Tradução: Žižek, repressão, de Jean-Clet Martin

05 janeiro, 2010



Filósofo. Professor do Collège International de Philosophie em Paris, França. Autor de « Variations. La philosophie de Gilles Deleuze », publicado originalmente em 1993 pela coleção Petite Bibliothèque Payot.

Deleuze pensaria já como Hegel, mas sem querer – puro hegeliano reprimido. É uma tese de Žižek, em verdade, nada original, sabido que Deleuze não é nada acessível a essas categorias estreitas que constituem a repressão, ou a palavras terminadas em “...iano”. Aliás, ele não é mais bergsoniano que nietzschiano: ele é Deleuze. Um pensamento cujo percurso integra pontos e contrapontos segundo um dobramento que lhe pertence completamente, e no qual ele renova os trajetos, os limiares, em função dos conceitos que inventa. Trata-se, sobretudo, de uma maneira de retroceder seu pensamento, revelando no interior de uma filosofia algo que ali não figura, criando-se precursores, virtualidades que não existiriam não fosse essa criação.

Diríamos, melhor, que o efeito não se reduz à causa, que aquele que lê não é o reflexo daquilo que se lê, quase como se o modelo invocado não existisse em si mesmo senão pelo eco da leitura, enquanto a obra aguarda a onda capaz de renová-la por meio de um esclarecimento que marcha ao revés. Não há nada de mais pobre, pois, que procurar em uma criação os piolhos herdados de seus predecessores. Dizer, ao ler Deleuze, que Hegel já havia pensado isso ou aquilo, não é dizer coisa alguma! É duplamente mal-compreendido o processo do pensamento que passa por Hegel, ignorando o que Hegel faz, e que se passa de Deleuze, criador de conceitos que não encontramos alhures, conceitos tributários da assinatura que os caracteriza. Deleuze não é mais hegeliano que Hegel, kantiano, ou Kant, cartesiano. A história da filosofia é um lance de dados, e a queda não é jamais sem consequência sobre o lance, a ponto de modificar a força das procedências. Longe de mim a ideia de hegelianizar Deleuze ou de apontar uma “repressão” de qualquer natureza quanto à maneira deleuziana de tratar a história da filosofia.


Hegel pensa o conceito como processo e o processo como diferença. Eis o que é de todo modo importante. Deleuze, entretanto, não se reduz a essa linha.  Ele viaja uma outra, que não é nem de Platão, nem de Lacan, nem de ninguém, e que nós não saberíamos ver se nos contentássemos em rebater Deleuze sobre o já existente. É uma linha que marcha de revés e que reencontra seus precursores no ponto de sua queda. Dizer que Deleuze é hegeliano reprimido – eis uma relevante farsa da não-criação que caracteriza as grandes declarações de princípio, calamitosas quando se veem repisadas nos assim chamados meios midiáticos.


Deleuze, pensador das multiplicidades e das variações, não deve absolutamente nada a Hegel, pensador da diferença e da negatividade. Um se exercita na topologia, enquanto outro se exercita na dialética, e os dois momentos não são de mesma natureza, mesmo se um e outro contestam o Ser em nome do Devir, ou a Moral em nome da Lógica. É essa contestação que me interessa e motiva meu livro sobre um e outro. Quanto a Deleuze, ele é tomado em um pensamento que não pode ser aquele de Hegel – uma Lógica do sentido em que a distribuição é problemática, tributária de um problema cujo mapa não é superponível a Hegel, senão em certos pontos – o do movimento ou o do processo. De resto, o que faz Deleuze, sua problemática é a das multiplicidades nas quais as variáveis não se dividem sem mudar de natureza: um caos que não poderá apontar ao infinito de Hegel transfigurado por um real que não é aquele que compartilhamos com Deleuze.

JCM

PS: Aproveito esta oportunidade para esclarecer, na passagem, ainda um outro ponto: se o capitalismo tem a ver com a avidez universal pelo prazer e pelo consumo, nada há nisso, porém, de comum com o prazer, como não se cansa de afirmar Slavoj. Ele recolhe da alegria, ou da felicidade, aquilo de que a moral e o terror suspeitaram desde sempre, e que Lacan nos deixou a pensar  ainda recentemente que é impossível. O “Elogio do amor”, tão em voga, por sua suspeição açucarada das hordas desejantes, não diz mais o que é o prazer de que a filosofia fizera seu objeto de Plotino a Deleuze.


Texto originalmente publicado em língua francesa, em 20.11.2009, no blog de Jean-Clet Martin, sob o título "Zizek refoulement". O autor, muito gentilmente, autorizou-nos sua tradução e a republicação em 29.12.2009.
P.S. Em tempo, o site O Estrangeiro.net, com o qual às vezes colaboro, republicou essa tradução aqui, na seção esquizoanálise.