ingerência da subjetividade racionalista e organizadora do caosmos, para utilizar uma expressão cara a F. Guattari.
Ao contrário de apegar-se à razão como uma forma organizadora daquilo que existe, procurando uma lei ou uma ordem para o mundo natural, supondo-o exterior à natureza humana, o livro de Gleiser nos auxilia a perceber que, no fundo da natureza-naturante - o movimento, a um só tempo, criador e destruidor que a filosofia de Heráclito supunha, e que nos fora legado em um seu fragmento insólito (physis philein krypthestai) [1] -, há uma solidariedade unívoca com o organismos e com os verdadeiros acidentes que são o plaeta terra, os homens e a vida inteligente no corpo inorgânico do cosmos.
Matéria organizada e inorganizada, orgânica e inorgânica, como já as encontramos na filosofia de Henri Bergson, não passam de duas linhas divergentes que expressam diferencialmente um só movimento do cosmo; movimento, esse, que se confunde com a radical imprevisibilidade dos devires. A intuição dessa íntima e singular solidariedade entre os homens, o pensamento e a natureza permite a Gleiser dar-nos algo em que pensar: como essa reformulação de uma solidariedade imanente e íntima entre cosmo, vida e velamento da natureza poderiam auxiliar-nos a repensar a fundamentação das ciências, da ética e da ecologia, já que são precisamente os acidentes de que participamos no seio da natureza que nos fazem absolutamente singulares?
[1] Como Pierre Hadot observa, physis philein krypthestai, pode ter significado tanto “a natureza ama/tende a ocultar-se” quanto “aquilo que nasce deve perecer”. HADOT, Pierre. O véu de Ísis. Ensaio sobre a história da ideia de natureza. Tradução de Mariana Sérvulo. São Paulo: Loyola, 2006, p. 27-34.