Alain Badiou: filósofo marroquino radicado em França
Intercessores
Hoje pela manhã topei com “Fantasía Fascista”, um texto de Daniel Link publicado ontem no jornal argentino Perfil. Para minha (muito grata) surpresa, Daniel conversa gentilmente com minhas “notas sobre a 'lei da Burqa'”. Vencido o aturdimento pela notícia – um tanto estranha, é certo – acerca de uma lei dessa espécie, o texto de Daniel explica objetivamente a aparente filiação entre as disposições belgas e francesas e conclui:
“Repito, porque no se me ocurre nada más justo para decir, las conclusiones de mi fuente: una ley que prohibe la ocultación de la cara (además de introducir severas restricciones a las cirugías plásticas y otras formas de cosmética facial), sustrae la posibilidad al mismo tiempo ontológica y política de apropiarse del propio ser (del propio rostro).”
Alain Badiou, uma gestão das identidades
Ainda ontem lia uma passagem de um livro de Alain Badiou; já havia me desapegado completamente desse tema da proibição da Burqa e das políticas de visibilidade e controle do Rosto nas sociedades de controle; estava contente com a explicação; não era necessário nada mais senão uma pitada de Foucault, uma de Deleuze e um tantinho mais de Agamben. Eis que Badiou, ao falar sobre a “Contemporaneidade de Paulo” em seu “São Paulo” - com tradução brasileira de Wanda Caldeira Brant, saída em 2009 pela Boitempo Editorial – escreve:
O cosmopolitismo contemporâneo é uma realidade salutar. Demandaremos somente que a visão de uma jovem que usa véu não coloque em transe seus defensores, o que tememos uma vez que eles não desejam, na realidade, mais do que um verdadeiro tecido de diferenças instáveis, a ditadura uniforme do que acreditam ser a “modernidade”. A questão é saber o que as categorias identitárias e comunitaristas têm a ver com os processos de verdade, por exemplo, com os processos políticos. Respondemos: essas categorias devem ser ausentadas do processo, sem o que nenhuma verdade tem a menor chance de estabelecer sua persistência e de acumular sua infinidade imanente. Aliás, sabemos que as políticas identitárias consequentes, como o nazismo, são guerreiras e criminosas. A ideia de que se possa, mesmo sob a forma da identidade francesa “republicana”, manipular inocentemente essas categorias é inconsistente. Oscilaremos forçosamente entre o universal abstrato do capital e perseguições locais (BADIOU, 2009, p. 19).
Esse texto, que soa tão atual, data do ano de 1997. Adiante, Badiou critica lógica identitária partilhada pelas minorias. Por maiores que sejam as reservas que alguns deleuzianos (inclusive as que eu mesmo nutro) acerca de algumas interpretações de Badiou, seu aporte crítico ainda poderia ser aproveitado, se não em seu fundo, em alguma medida por sua eficácia crítica:
a lógica identitária, ou minoritária, longe de se voltar para uma apropriação dessa tipologia, propõe apenas uma variante da superposição nominal capitalista. Ela polemiza contra todo conceito genérico de arte e o substitui por sua própria conta pelo de cultura, concebido como cultura do grupo, amálgama subjetivo ou representativo de sua existência, destinada a si e potencialmente não universalizável. Além disso, ela não hesita em enunciar que os termos constitutivos dessa cultura são plenamente compreensíveis somente se pertencerem ao subconjunto considerado. Daí os enunciados catastróficos do gênero: somente um homossexual pode “compreender” o que significa ser homossexual, um árabe o que significa ser árabe etc. Se, como pensamos, somente as verdades (o pensamento) permitem distinguir o homem do animal humano que o subentende, não é exagerado dizer que esses enunciados “minoritários” são realmente bárbaros. […]. no caso do amor, demanda-se simetricamente seja o direito genético de ver reconhecido como identidade minoritária esse ou aquele comportamento sexual específico, seja a volta pura e simples às concepções arcaicas, culturalmente estabelecidas, como a conjugabilidade estrita, o aprisionamento das mulheres etc. Os dois podem combinar perfeitamente na reivindicação dos homossexuais de unir o grande tradicionalismo do casamento e da família, ou de vestir, com a bênção do papa, os hábitos do monge. (BADIOU, 2009, p. 19-20)
Nesse ponto, Badiou exagera; ele não se volta contra singularidades, mas guerreia toda pretensão a identidades não-universalizáveis. Nisso, sua pesada – e, a meu ver, em certa medida injusta - crítica àquilo que julga ser uma política identitária dos movimentos homossexuais, quando, como já disse aqui, parece ser mais uma questão de liberar os devires, do que de reconhecimento ou simetria de direitos.
No entanto, Badiou parece apontar para um perigo essencialmente político que Deleuze cansou de repetir; nas palavras de Deleuze: “nunca bastará uma linha de fuga”, é preciso certa prudência ao manejá-la. Embora políticas minoritárias, até mesmo a lei ou o estado possam inaugurar um espaço liso, “Um espaço liso”, dizia ele, “não é nunca libertador por si mesmo”. O problema ainda se encontra na corrente redução das políticas minoritárias com políticas de identidades; quando uma política minoritária se converte em identitária, estão perdidos os devires; toda a potência liberatória esgota-se em uma forma incapaz de variações.
O “Naïf” invisível
Acompanhei com certo interesse nas últimas horas a caixa de comentários ao texto de Daniel Link no jornal argentino Perfil. Os comentários, em sua maioria críticos, são exemplares de que a própria sujeição também é da ordem do desejo. Há comentários um tanto mais elaborados, mas creio que dois dentre os menos elaborados sejam os mais exemplares.
O primeiro, de alguém identificado como trabajador, afirma categoricamente: “LOS CUIDADANOS DEBEN DE ESTAR IDENTICABLES”.Outro, afirma ser estúpido criticar e qualificar como “nazi” medidas que impedem a ocultação do rosto no espaço público; ainda, acusa Daniel de esconder-se atrás de opiniões alheias, embora de bons autores, como Deleuze, Agamben etc. Isso significaria, em última análise, ocultar sua própria opinião.
Tanto o inidentificável trabajador, como Daniel, podem ter precipitado, sem perceber, uma micropolítica de invisibilidades – talvez uma das possíveis formas de resistir a injunções e controles infinitesimais que exigem – nas circunstâncias mais cotidianas - a transparência, a face limpa, a identidade e o fixismo. A resistência pode ser até mesmo inconsciente; no momento em que nos tornamos um trabajador qualquer, ingênuo e impredicável, que fala de “los ciudadanos” como se falasse de outros, sem, no entanto, identificar-se com eles, tampouco consigo mesmo; ou, então, quando nos tornamos, como Daniel é acusado, ghosts writers de sujeitos singulares como Deleuze ou Agamben; resistimos inconscientemente a uma opinião demasiadamente própria, identitária, esgotada. Tiqqun e Foucault teriam muito a ensinar-nos a respeito da perda de sentido do conceito de autor. Os devires são fluxos anônimos e, como eles, permanecemos encarregados da tarefa intensa de suscitar invisibilidades, devires-imperceptíveis que, em Deleuze, não são outra coisa senão devir-todo-mundo; essa pode ter se tornado, então, uma das mais urgentes tarefas do pensamento, da arte e da política: repetir, diferentemente e à nossa maneira, o gesto simples de Deleuze enfiando as unhas no bolso do casaco.