Lute como um usuário: o efeito-Felca

13 agosto, 2025

Murilo Corrêa


Felca e nós


Há seis dias, o youtuber Felca publicou um vídeo sobre a “adultização” e a exploração sexual de crianças e adolescentes nas redes sociais. Todo mundo viu. Ou quase todo mundo. Enquanto escrevo essas linhas, o Youtube contabiliza mais de 36 milhões de visualizações em um canal de humor irônico que, hoje, conta com 5,88 milhões de inscritos. Muito provavelmente, quando o leitor as ler, esses números já terão se multiplicado.

No vídeo, Felca denuncia a lógica plataformizada de exploração e sexualização de menores em redes sociais através de casos. Entre os principais, está o do influenciador Hytalo Santos, acusado de submeter adolescentes — como “Kamylinha”, presente no programa desde os 12 anos até os 17 — a um “reality show” com clima adulto, incluindo danças sensuais, festas, bebedeiras e um vídeo de pós-operatório de implante de silicone. Também são abordados conteúdos sensíveis, como a venda de imagens íntimas de menores em grupos fechados, e o canal “Bel para Meninas”, investigado sob suspeita de exploração emocional.

Com a estrondosa repercussão do vídeo, o Ministério Público instaurou investigações dos casos citados, apurando possível exploração infantil e violação do Estatuto da Criança e do Adolescente. O Conselho Tutelar e a Polícia Civil passaram a acompanhar os menores envolvidos, enquanto plataformas como Instagram e TikTok removeram contas denunciadas e afirmaram estar revisando políticas de proteção infantil. 

Felca fez um trabalho jornalístico que nenhum jornalista fez. Gerou um impacto afetivo que nenhuma mídia tradicional de massas gerou. De quebra, produziu efeitos políticos e sociais que nenhum partido político ou formador de opinião conseguiu obter. É que o vídeo de Felca não é apenas factual e jornalístico, mas produz uma operação sensível, formula um problema concreto e situado e, por fim, convoca à ação. Isso faz dele mais do que um mero vídeo que denuncia aquilo que todo mundo sabe que está nas redes.

Talvez estejamos diante de uma operação subjetiva original e, com sorte, de uma nova possibilidade de luta em rede: as lutas dos usuários, daqueles que são tratados como usuários pelas Big Techs e plataformas que gostariam de modular nossa existência, subjetividade e possíveis. Trata-se de uma luta que se desenvolve no cerne da economia de atenção que as redes mobilizam, e que no fundo é, como o vídeo de Felca parece mostrar exemplarmente, uma economia do desejo e da sua perversão.




Mais vigilância, por favor!


Felca e nós estamos no capitalismo. Sua crítica à monetização de conteúdos que exploram o tratamento de crianças e adolescentes como adultos, bem como sua exposição hiperssexualizada, não é e está longe de ser uma crítica ao capitalismo. Assim como o uso crítico e judicioso que o Sleeping Giants Brasil faz das redes como meio de denúncia e mobilização para desmonetizar fake news e (permitam-me usar esse atalho cognitivo) “discursos de ódio”, tampouco é uma crítica ao capitalismo de plataforma. Trata-se de uma luta no cerne dos fluxos de desejo, crença e finança que alimentam monstros que nos parecem intoleráveis – enquanto a outros talvez possam soar inteiramente familiares.

Ao criticar a monetização da exploração sexual de crianças e adolescentes nas redes, Felca se pergunta como isso ainda é possível. É que, apesar de estarmos no capitalismo, ele não é tão de “vigilância” assim, como supôs (entre muitxs) Shoshana Zuboff. O capitalismo em que vivemos é, sem dúvida, algorítmico e de dados, mas o que Felca mostrou é que os algoritmos vigiam apenas quando “querem”, “se querem”, e só nas hipóteses em que “fazer vistas grossas” não se mostrar mais rentável. A mesma lógica vale para a dispersão infinita e a ilimitação das bets, plataformas de jogos de azar digitais regulados e tributados de maneira soft no Brasil, e que Felca também denunciou.

Assim como no caso das bets, no da exploração sexual de crianças e adolescentes em “redes sociais de propósito geral” – curiosamente, plataformas 18+ talvez disponham de maior vigilância contra as práticas de pedofilia –, tudo se passa como se o que faltasse ao capitalismo de vigilância fosse, paradoxalmente, vigilância.

Da mesma forma como às empresas que ingenuamente se utilizam do Google ou dos Ads do Facebook e do Instagram, e terminam alavancando fake news e discursos de ódio, faltaria ao capitalismo de plataforma e às redes sociais a mesma vigilância que permite aos algoritmos serem tão eficientes ao entregar a usuários anúncios personalizados baseados em dados. 

Os casos de adultização e de exploração plataformizada sexual de menores – exploração que prolonga online explorações que ocorrem também offline – relatados por Felca parecem dobrar a aposta política do capitalismo de vigilância prolongando-o na forma de uma ética técnica mínima: se vamos ser vigiados, então façam o favor de vigiar direito! Incluam os pedófilos e os exploradores de menores… Mais vigilância, por favor!





A virada moral


Em setembro de 2017, o Santander suspendia com um mês de antecedência a exibição do Queermuseum – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, até então em cartaz no Santander Cultural de Porto Alegre. As acusações que motivaram a interrupção da exibição foram veiculadas em protestos agenciados por redes sociais e afirmavam que as obras blasfemavam contra símbolos religiosos e promoviam a zoo e a pedofilia. Tratava-se de uma exibição composta por 270 obras de 85 artistas brasileiros desde o início do século XX ao século XXI, e que tratavam de temáticas da diferença, como LGBTQIAPN+, gênero e questões sexuais.

Esse período, que se confundiu com a emergência e cristalização do Bolsonarismo, foi também o período de um pânico moral generalizado que tinha por objeto o combate à assim chamada “ideologia de gênero”, à “escola sem partido” e à “comunistização” (em larga medida imaginária) das crianças e adolescentes pela via da educação e do acesso à cultura. Uma prédica que seria cômica se não fosse trágica num país como o Brasil, assolado pelos obstáculos e desigualdades de acesso de crianças e jovens a direitos fundamentais como educação, cultura e lazer.

Não muito distante dessa atmosfera conspiranoica de pânico moral ao redor da infância, estavam a denúncia de Damares Alves sobre uma rede de exploração sexual de crianças no Pará, e a corrida de evangélicos e bolsonaristas aos cinemas para assistirem à exibição de Sound of Freedom (2023), filme baseado em fatos reais e dirigido por Alejandro Gómez Monteverde que retrata a exploração sexual e o tráfico internacional de crianças e adolescentes dentro de uma trama de ação previsível à la americana.

No seio desses movimentos é que as direitas brasileiras avançavam sobre a pauta da proteção das crianças e adolescentes como um dos elementos centrais da estratégia de capturar temas relacionados à família e à sua proteção contra a decadência do seu perfil tradicional e sua “corrupção moral” – ambas atribuídas a um progressismo das esquerdas quanto à pauta de costumes. De seu lado, as esquerdas ficaram capturadas na trincheira da guerra cultural da defesa da diferença inespecífica, das múltiplas formas de amor abstratas e da liberdade de expressão descorporificada.

Até há pouco tempo, essas oposições se distribuíam estavelmente entre direitas e esquerdas no Brasil. Enquanto Lula esteve preso, desapareceu a esquerda punitiva de que falou Maria Lúcia Karam, e emergiu a esquerda garantista e defensora de direitos humanos, enquanto a direita brasileira brandia o discurso judicialista, punitivista e anticorrupção, surfando politicamente nas pautas de segurança pública. Já agora, quando Bolsonaro enfrenta uma prisão domiciliar em caráter cautelar, e Carla Zambelli aguarda presa na Itália uma provável extradição, os papeis se invertem. Surge uma direita garantista, crítica do ativismo judicial que incensou em Moro (embora os papeis de Moro e Moraes estejam muito [muito mesmo!] longe de se equivalerem), e repentinamente defensora de direitos humanos. Por outro lado, retorna a esquerda punitivista, que não abdica do discurso dos direitos humanos, mas que os compreende subsumidos à forma democrática do Estado (os quais, de fato, estão).

Poderíamos multiplicar os exemplos até o aborrecimento. O que importa aqui é compreender a virada moral que hoje atravessa esquerdas e direitas. É evidente que ela se segue de uma virada situacional. No entanto, mesmo essa virada parece manter a oposição entre esquerdas e direitas em seu lugar. Enquanto, nos últimos anos, todo mundo falou de “polarização” sem cessar – palavra que gastamos a ponto de se tornar proscrita e odiosa no vocabulário político corrente –, sempre preferi falar em oposição em sentido tardiano.

Gabriel Tarde, genial jurista e sociólogo do final do século XIX, início do XX, definiu as oposições como fenômenos inteiramente regulados por relações de simetria, identidade e neutralização. Onde parece haver uma diferença abissal, é precisamente onde Tarde a vê desvanecer na forma de uma variação meramente aparente, que mantém um estado de coisas em equilíbrio e no seu lugar de costume. É que as oposições supõem uma identidade subliminar entre os dois termos opostos. A estratégia da oposição passa por conservar a diferença meramente aparente que encarna, ao mesmo tempo em que doma e aniquila qualquer diferença que fuja da identidade de fundo que sustenta a oposição.

Ao contrário da ideia de polarização, a oposição talvez seja um conceito ainda útil do relicário tardiano, na medida em que ele nos permite pensar a variação apenas aparente das trocas de posições entre uma esquerda que já não tem nada a nos oferecer e uma direita que tem tudo a nos tirar. Nesse contexto politicamente desolador é que o vídeo de Felca produziu um dos fatos políticos mais poderosos dos últimos tempos, e ele está ligado às lutas dos usuários.




Lute como um usuário


Certa vez ouvi de um teórico que respeito e admiro muito uma pergunta à queima-roupa, e muito sagaz: como os usuários farão política num mundo que os trata precisamente como usuários? Não estaria aí um limite bastante incômodo à teoria guattariana dos grupos de usuários - ideia que elaboro em La jurisprudencia de los cuerpos para dar sentido à filosofia do direito de Deleuze? A resposta poderia ser: “do mesmo modo como operários fazem política num mundo fabril que os trata como operários, ou mulheres e negros fazem política num mundo machista e racista que os trata como mulheres e negros”, e assim por diante.

O limiar aparentemente político que tocamos aí não é outro senão a da própria estrutura que uma singularidade tensiona, a do próprio meio no qual seu potencial de disparação se introduz. Chamemos a isso singularidade, operário, mulher, negro ou usuário: os usuários fazem grupos precisamente num mundo em que os trata como usuários por toda parte. Isso talvez seja menos uma limitação do que as condições muito materiais de um chamado à ação.

Com seu vídeo Felca não apenas “Furou a bolha”, mas lutou como um usuário e produziu uma cascata de efeitos offline. Ao enunciar um problema situado, cartografá-lo, dimensioná-lo, pesquisá-lo como talvez coubesse a jornalistas ou antropólogos, Felca produziu uma política de usuários e reconectou singularidade e meio estruturável, micro e macropolítica. Uma transformação que só podemos conhecer pelos efeitos que dispara. 

Um deles foi alcançar grupos de todos os espectros políticos no WhatsApp, de acordo com monitoramento realizado pela consultoria Palver. Outro foi produzir um curto-circuito nas extremas direitas. Entre todos, a senadora Damares Alves deu declarações em que reputava o tema da adultização como um cavalo de Tróia que permitiria à esquerda avançar seu projeto de regular as redes. No mesmo sentido, o deputado Nikolas Ferreira acusou a esquerda de criar uma cortina de fumaça para passar a proposta de regulação.

Em que consiste essa política de usuários? Ela consiste em embaralhar os termos da oposição entre as direitas (garantistas, mas golpistas) e as esquerdas (punitivistas, mas democráticas). A adultização e a exploração monetizada da sexualização de menores – um tema da subjetividade social e dos fluxos de desejo que atravessam e ajudam a constituir redes, algoritmos e valor econômico – tiraram por um momento das mãos das direitas o debate público sobre a proteção de crianças e adolescentes, ao mesmo tempo em que municiaram um debate contextualmente caro às esquerdas sobre a regulação de megaplataformas e redes sociais.

As direitas foram confrontadas com sua hipocrisia moral, e terão de escolher entre seguir seu discurso de pânico sexual até o fim, ou seguir o discurso de liberdade de expressão nas redes até as últimas e potencialmente autofágicas consequências. Já as esquerdas foram forçadas a ingressar no campo do debate dos valores e da moralidade, um território pantanoso antes entregue ao monopólio das direitas. A ver como vão se virar com isso.

Mas o efeito-Felca foi muito mais profundo. Ele não só produziu uma revisão nas políticas de megaplataformas, como deu o ensejo para que grupos de usuários heterogêneos se formassem em torno do problema – um problema que só se torna efetivamente visível sob a condição de ter sido enunciado como tal. Além disso, também, gerou efeitos macropolíticos de larga-escala em todos os setores inertes da política legislativa nacional, que se apressaram em formular mais de 32 projetos na Câmara dos Deputados do dia para a noite, sob o empuxo do efeito-Felca.

Lutar como um usuário é afundar-se nas condições materiais circundantes de um meio habitável. Felca o fez na condição de um usuário de plataformas e de um formador de público majoritariamente Gen Z, como ele próprio. A mesma garotada que anda tirando fotos de cybershot e comprando dumbphones para tentar aguentar o vórtice digital interminável que se tornou a vida de cada um de nós. Lutar como um usuário é formular um problema que mude a partição sensível e dê consistência a um grupo de usuários que não tinham grupo – até se verem alvejados por um enunciado que contém um problema que faz sentido. Eis o ponto em que a subjetivação acontece e o transindividual opera suas conversões.

Lutar como um usuário, como no efeito-Felca, ou no efeito-Sleeping Giants BR, é saber converter a figura do inventor na do repetidor, fazendo uma singularidade mobilizar circuitos cada vez mais vastos, heterogêneos e inesperados.