A liberdade dos homens não é jamais assegurada pelas
instituições ou leis que pretendem garanti-la. É por esta razão que quase todas
as leis e instituições podem ser subvertidas. Não porque sejam ambíguas, mas
simplesmente porque liberdade é aquilo que deve ser praticado.
O que os protestos pelo fim das
tarifas no transporte público, pelos direitos humanos (do Levante Popular da
Juventude às Marchas contra Feliciano), pelos direitos reprodutivos das
mulheres, pela liberação sexual e de gênero, dos professores - pela educação e
por melhores condições de trabalho -, ou pela legalização da maconha, para ficar só com
alguns exemplos, revelam que é urgente distinguir o tedioso conceito de
revolução da revolta profunda de todos os corpos. Nada mais de confundir
revolução com revolta, conceitos e práxis que jamais coincidem. Embora já esteja nas ruas
desde Seattle, o manifesto político do século XXI ainda está por ser escrito, e
ele será algo como uma fenomenologia da revolta. Uma fenomenologia da revolta
como ontologia da liberdade. Mas, antes de escrever, às ruas.
Lançar os corpos na rua e gritar "3,20 é roubo!", ou "Ilegal deveria ser
essa sua cabeça conservadora", é o gesto que desloca a cisão
legalidades/ilegalidades que funda as formas jurídicas consolidadas. Toda
revolta é a recusa profunda, afetiva, vital dessa partição do lícito e do
ilícito. Por isso, ela margeia estrategicamente o ilícito, vaga em seus limiares indecisos e excepcionais. A mídia trata o borderline do (i)lícito como crime a priori. Por sua vez, Haddad defende a ação violenta da polícia e aconselha os manifestantes a renunciarem à violência como condição do diálogo - violência a que o Estado jamais renuncia. Por isso, a atitude de Haddad é cínica. É a polícia e o Estado que devem renunciar à
violência e à repressão como condição do diálogo. Se a violência pode ser
exercida pelo Estado, seu titular ainda é a massa indecisa, inconsciente e
confusa que o Estado tenta territorializar no conceito de Povo. Por isso, poupemo-nos da sacralização da violência; nada mais de cultos ao Estado de Direito, e
nada mais de sujeição às formas jurídicas que "recobrem o grande mapa das
ilegalidades". A gramática da defesa dos direitos também tem seu limite, e
os direitos derivam da forma pura e vazia da lei que se trata de questionar.
Se a verdade profunda dos corpos é a de serem profundamente anarquistas - e de não cessarem de sê-lo sob todas as camadas de ideologia -, o que a revolta profunda dos corpos produz é uma inequação que joga o
caso contra a lei; a singularidade concreta contra o universal abstrato.
Rebelião do caso contra as ilegalidades que a lei tornou convenção e hábito
disciplinar. O Movimento pelo Passe Livre está se batendo precisamente contra
esse limiar em que a lei formaliza e cobre o mapa das ilegalidades - a lei, esse
efeito do poder que jamais escapou a Foucault. Então, não o condene só porque você prefere reclamar
(impotentemente) da corrupção assistindo ao telejornal; não o censure só porque
você não tem coragem de ir às ruas e enfrentar a porrada deste Estado
protofascista que é São Paulo - mas também todos os outros - armado, no mais das vezes, só da coragem de um corpo anarquista que reivindica sua potência contra o poder.
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