>> por Paul B. Preciado
Este é um feitiço tecnoxamânico a ser realizado coletivamente durante as festividades sagradas e pagãs correspondentes à passagem das noites mais longas e dos dias mais escuros do ano, visando ao retorno da luz no hemisfério Norte. Esse feitiço é dedicado a todos aqueles e aquelas que redigiram a nova lei de imigração francesa, que votaram nela ou que, tendo se abstido de votar ou lutado para que ela fosse alterada, fizeram com que ela acontecesse no mundo real.
Que as fronteiras que vocês ergueram se fechem sobre vocês. Que as leis que vocês decretaram sejam aplicadas a vocês. Que a nacionalidade que possuem e reivindicam como se fosse um direito natural lhes seja retirada e que, em seu lugar, seja criado um cartão de “criminoso político” para cada um e cada uma de vocês, com seu nome e os nomes de seus progenitores, suas impressões digitais, seu sexo e sua foto.
Que vocês conheçam a repressão por toda a parte, e o acolhimento, em parte alguma. Que as condições de acolhimento vos sejam sempre restritas. Que nem a amizade, nem o casamento, nem a família possam vos garantir o direito de acolhimento. Que seus pedidos de autorização de residência sejam recusados em todos os lugares e para sempre.
Que as fronteiras que vocês ergueram se fechem sobre vocês. Que nem o dinheiro nem o poder vos sirvam a atravessá-las. Que vocês sejam sempre e em todo lugar deportados em nome da lei. Que seus direitos humanos mais elementares sejam ultrajados antes mesmo do seu nascimento e depois da sua morte. Que não haja possibilidade de reunificação familiar para você e seus entes queridos. Que onde quer que vocês vão, vocês sejam estrangeiros.
Que sua existência sobre a Terra seja considerada um crime, e que seus corpos vivos e vulneráveis, sua aparência, seu idioma e sua religião, sejam declarados graves ameaças à ordem pública. Que, onde quer que vocês vão, sua presença seja reconhecida como um crime de residência ilegal, punível com uma multa de 3.750 euros. Que cada encruzilhada se torne um posto de fronteira para vocês e que, a cada esquina, um policial possa tirar suas impressões digitais sem o seu consentimento.
Que na doença, não lhes socorra o direito ao cuidado. Que a assistência médica universal lhes seja recusada. Quando conheçam a fome, que aquelas e aqueles que se autoproclamam “cidadãos nacionais” tenham, por força da lei, o direito de privá-los do pão.
Que a polícia, a quem vocês deram poderes ilimitados, os persigam por becos escuros, onde todas as portas e janelas se fecharão em seus caminhos. Que seus peitos sejam esmagados por botas; seus olhos, arrancados por balas de borracha.
Que aquelas e aqueles que os amaldiçoam devido ao seu lugar de nascimento, à cor da sua pele, ao seu gênero, à sua sexualidade, à sua religião ou etnia, à sua situação econômica ou à sua formação profissional possam exercer sobre vocês, pela imposição de cotas, um direito de vida ou morte.
Que as fronteiras que vocês ergueram se fechem sobre vocês. E quando morrerem tentando atravessá-las, que seus nomes sejam esquecidos e que seus corpos, perdidos no fundo do mar, calcinados no deserto ou esquecidos em uma vala, nunca sejam encontrados, nem tenham direito a uma sepultura.
E depois de terem sido submetidos às leis de um mundo que vocês mesmos criaram, que suas fronteiras internas finalmente cedam. Que seus corações se abram e se tornem uma Arca de Noé cósmica na qual as almas de todos os mortos que vocês condenaram possam entrar sem impedimentos. Que os espíritos de Zyed Benna e Bouna Traoré, Mohamed Bendriss, Alhoussein Camara, Adama Traoré, Nael Merzouk e milhares de outros os possuam, habitem e mudem. E que, cheios do poder das vidas que tiraram, possam escutar o chamado da graça meteca e anarco-queer.
Pelo poder transformador dessa graça, que vocês possam ser totalmente diferentes do que são, pois o futuro do mundo depende da sua capacidade de mudar. Que vocês experimentem a alegria e a dor da empatia universal. Que seus corações, antes fechados, se sintam solidários com tudo o que até agora consideravam estrangeiro, estranho e criminoso. E ao sentir em seus corpos o universo inteiro como se fosse a sua própria carne, vocês chorem inconsolavelmente.
Que a pomba, cujas asas vocês cortaram, faça ninho em vocês, e devore todos os seus desejos de dominação e morte. Que a força do amor planetário expulse dos seus espíritos o fascista que os subjuga. Que o ditador que se apossou do Parlamento das suas almas seja destronado e que a liberdade reine em suas vidas. Por meio desse feitiço, e contra a sua ideologia e a sua vontade, apelamos à mutação dos seus desejos, sem qualquer reversibilidade possível, para o bem do planeta e de vocês mesmos.
Que tudo isso seja dito e feito em nome de James Baldwin e Audre Lorde, Frantz Fanon e Jean Genet, Aimé Césaire, Cherrie Moraga e Gloria Andalzúa, Leslie Feinberg e Marsha P. Johnson. Invocamos a força e o poder deles, sua compaixão e sensibilidade, para que sua transformação seja total e absoluta. Amém, e feliz solstício.
* Publicado originalmente em Libération: <https://www.liberation.fr/idees-et-debats/opinions/sortilege-a-celles-et-a-ceux-qui-ont-permis-la-loi-immigration-par-paul-b-preciado-20231222_UL67BGXNNNBRJEJA6UQOCOO2P4/>.
** Tradução de Murilo Duarte Costa Corrêa