Giorgio Agamben e o affaire Tiqqun

18 junho, 2010


Publicação original: Giorgio Agamben. Terrorisme ou Tragi-Comédie. Libération. November 19, 2008, French, Translation by Martin Rueff.

Na manhã de 11 de novembro, 150 policiais, a maior parte deles pertencentes a brigadas anti-terroristas, cercaram uma vila de 350 habitantes do planalto de Millevaches, antes de invadir uma fazenda para prender nove jovens (que administravam a mercearia local e tentavam reavivar a vida cultural da vila). Quatro dias depois, estas 9 pessoas foram enviadas a um juiz anti-terrorismo e "acusados de conspiração criminal com intenções terroristas". Os jornais noticiaram que a Ministra do Interior e o Secretário de Estado "haviam parabenizado as polícias local e estadual por sua diligência". Tudo em ordem, ou pelo menos assim parece. Mas vamos tentar examinar os fatos um pouco mais de perto e compreender os motivos e os resultados desta "diligência".
Primeiramente, os motivos: os jovens sob investigação "foram investigados pela polícia porque eles pertenciam à ultra-esquerda e ao meio anarco-autônomo". Como a comitiva da Ministra do Interior especifica, "o discurso deles é muito radical e eles tem conexões com grupos estrangeiros". Mas tem mais: certos dos suspeitos "participam regularmente de manifestações políticas", e, por exemplo, "em protestos contra o Fichier Edvige (Exploração de Documentos e Valorização da Informação Geral) e contra a intensificação de leis restringindo a imigração". Portanto, ativismo político (este é o único significado possível das monstruosidades lingüísticas como "movimento anarco-autônomo") ou o exercício ativo de liberdades políticas, e utilizando um discurso radical e portanto razões suficientes para convocar a divisão anti-terrorista da polícia (SDAT) e o escritório central da inteligência do Interior (DCRI). Mas qualquer um possuindo um mínimo de consciência política não resistiria compartilhar das preocupações destes jovens frente às degradações da democracia imbricadas pelo Fichier Edvige, tecnologias biométricas e o enrijecimento das leis de imigração.
Quanto aos resultados, seria de se esperar que os investigadores encontrassem armas, explosivos e coquetéis Molotov na fazenda em Millevaches. Longe disso, os policiais do SDAT descobriram "documentos contendo informações detalhadas sobre transporte ferroviário, incluindo horários detalhados de chegada e partida dos trens". Em bom português: uma programação dos trens da companhia de transporte ferroviário SNCF. Mas eles também confiscaram "equipamento de escalada". Em linguagem simplificada: uma escada, do tipo que se encontra em qualquer casa interiorana.
Agora, voltemos nossa atenção para os suspeitos e, acima de tudo, para o suposto comandante desta gangue terrorista, "um líder de 33 anos oriundo de uma abastada família parisiense, vivendo do subsídios de seus pais". Trata-se de Julien Coupat, um jovem filósofo que (com alguns amigos) anteriormente publicou Tiqqun, um periódico cujas análises políticas – sem dúvida discutíveis – contam entre as mais inteligentes do nosso tempo. Eu conheci Julien Coupat durante aquele período e, de um ponto de vista intelectual, continuo mantendo por ele uma alta estima.
Vamos prosseguir e examinar o único fato concreto nessa história toda. As atividades dos suspeitos estão supostamente conectadas a atos criminais contra a SNCF, que em 8 de novembro causaram atrasos de alguns trens da TGV na linha Paris-Lille. Os mecanismos em questão, se devemos acreditar nas declarações da polícia e dos próprios agentes da SNCF, não podem de maneira alguma prejudicar as pessoas: eles podem, na pior das hipóteses, obstruir comunicações entre trens causando atrasos. Na Itália, trens freqüentemente se atrasam, mas até agora ninguém sonhou em acusar a linha ferroviária de terrorismo. É um caso de um delito menos, ainda que condenável. Em 13 de novembro, um relatório da polícia prudentemente afirmou que talvez existam "autores entre os que estão retidos, mas não é possível atribuir atos criminosos a nenhum deles".
A única conclusão possível para este affair sombrio é a de que aqueles engajados em ativismo contra os modos (de qualquer modo discutíveis) como os problemas sociais e econômicos são administrados hoje são considerados ipso facto como potenciais terroristas, quando nem sequer um ato pode justificar tal acusação. Nós devemos ter a coragem de dizer com clareza que hoje, muitos países europeus (na França e Itália em particular), introduziram medidas legais e policiais que teríamos em épocas anteriores julgado como bárbaras e anti-democráticas, e que estas são não menos extremas do que aquelas aplicadas na Itália fascista. Uma medida como tal autoriza a detenção por 96 horas de um grupo de jovens – e talvez imprudentes – pessoas, às quais "não é possível atribuir um ato criminoso". Outra medida, igualmente séria, é a adoção de leis que criminalizam a associação, as formulações que são deixadas intencionalmente vagas e aquelas que autorizam a classificação de atos políticos como tendo "intenções" ou "vocações" terroristas, atos que até agora nunca foram considerados terroristas em si.

* Tradução do inglês de Leonor Erberich.