Walter Benjamin I: Para uma crítica da violência

08 junho, 2010


[arquivo] - Walter Benjamim, “Zur Kritik der Gewalt”, in: G. S. II, pp. 179-203. Trad. Willi Bolle, N. da R.: Os trechos aqui publicados fazem parte do capítulo “Crítica da Violência – crítica do poder”,  da obra de Walter Benjamim Documentos de cultura, documentos de barbárie: escritos escolhidos, seleção e apresentação de Willi Bolle, tradução de Celeste H. M. Ribeiro de Souza et al., São Paulo, Cultrix/Editora da Universidade de São Paulo, 1986. A numeração original das notas foi mantida,  tendo sido suprimido o texto referente à Nota 2.


Walter Benjamin
  
A tarefa de uma crítica da violência pode ser definida como a apresentação de suas relações com o direito e a justiça. Pois qualquer que seja o efeito de uma determinada causa, ela só se transforma em violência, no sentido forte da palavra, quando interfere em relações éticas.  Esfera de tais relações é designada pelos conceitos de direito e justiça. Quanto ao primeiro, é evidente que a relação elementar de toda ordem jurídica é a de meios e fins. A violência, inicialmente, só pode ser procurada na esfera dos meios, não na dos fins. Posto isso, temos mais dados para a crítica da violência do que talvez pareça. Pois se a violência é um meio, pode parecer que já existe um critério para sua crítica. Tal critério se impõe com a pergunta, se a violência é, em determinados casos, um meio para fins justos ou injustos. Sua crítica, portanto, estará implícita num sistema de fins justos. Mas, não é bem assim. Pois esse tipo de sistema – supostamente acima de quaisquer dúvidas – não incluiria um critério da própria violência como princípio, mas apenas um critério para os casos em que ela fosse usada. Ficaria em aberto a pergunta, se a violência em si, como princípio, é moral, mesmo como meio para fins justos. Para decidir a questão, é preciso Ter um critério mais exato, uma distinção na esfera dos próprios meios, sem levar em consideração os fins a que servem. A eliminação deste tipo de pergunta crítica e mais exata caracteriza uma das grandes correntes da filosofia o direito – o direito natural – e talvez seja sua característica mais marcante. O direito natural não vê problema nenhum no uso de meios violentos para fins justos; esse uso é tão natural como o “direito” do ser humano de locomover seu corpo até um determinado ponto desejado. Segundo essa concepção (que serviu de base ideológica ao terrorismo na Revolução Francesa), a violência é um produto da natureza, por assim dizer, uma matéria-prima utilizada sem problemas, a não ser que haja abuso da violência* para fins injustos. Se, de acordo coma teoria política do direito natural, todas as pessoas abrem mão do seu poder* em prol do estado, isso se faz, por que se pressupõe (como mostra explicitamente Spinoza no Tratado teológico- político) que, no fundo, o indivíduo – antes de firmar esse contrato ditado pela razão – exerce também de jure qualquer tipo de poder que, na realidade, exerce de fato. (...)
À tese, defendida pelo direito natural, do poder* como dado da natureza, se opõe diametralmente a concepção do direito positivo, que considera o poder* como algo que se criou historicamente. Se o direito natural pode avaliar qualquer direito existente apenas pela crítica de seus fins, o direito positivo pode avaliar qualquer direito que surja apenas pela crítica de seus meios. Se a justiça é o critério dos fins, a legitimidade é o critério dos meios. No entanto, não obstante essa contradição, ambas as escolas estão de acordo num dogma básico comum: fins justos podem ser obtidos por meios justos, meios justos podem ser empregados para fins justos. O direito natural visa, pela justiça dos fins, “legitimar” os meios, o direito positivo visa “garantir” a justiça dos fins pela legitimidade dos meios.
A antinomia se revelaria insolúvel, se o pressuposto dogmático comum fosse falso, se meios legítimos de um lado e fins justos do outro lado estivessem numa contradição inconciliável. Sua compreensão não seria possível sem sair do círculo, estabelecendo critérios independentes para fins justos e para fins legítimos.
Para tal investigação, se exclui por enquanto a esfera dos fins e com isso também a busca de um critério da justiça. A questão central passa a ser a da legitimidade de determinados meios que constituem o poder*. Ela não pode ser decidida por princípios de direito natural, que apenas levariam a uma casuística sem fim. Pois, se o direito positivo é cego para o caráter incondicional dos fins, o direito natural é cego para o condicionamento dos meios. No entanto, a teoria do direito positivo é aceitável como base hipotética no ponto de partida da investigação, uma vez que estabelece uma distinção básica quanto aos tipos de poder, independentemente dos casos de seu uso. Distingue entre o poder* historicamente reconhecido, o chamado poder sancionado e o não- sancionado. (...)
Uma máxima geral da legislação européia atual pode ser formulada nestes termos: todos os fins naturais das pessoas individuais entram em colisão com fins jurídicos, quando perseguidos com maior ou menor violência. (A contradição do direito à legítima defesa com esta máxima deve se explicar por si mesma no decorrer das considerações seguintes.) O corolário desta máxima é que o direito considera o poder na mão do indivíduo um perigo de subversão da ordem judiciária. Um perigo no sentido de impedir os fins jurídicos e a executiva judiciária? Não; pois nesse caso condenar-se-ia não simplesmente o poder, mas apenas o poder voltado para fins contrários à lei. Poder-se-ia dizer que um sistema de fins jurídicos é insustentável quando, em algum lugar, fins naturais ainda podem ser perseguidos por meio da violência. Mas isso, por enquanto, é um simples dogma. Por outro lado, talvez deva se levar em consideração a surpreendente possibilidade de que o interesse do direito em monopolizar o poder diante do indivíduo não se explica pela intenção de garantir os fins jurídicos, mas de garantir o próprio direito. Possibilidade de que o poder, quando não está nas mãos do respectivo direito, o ameaça, não pelos fins que possa almejar, mas pela sua própria existência fora da alçada do direito. De modo mais drástico, a mesma suposição pode ser sugerida pela reflexão, quantas vezes a figura do “grande” bandido não suscita a secreta admiração do povo, por mais repugnantes que tenham sido seus fins. Isso é possível não por causa de seus efeitos, mas apenas por causa do poder* que se manifesta nesses feitos. Nesse caso, portanto, o poder – que o direito atual procura retirar do indivíduo em todas as áreas de atuação – se manifesta realmente como ameaça e, mesmo sendo subjugado, ainda assim suscita a antipatia da multidão contra o direito. (...)
Pois o direito positivo, quando está consciente de suas raízes, reivindicará o fato de reconhecer em cada indivíduo o interesse da humanidade e de fomentá-lo. Tal interesse consistiria na apresentação e conservação de uma ordem de destino. Se, por um lado, não se deve poupar críticas a essa ordem, que o direito pretende conservar com razão, por outro lado, qualquer interpelação dessa ordem é impotente, quando se apresenta apenas em nome de uma “liberdade” sem rosto e incapaz de apontar uma ordem de liberdade superior. Sua impotência é total, quando não questiona o próprio corpo da ordem jurídica, mas apenas leis ou costumes jurídicos isolados, que então serão protegidos pelo direito com o seu poder, que consiste na alegação de que só existe um único destino e que justamente o status quo e o elemento ameaçador pertencem à sua ordem de maneira irrevogável. Pois o poder* mantenedor do direito é um poder ameaçador. Só que sua ameaça não tem o sentido de uma intimidação, como costumam interpretá-lo teóricos liberais desinformados. A intimidação no sentido exato exigiria uma definição contrária à essência da ameaça e não atingida por lei nenhuma, uma vez que existe a esperança de escapar a seu braço. A lei se mostra ameaçadora como o destino, do qual depende se o criminoso lhe sucumbe. O sentido mais profundo da indefinição da ameaça do direito se revelará somente pela consideração posterior da esfera do destino, de onde ela se origina. Um indício precioso se encontra na área das punições. Dentre elas, mais do que qualquer outra, a pena de morte suscitou críticas, desde o momento em que se questionou a validade do direito positivo. Embora, na maioria dos casos, os argumentos da crítica tenham sido mal fundamentados, seus motivos têm sido questões de princípio. Sentiam os críticos, talvez sem poder explicá-lo e sem querer senti-lo, que uma contestação da pena de morte não ataca uma medida punitiva, nem as leis, mas o próprio direito na sua origem. Pois se a sua origem for a violência*, a violência coroada pelo destino, não está longe a suspeita de que na instituição do poder* supremo – o poder sobre vida e morte, o qual se apresenta na forma da ordem jurídica – , as origens do poder - violência interferem de maneira representativa na ordem existente e ali se manifestam de forma terrível. Coerentemente, em contextos jurídicos primitivos, a pena de morte é decretada também no caso de delitos contra a propriedade, em relação aos quais parece totalmente “desproporcional”. Seu sentido não é punir a infração da lei, mas afirmar o novo direito. Pois o exercício do poder sobre vida e morte, o próprio direito se fortalece, mais do que em qualquer outra forma de fazer cumprir a lei. Mas ali se manifesta também um elemento de podridão dentro do direito, detectável por uma percepção mais sensível, que se distancia de relações nas quais o destino em pessoa apareceria majestosamente para fazer cumprir a lei. A razão e a inteligência, porém, devem aproximar-se dessas relações da maneira mais decidida, se quiserem levar a termo a crítica do poder* instituinte e do poder* mantenedor do direito.
Os dois tipos de poder estão presentes em outra instituição do Estado moderno: a polícia, numa relação muito mais contrária à natureza que a pena de morte, numa mistura por assim dizer espectral. É verdade que a polícia é um poder para fins jurídicos (com direito de executar medidas), mas ao mesmo tempo com a autorização de ela própria, dentro de amplos limites, instituir tais fins jurídicos (através do direito de baixar decretos). A infâmia dessa instituição – sentida por poucos, por que raramente a competência da polícia é suficiente para praticar intervenções mais grosseiras, podendo, no entanto, investir cegamente nas áreas mais vulneráveis e contra cidadãos sensatos, sob a alegação de que contra eles o Estado não é protegido pelas leis – consiste em que ali se encontra suspensa a separação entre poder* instituinte e poder* mantenedor do direito. Do primeiro se exige a legitimação pela vitória, do segundo, a restrição de não se proporem novos fins. O poder* da polícia se emancipou dessas duas condições. É um poder* instituinte do direito – cuja função característica não é promulgar leis, mas baixar decretos com expectativa de direito – e um poder* mantenedor do direito, uma vez que se põe à disposição de tais fins. A afirmação de que os fins do poder* policial seriam sempre idênticos aos do direito restante ou pelo menos ligados a eles, é falsa. Na verdade o “direito” da polícia é o ponto em que o estado – ou por impotência ou devido às inter- relações imanentes a qualquer ordem judiciária – não pode mais garantir, através da ordem jurídica, seus fins empíricos, que deseja atingir a qualquer preço. Por isso, “por questões de segurança”, a polícia intervém em inúmeros casos, em que não existe situação jurídica definida, sem falar dos casos em que a polícia acompanha ou simplesmente controla o cidadão, sem qualquer referência a fins jurídicos, como um aborrecimento brutal ao longo de uma vida regulamentada por decretos. Ao contrário do direito que, na “decisão” fixada no espaço e no tempo, reconhece uma categoria metafísica, graças à qual ele faz jus à crítica, a observação da instituição da polícia não encontra nenhuma essência. Seu poder* é amorfo, como é amorfa sua aparição espectral, inatacável e onipresente na vida dos países civilizados. E, apesar de a polícia amiúde ter o mesmo aspecto em toda a parte, não se pode negar que seu espírito é menos arrasador na monarquia absoluta – onde ela representa o poder* do soberano, que reúne plenos poderes legislativos e executivos – do que nos regimes democráticos, onde sua existência, não sublimada por nenhuma relação desse tipo, testemunha a maior degenerescência imaginável do poder*. Todo poder* enquanto meio é, ou instituinte ou mantenedor de direito. Não reivindicando nenhum desses dois atributos, renuncia a qualquer validade. Portanto, qualquer poder* enquanto meio, mesmo no caso mais favorável, tem a ver com a problemática geral do direito.
(...) Quando a consciência da presença latente da violência dentro de uma instituição jurídica se apaga, esta entra em decadência. Um exemplo disso, no momento atual, são os parlamentos. Eles oferecem esse espetáculo notório e lamentável porque perderam a consciência das forças revolucionárias às quais devem sua existência. Assim, sobretudo na Alemanha, a última manifestação de tais poderes* transcorreu sem conseqüências para os parlamentos. Falta-lhes o sentido para o poder instituinte de direito, representado por eles; assim, não é de estranhar que não consigam tomar decisões que sejam dignas desse poder,* mas cultivem, com a prática dos compromissos, uma maneira supostamente não violenta de tratar de assuntos políticos. Ora, o compromisso permanece “um produto que, apesar de repelir qualquer violência* aberta, se situa dentro da mentalidade da violência,* porque o impulso que leva a fazer um compromisso não parte dele mesmo, mas vem de fora, justamente do impulso contrário, porque em qualquer compromisso, mesmo quando aceito de bom grado, não se pode fazer abstração do caráter compulsório. ‘Uma solução diferente seria melhor’ – eis o sentimento que está na base de qualquer compromisso” [3] – É significativo que talvez o mesmo número de pessoas que, por causa da guerra, optaram pelo ideal de uma solução não - violenta de conflitos políticos, tenha-se afastado desse ideal por causa da decadência dos parlamentos. (...)
Será que a solução não - violenta de conflitos é em princípio possível? Sem dúvida. As relações entre pessoas particulares fornecem muitos exemplos. Um acordo não- violento encontra-se em toda parte, onde a cultura do coração deu aos homens meios puros para se entenderem. Aos meios legítimos e ilegítimos de toda espécie – que são, todos, expressão da violência* – podem ser confrontados como meios puros os não- violentos. A atenção do coração, a simpatia, o amor pela paz, a confiança e outras qualidades a mais são seu pressuposto subjetivo. Sua manifestação objetiva é determinada pela lei (cujo enorme alcance não pode ser discutido aqui) de que meios puros não sirvam jamais a soluções imediatas, mas sempre a soluções mediatas. Por isso, nunca se referem à solução de conflitos entre duas pessoas de maneira imediata, mas pelo intermédio das coisas. Quando os conflitos humanos se referem, da maneira mais objetiva, a bens, abre-se o campo dos meios puros. Por isso, a técnica, no sentido mais amplo da palavra, é sua área mais própria. Seu exemplo mais profundo talvez seja a conversa, considerada como uma técnica de mútuo entendimento civil. Ali, um acordo não- violento não apenas é possível, mas a eliminação por princípio da violência* pode ser explicitamente comprovada com um tipo de relação importante: a impunidade da mentira. Talvez não exista no mundo nenhuma legislação que originalmente puna a mentira. Quer dizer que existe uma esfera de entendimento humano, não- violenta a tal ponto que seja totalmente inacessível à violência: a esfera propriamente dita do “entendimento”, a linguagem.(...)
Em toda a esfera dos poderes,* que se orientam ou pelo direito natural ou pelo direito positivo, não se encontra nenhum que esteja a salvo dos graves problemas acima mencionados, que afetam todo e qualquer poder* judiciário. Mas como qualquer idéia, qualquer solução imaginável das tarefas humanas – sem falar de uma salvação do círculo compulsório de todas as situações existenciais já ocorridas na história mundial – é irrealizável, quando se exclui por princípio todo e qualquer poder,* impõe-se a pergunta se existem outros tipos de poder,* além daqueles focalizados pela teoria do direito. Ao mesmo tempo impõe-se a pergunta se é verdadeiro o dogma básico, comum àquelas teorias: fins justos podem ser obtidos por meios legítimos, meios legítimos podem ser usados para fins justos. O que aconteceria, se esse tipo de poder,* dependente do destino e usando meios legítimos, se encontrasse num conflito inconciliável com os fins justos em si, e se, ao mesmo tempo, aparecesse um poder* de outro tipo, o qual então, evidentemente, não pudesse ser nem o meio legítimo nem ilegítimo para aqueles fins, mas se relacionaria com os fins não como um meio mas como algo diferente? Assim se lançaria luz sobre a experiência singular e em princípio desanimadora de que, em última instância, É impossível “decidir” qualquer problema jurídico – apoiaria que talvez só possa ser comparada com a impossibilidade de uma decisão taxativa sobre o que é “certo” ou “errado” em linguagens que têm uma evolução histórica. Afinal, quem decide sobre a legitimidade dos meios e a justiça dos fins não é jamais a razão, mas o poder* do destino, e quem decide sobre este é Deus. É uma maneira de ver incomum, mas apenas porque existe o hábito arraigado de pensar os fins justos como fins de um direito possível, ou seja, não apenas universalmente válidos (o que seria uma conseqüência analítica do elemento justiça), mas passíveis de universalização – o que está em contradição com esse elemento, como se poderia demonstrar. Pois, fins que são justos, universalmente reconhecíveis, universalmente válidos para uma determinada situação, não o são para nenhuma outra, por parecida que seja sob outros aspectos. Uma função não mediata da violência, tal como está sendo discutida aqui, aparece na experiência de vida cotidiana. Quanto ao ser humano, a ira, por exemplo, o leva às mais patentes explosões de violência, uma violência que não se refere como meio a um fim proposto. Ela não é meio, e sim manifestação. É verdade que esse tipo de violência tem suas manifestações objetivas, onde ela é sujeita à crítica. Elas se encontram, antes de mais nada e de maneira altamente significativa, no mito.
O poder* mítico em sua forma arquetípica é mera manifestação dos deuses. Não meio para seus fins, quase não manifestação de sua vontade, antes manifestação de sua existência. Disso, a lenda de Níobe oferece um excelente exemplo. É verdade que ação de Apolo e Ártemis pode parecer uma mera punição da transgressão de um direito existente. A hybris de Níobe conjura a fatalidade, não por transgredir a lei, mas por desafiar o destino – para uma luta na qual o destino terá de ser o vencedor, podendo engendrar, na vitória, um direito. Até que ponto o poder divino, no sentido da Antigüidade, não era o poder mantenedor da punição, fica patente nas lendas, onde o herói, por exemplo Prometeu, desafia o destino com digna coragem, luta contra ele, com ou sem sorte, e acaba tendo a esperança de um dia levar aos homens um novo direito. É, no fundo, esse herói e o poder jurídico do mito incorporado por ele que o povo tenta tornar presente, ainda nos dias de hoje, quando admira o grande bandido. A violência* portanto desaba sobre Níobe a partir da esfera incerta e ambígua do destino. Ela não é propriamente destruidora. Embora traga a morte sangrenta aos filhos de Níobe, ela se detém diante da vida da mãe, deixando-a – apenas mais culpada do que antes, por causa da morte dos filhos – como suporte mudo eterno da culpa, e também como marco do limite entre homens e deuses. Se esse poder* imediato quer mostrar, em manifestações míticas, que é parente próximo do poder* instituinte do direito ou lhe é idêntico, ele focaliza um problema deste poder, na medida em que este tinha sido caracterizado – na apresentação anterior da violência* da guerra – como um poder* apenas dos meios. Ao mesmo tempo, esta relação promete esclarecer melhor o destino que em todos os casos está subjacente ao poder* jurídico, e, num grande esboço, levar sua crítica a termo. A função do poder- violência, na institucionalização do direito, é dupla no sentido de que, por um lado, a institucionalização almeja aquilo que é instituído como direito, como o seu fim, usando a violência* como meio; e, por outro lado, no momento da instituição do fim como um direito, não dispensa a violência,* mas só agora a transforma, no sentido rigoroso e imediato, num poder* instituinte do direito, estabelecendo como direito não um fim livre e independente de violência (Gewalt), mas um fim necessário e intimamente vinculado a ela, sob o nome do poder (Macht). A institucionalização do direito é institucionalização do poder e, nesse sentido, um ato de manifestação imediata da violência. A justiça é o princípio de toda instituição divina de fins, o poder (Macht) é o princípio de toda institucionalização mítica do direito.(...)
A crítica da violência, ou seja, a crítica do poder, é a filosofia de sua história. É a “filosofia” dessa história, porque somente a idéia do seu final permite um enfoque crítico, diferenciador e decisivo de suas datas temporais. Um olhar dirigido apenas para as coisas mais próximas perceberá, quando muito, um movimento dialético de altos e baixos nas configurações do poder* enquanto instituinte e mantenedor do direito. A lei dessas oscilações consiste em que todo poder mantenedor do direito, no decorrer do tempo, acaba enfraquecendo indiretamente o poder instituinte do direito representado por ele, através da opressão dos antipoderes* inimigos. (Alguns sintomas disso foram apontados ao longo desta análise.) Isso dura até que novos poderes* ou os anteriormente oprimidos vençam o poder* até então instituinte do direito, estabelecendo assim um novo direito sujeito a uma nova decadência. A ruptura dessa trajetória, que obedece a formas míticas de direito, a destituição do direito e dos poderes* dos quais depende ( como eles dependem dele), em última instância, a destituição do poder do Estado, fundamenta ma nova era histórica. Se a dominação do mito em alguns pontos já foi rompida, na atualidade, o Novo não se situa num ponto de fuga tão inconcebivelmente longínquo, que uma palavra contra o direito seja supérflua. Se a existência do pode, enquanto poder puro e imediato, é garantida, também além do direito, fica provada a possibilidade do poder revolucionário, termo pelo qual deve ser designada a mais alta manifestação do poder puro, por parte do homem. A decisão, porém, se o poder puro, num determinado caso, era real, não é possível da mesma maneira, nem igualmente urgente para o homem. Pois com certeza, apenas o poder mítico será identificado com a violência, não o poder divino, a não ser através de efeitos incomensuráveis, já que o poder que absolve da culpa é inacessível ao homem. De nono, o puro poder divino dispõe de todas as formas eternas que o mito transformou em bastardos do direito. O poder divino pode aparecer tanto na guerra verdadeira quanto no juízo divino da multidão sobre o criminoso. Deve ser rejeitado, porém, todo poder* mítico, o poder* instituinte do direito, que pode ser chamado de um poder que o homem põe (schaltende Gewalt). Igualmente vil é também o poder* mantenedor do direito, o poder* administrado (verwaltete Gewalt) que lhe serve. O poder divino, que é insígnia e chancela, jamais um meio de execução sagrada, pode ser chamado de um poder de que Deus dispõe (waltende Gewalt).


* Notas do tradutor
1. Optei por esta tradução do original “Zur Kritik der Gewalt”, uma vez que todo o ensaio é construído sobre a ambigüidade da palavra Gewalt, que pode significar ao mesmo tempo “violência” e “poder”. A intenção de Benjamim é mostrar a origem do direito (e do poder judiciário) a partir do espírito da violência. Portanto, a semântica de Gewalt, neste texto, oscila constantemente entre esses dois pólos; tive que optar, caso por caso, se “violência” ou “poder” era a tradução mais adequada, colocando um asterisco quando as duas acepções são possíveis. (N.T.)
3. Erich Unger, Politik und Metaphysik. (Die Theorie. Versuche zu philosophischer Politik). Berlim, 1928, p. 8.             


FONTE: Revista Religião & Sociedade- 15/1 1990, pp. 132-140.