Uma vulgaridade grande demais no pensamento...

31 maio, 2010


Antonin Artaud


« Dobrar as forças a fim de fazer a filosofia tocar um certo ponto da vida é obra de um bom pensamento, e ele não tem nada de inato »

Já há algumas décadas, o ator, escritor e dramaturgo francês Antonin Artaud conclamava os idiotas a açoitarem seu inatismo. Alguns desses idiotas ainda estão entre nós, e continuam a crer terem atingido o ponto ótimo de um pensamento revolucionário e subversivo ao enunciarem a equação “viver = pensar”.
Nomeiam sua filosofia de vida de diversas formas: “crítica”, “vitalismo” etc. Com uma ideia tão ordinária quanto impotente, professam a fé de terem compreendido, finalmente, na simplicidade de uma equação que identifica dois processos irredutíveis – “viver, pensar” -, os mistérios da imanência – mistérios que, segundo julgam, a horda de intelectuais pós-estruturalistas injustificadamente insistiria em complicar.
De posse de seu pequeno objeto, pintam o ordinário com as tintas da pureza medíocre, exaltam a naturalidade e a benevolência de simplesmente “estar entre as coisas”; em suas companhias, respira-se uma senilidade bovina.
Ao som do saltitante tilintar dos sinos que lhes pendem dos colos, vingam-se dos intelectuais atirando-lhes a responsabilidade de fazerem-se claros; esmeram-se em fazer as vezes de suas más consciências ao reproduzirem a antiga metáfora que até mesmo os frankfurtianos tiveram de escutar: “abrigaram-se em ‘torres de marfim’, ‘retiraram-se à solidão de um claustro inacessível’”; acusam-os de serem medíocres homens de rebanho, homines academici, para muito, muito além dos conceitos de Nietzsche ou Bourdieu, dos quais só conhecem um vocabulário superficial e alusório. Falam de rebanhos e do homo academicus não como Nietzsche ou Bourdieu, mas como pastores ignorantes e rancorosos. A supressão do pensamento é sinal de uma fisiologia cansada, de uma musculatura débil, de uma má-consciência vigilante; isto é, de um pensamento vulgar demais para uma vida que não se contenta em ruminar a facticidade, e que sequer faz desse ruminar a obra de um pensamento.
Em uma verdadeira filosofia da imanência, entre a vida e o pensamento, a dobradura é diversa. Dobrar as forças a fim de fazer a filosofia tocar um certo ponto da vida é obra de um bom pensamento, e ele não tem nada de inato, nem de ascético, mas é produto da violência de signos que vêm de fora, e realiza uma seleção pela potência.
A vida ordinária, natural, atual, não possui, en-soi-même, qualquer coisa de filosófica. É capaz de despertar sensações, mas sensações percutidas em corpos impotentes são inertes, não produzem sentido. Por vezes, os idiotas vivenciam sensações suficientemente intensas a ponto de crerem ser isso mesmo o próprio objeto do pensamento. No entanto, o pensamento é o que passa entre a vida e a sensação, e essa sensação demasiadamente intensa confunde-se com o que Artaud tentava indicar há algumas décadas: os signos exteriores, a violência que leva a pensar, o açoite que, cortando o ar, fustiga o inatismo dos idiotas.
Porque o idiota é antes de tudo um ego, permanece estúpido no seio dessa possibilidade. Tudo se passa, e só pode se passar, com ele. Ídios designa aquele mais próprio, mais particular; a idiotia é o máximo a que pode chegar uma identidade (eudade). Na Grécia antiga, o idiota é o sujeito que apenas se ocupa consigo mesmo, mas não com os assuntos da pólis; já no século XII, idiota significará, a um só tempo, o ignorante, o inculto, mas também o plebeu, o homem comum, o medíocre.
Pelo simples fato de sentirem o vento tocar seus rostos, os medíocres crêem-se completamente integrados à natureza, mas apenas na medida em que só podem fazer um uso absolutamente próprio, particular, privado dessas sensações. Lêem no Zaratustra sobre o ar puro das montanhas, e logo se lançam a escalar o primeiro objeto ligeiramente maior que si mesmos - o que são capazes de encontrar com rara facilidade.
O pensamento é que poderia tirá-los do seio da idiotia, da auto-referência e da futilidade; no entanto, um idiota sempre se encontra “estúpido” no seio dessa possibilidade.
“Como fazer meu eu escapar de mim mesmo?”, acorda-se um idiota. “Como construir uma torre de marfim suficientemente alta para que os idiotas me deixem em paz”, apressam-se os intelectuais. Os intelectuais não constroem “torres de marfim” por superioridade, mas para fugir da insidiosa presença das vulgaridades do pensamento.
Sempre pudemos experimentar essa vergonha que advém de ouvir um pensamento demasiadamente vulgar; impropriamente, alguns a chamam “vergonha alheia”. Ao contrário, trata-se da vergonha mais própria, mais particular, que ressoa no seio de nossa própria idiotia – naquela parcela em que somos um sujeito, em que podemos dizer “eu”, e o fazemos impunemente. 
Na vulgaridade do idios que se pôs a pensar, reconhecemos a vulgaridade de todo pensamento, do homem que nos habita o interior mais próprio e do qual é urgente que nos desfaçamos. O homem vulgar crê em uma eudade superior que defende com as frágeis armas da crítica, do senso ordinário, com os slogans morais dos telejornais de meio-dia. Paramentado, inspira-se, quando talvez fizesse melhor em respirar. Não consegue presenciar um acontecimento sem, de imediato, embutir nele um julgamento demasiadamente pessoal.
A vergonha de ser um homem - aquela que reconhece a partilha dessa vulgaridade demasiadamente humana em um pensamento -, constitui um signo que violenta a pensar, e faz de nossa própria vida, inseparável de sua forma, a grande prova pela qual temos de fazer passar a intensidade pura de um pensamento. Trata-se da prova de que o pensamento pode tocar verdadeiramente uma vida invulgar, singular, impessoal – e, para isso, ensinavam-nos Nietzsche e Artaud, sequer é desejável a “faculdade” de julgar. Só assim, fugindo ao juízo, e ao preço de suportar essa violência que impele a pensar, poderíamos desfazer-nos da vergonha de ser um homem, da vulgaridade de um pensamento censor, demasiadamente particular, humano, cristão, reativo.

A potência do pensamento, por Giorgio Agamben

27 maio, 2010


Texto de Giorgio Agamben
Tradução de Carolina Pizzolo Torquato

O QUE SIGNIFICA: "EU POSSO"?

O conceito de potência tem, na filosofia ocidental, uma longa história e, pelo menos a partir de Aristóteles, ocupa um lugar central dentro dela. Aristóteles opõe - e, ao mesmo tempo, vincula - a potência (dynamis) ao ato (energeia) e essa oposição, que atravessa tanto a sua metafísica quanto a sua física, foi transmitida por ele como hereditariedade primeiro à filosofia e depois à ciência medieval e moderna. Se decidi falar-lhes do conceito de potência, é porque o meu objetivo não é simplesmente historiográfico. Não se trata, para mim, de dar novamente atualidade a categorias filosóficas há muito caídas no esquecimento; estou convicto, ao contrário, de que esse conceito nunca parou de operar na vida e na história, no pensamento e na práxis daquela parte da humanidade que ampliou e desenvolveu de tal forma a sua "potência", a ponto de impor o seu "poder" a todo o planeta. Antes, seguindo o conselho de Wittgenstein, segundo o qual os problemas filosóficos tornam-se mais claros se os reformulamos como perguntas sobre o significado das palavras, eu poderia enunciar o tema da minha pesquisa como uma tentativa de compreender o significado do sintagma "eu posso". O que pretendemos dizer quando dizemos: "eu posso, eu não posso"?
Na breve introdução à coletânea Requiem, Anna Achmatova conta como aquelas poesias nasceram. Eram os anos da Ezovschina e havia meses a poetisa fazia fila em frente à prisão de Leningrado com a esperança de ter notícias do seu filho, preso por delitos políticos. Junto dela, estavam na fila dezenas de outras mulheres que se reencontravam todos os dias no mesmo lugar. Numa manhã, uma dessas mulheres a reconheceu e lhe fez esta única pergunta: "a senhora pode dizer isto"? Achmatova ficou muda por um instante e depois, sem saber por que, deparou-se com a resposta nos lábios: "sim, eu posso".
Perguntei-me muitas vezes o que Achmatova pretendia dizer. Talvez que tivesse um talento poético tão grande, que soubesse manejar com tanta habilidade a linguagem, a ponto de poder descrever aquela experiência tão atroz, tão difícil de dizer? Não acredito, não era isso que ela queria dizer. Chega para todo homem o momento em que ele deve pronunciar este "eu posso", que não se refere a uma certeza nem a uma capacidade específica, e que, no entanto, o compromete e o coloca inteiramente em jogo. Este "eu posso" além de qualquer faculdade e de qualquer savoir-faire, essa afirmação que não significa nada, coloca o sujeito imediatamente diante da experiência talvez, mais exigente - e, no entanto, ineludível - com a qual lhe seja dado medir-se: a experiência da potência.


O QUE É UMA FACULDADE?

"Há, porém, uma aporia: por que não há sensação dos próprios sentidos (ton aistheseon aisthesis)? Por que, na ausência de objetos externos, eles não provocam sensação, mesmo tendo em si o fogo, a água e os outros elementos dos quais há sensação? Isso ocorre porque a faculdade sensitiva (to aisthetikon) não é em ato, mas apenas em potência (dynamei monon). Por isso ela não sente sensação, assim como o combustível não queima por si só, sem um princípio de combustão; do contrário consumiria a si mesmo e não precisaria de fogo existente em ato (entelecheiai ontos)".
Nós estamos tão acostumados a representar a sensibilidade como uma faculdade da alma, que esse fragmento doDe anima (417a 2-9) não nos parece colocar problemas. O vocabulário da potência penetrou tão profundamente em nós que não nos damos conta de que, naquelas linhas, aparece pela primeira vez um problema fundamental que, como tal, vem à luz, na história do pensamento ocidental, apenas em alguns momentos decisivos (um desses momentos, no pensamento moderno, é a obra de Kant). Esse problema - que é o problema original da potência - enuncia-se na pergunta: "o que significa possuir uma faculdade? De que forma algo como uma 'faculdade' existe?"
A Grécia arcaica não concebia a sensibilidade, a inteligência (ou, menos ainda, a vontade) como "faculdades" de um sujeito. A própria palavra aisthesis é, na sua forma, um nome de ação em -sis, que expressa uma atividade real. Como pode existir, portanto, uma sensação na ausência de sensação, uma aisthesis no estado de anestesia? Essas perguntas nos introduzem imediatamente no problema daquilo que Aristóteles chama dynamis, potência (um termo - será bom lembrar - cujo significado é tanto o de potência quanto o de possibilidade, sendo que esses dois significados não deveriam jamais ser dissociados, como infelizmente acontece nas tradições modernas). Quando dizemos que um homem tem a "faculdade" de ver, a "faculdade" de falar (ou, como Hegel escreve e Heidegger repetirá a seu modo, a "faculdade" da morte), quando afirmamos simplesmente "isso não está dentro das minhas faculdades", já nos movemos na esfera da potência. Ou seja, o termo "faculdade" exprime o modo em que uma certa atividade é separada de si mesma e destinada a um sujeito, o modo em que um ser vivo "tem" a sua práxis vital. Algo como uma "faculdade" de sentir é distinta do sentir em ato, a fim de que isso possa ser referido propriamente a um sujeito. Nesse sentido, a doutrina aristotélica da potência contém uma arqueologia da subjetividade, é a forma com a qual o problema do sujeito se anuncia a um pensamento que ainda não tem essa noção. Exis (de echo, ter), hábito, faculdade é o nome que Aristóteles dá a essa in-existência da sensação (e das outras "faculdades") em um ser vivo. Aquilo que é assim "tido" não é uma simples ausência, mas tem na realidade a forma de uma privação (no vocabulário de Aristóteles, steresis, privação, está estrategicamente relacionada com exis), ou seja, de algo que atesta a presença daquilo que falta no ato. Ter uma potência, ter uma faculdade significa: ter uma privação. Por isso a sensação não sente a si mesma, como o combustível não queima a si mesmo. A potência é, portanto, a exis de uma steresis: "às vezes", lê-se em Met. 1019 b, 5-8, "o potente é tal porque tem algo, às vezes porque lhe falta algo. Se a privação é de uma certa forma uma exis, o potente é tal ou porque tem uma certa exis, ou porque tem a steresis dela".


TER UMA PRIVAÇÃO

Que interesse a Aristóteles essa segunda forma da potência (ter uma privação) é evidente na passagem do De anima que segue aquela da qual pegamos a deixa. Aristóteles distingue aqui (417 a 21 sq.) uma potência genérica - que é aquela segundo a qual dizemos que uma criança tem a potência da ciência, ou que é um arquiteto ou chefe de Estado em potência - da potência que compete a quem já tem a exis correspondente àquele certo saber ou àquela certa habilidade. É nesse segundo sentido que se diz que o arquiteto tem a potência de construir mesmo quando não está construindo, ou que o tocador de cítara tem a potência de tocar mesmo quando não toca. A potência que está em questão aqui difere essencialmente da potência genérica que compete à criança. A criança, escreve Aristóteles, é potente no sentido de que deverá sofrer uma alteração por meio do aprendizado; aquele que já possui uma técnica, ao contrário, não deve sofrer uma alteração, mas é potente a partir de umaexis, que pode não colocar em ato ou atuar, passando de um não ser em ato a um ser em ato (ek tou... me energein eis to energein - 417b, 1). Quer dizer, a potência é definida essencialmente pela possibilidade do seu não-exercício, assim como exis significa: disponibilidade de uma privação. Ou seja, o arquiteto é potente enquanto pode não-construir, e o tocador de cítara é tal porque, diferentemente daquele que se diz potente apenas em sentido genérico e que simplesmente não pode tocar a cítara, ele pode não-tocar a cítara.
É desse modo que Aristóteles responde, na Metafísica, à tese dos Megáricos, que afirmavam, aliás, não sem boas razões, que a potência existe apenas no ato (energei mono dynastai, otan me energei ou dynastai - 1046b, 29-30). Se isso fosse verdade, objeta Aristóteles, nós não poderíamos considerar arquiteto o arquiteto mesmo quando não constrói, nem chamar o médico de médico no momento em que ele não está exercitando a sua arte. Isto é, está em questão o modo de ser da potência, que existe na forma da exis, da soberania sobre uma privação. Há uma forma, uma presença daquilo que não é em ato, e essa presença privativa é a potência. Como Aristóteles afirma sem reservas numa passagem extraordinária da sua Física: "a steresis, a privação, é como uma forma (eidos ti, uma espécie de rosto: eidos de edenai, ver)" (193b 19-20).


DO ESCURO

Uma das figuras mais significativas dessa presença privativa da potência é, no De anima, o escuro (skotos). Aristóteles trata aqui da sensação e, particularmente, da visão (418a, 26 - 418b, 31). Objeto da vista, ele escreve, é a cor e mais alguma outra coisa para a qual não temos um nome, mas que ele sugere chamar de o diáfano (diaphanes). O termo aqui não se refere simplesmente aos corpos transparentes, como o ar ou a água, mas a uma certa "natureza" (physis) presente neles e que constitui aquilo que é propriamente visível em todos os corpos. Aristóteles não define essa natureza, mas se limita a postular sua existência (esti ti diaphanes, há o diáfano); ele afirma, porém, que o ato dessa natureza como tal é a luz e que as trevas são a sua potência (418b, 9-10). E se a luz é, como ele acrescenta logo depois, a cor do diáfano em ato (chroma... tou diaphanous otan ei entelecheiai diaphanes), então não seria errado definir o escuro, que é a steresis da luz, como a cor da potência. De qualquer forma, é apenas uma e a mesma natureza que se apresenta ora como as trevas e ora como luz (e gar aute physis ote men skotos ote de phos estin - 418b, 31).
(O lugar comum que sustenta que a metafísica antiga seja uma metafísica da luz não é, portanto, correto. Trata-se, na verdade, de uma metafísica do diáfano, dessa physis anônima capaz tanto das trevas quanto da luz).
Algumas páginas depois, fa-lando do senso comum, Aristóteles se pergunta como se dá o fato de, enquanto vemos, sentimos que vemos (aisthanometha oti oromen) ou, enquanto ouvimos, sentimos que ouvimos. No que concerne à vista, isso pode acontecer ou porque sentimos ver com um outro sentido ou com a própria vista. A resposta de Aristóteles é a de que nós sentimos ver com o mesmo sentido com o qual vemos. Isso implica, porém, uma aporia: "dado que sentir com a vista significa ver, e aquilo que se vê é a cor mais aquilo que a cor tem, então, se aquilo que vemos é aqui o próprio vidente, é preciso que o princípio do ver (to oron proton) seja, por sua vez, colorido. É claro, portanto, que 'sentir com a vista' tem mais de um significado, já que mesmo quando não vemos, distinguimos com a vista as trevas da luz. Portanto, o princípio da visão é de algum modo colorido" (425b 17-25).
Nessa passagem extraordinária, na qual o problema da potência mostra a sua relação essencial com o da auto-afecção, Aristóteles retoma e desenvolve a pergunta inicial: "por que, na ausência de objetos externos, não há sensação dos próprios sentidos?", à qual tinha respondido afirmando que isso ocorre porque a sensação é em potência, e não em ato. As considerações seguintes permitem uma melhor compreensão do significado dessa resposta. Quando não vemos (quer dizer: quando a nossa vista permanece em potência), ainda assim nós distinguimos o escuro da luz, vemos, por assim dizer, as trevas como cor da visão em potência. O princípio da visão "é, de alguma forma, colorido", e as suas cores são o escuro e a luz, a potência e o ato, a privação e a presença. Isso significa que sentir ver é possível porque o princípio da visão existe tanto como potência de ver quanto como potência de não-ver, e esta última não é uma simples ausência, mas algo existente, a exis de uma privação. A neurofisiologia moderna parece, neste ponto, estar de acordo com Aristóteles. Quando, pela ausência de fontes luminosas ou porque estamos com os olhos fechados, não vemos objetos externos, isso não significa para a retina a ausência de todas as atividades. O que acontece, ao contrário, é que a falta de luz coloca em função uma série de células periféricas chamadas off-cells, que produzem aquela auto-afecção particular da retina que nós chamamos de escuro. A escuridão é realmente a cor da potência, e a potência é essencialmente a disponibilidade de uma steresis, potência de não-ver.


POTÊNCIA PARA AS TREVAS

Em seu comentário ao De anima, Temístio nota com singular perspicácia todas as implicações dessa passagem. "Se a sensação não tivesse uma potência tanto para o ato como para o não-ser-em-ato, se ela fosse sempre e somente em ato, ela não poderia jamais distinguir o escuro (skotos) nem ouvir o silêncio; da mesma forma, se o pensamento (nous) não fosse capaz tanto do pensamento quanto do não-pensamento (anoia), não poderia jamais conhecer o sem-forma (amorphon), o mal, o sem-figura (aneideon)... Se o pensamento não tivesse algo em comum com a potência, não conheceria a privação (steresis)".
A grandeza - mas também a miséria - da potência humana está no fato de ela ser, também e sobretudo, potência de não passar ao ato, potência para as trevas. Se se considera que skotos, no grego homérico, é antes de tudo as trevas que invadem o homem no momento da morte, é possível medir todas as conseqüências dessa vocação anfíbia da potência. A dimensão que ela destina ao homem é o conhecimento da privação, ou seja, nada menos que a mística como fundamento secreto de todo o seu saber e de todo o seu agir (a idéia medieval de umAristoteles mysticus mostra, aqui, a sua pertinência). Se a potência fosse, de fato, apenas potência de ver ou fazer, se ela existisse como tal apenas no ato que a realiza (e uma potência assim é aquela que Aristóteles chama de natural e destina aos elementos e aos animais alógicos), então nunca poderíamos ter a experiência do escuro e da anestesia, nunca poderíamos conhecer e, portanto, dominar a steresis. O homem é o senhor da privação porque mais que qualquer outro ser vivo ele está, no seu ser, destinado à potência. Mas isso significa que ele está, também, destinado e abandonado a ela, no sentido de que todo o seu poder de agir é constitutivamente um poder de não-agir e todo o seu conhecer; um poder de não-conhecer.


TODA POTÊNCIA É IMPOTÊNCIA

É no livro theta da Metafísica que Aristóteles procurou confrontar-se exaustivamente com as ambigüidades e as aporias da sua teoria da potência. O momento talvez decisivo desse confronto está nas passagens em que ele define o co-pertencer constitutivo da potência e da impotência. "A impotência (adynamia)", ele escreve (1046a 29-32), "é uma privação contrária à potência (dynamis). Toda potência é impotência do mesmo e em relação ao mesmo (do qual é potência) (tou autou kai kata to auto pasa dynamis adynamia)". Adynamia, impotência não significa aqui ausência de toda potência, mas potência de não (-passar ao ato), dynamis me energein. A tese define, assim, a ambivalência específica de toda potência humana, que, na sua estrutura originária, se mantém relacionada com a própria privação, é sempre - e em relação à mesma coisa - potência de ser e de não ser, de fazer e de não fazer. É essa relação que constitui, para Aristóteles, a essência da potência. O ser vivo, que existe no modo da potência, pode a própria impotência, e apenas dessa forma possui a própria potência. Ele pode ser e fazer porque se mantém relacionado ao próprio não ser e não-fazer. Na potência, a sensação é constitutivamente anestesia, o pensamento não-pensamento, a obra inoperosidade. Poucas linhas depois, Aristóteles precisa ainda mais esse estatuto anfibólico da potência humana: "Aquilo que é potente (dynatos) pode (endechetai) não ser em ato (me energein). Aquilo que é potente de ser pode tanto ser quanto não ser. O mesmo é, de fato, potente de ser e de não ser (to auto ara dynaton kai einai kai me einai)" (1050b 10-).Dechomai significa "acolho, recebo, admito". Potente é aquilo que acolhe e deixa acontecer o não ser e esse acolher do não ser define a potência como passividade e paixão fundamental. E é nesse dúplice caráter da potência que, como é evidente no próprio termo com o qual Aristóteles expressa o contingente (to endechomenon), radica-se o problema da contingência, da possibilidade de não ser.
Se lembramos que, na Metafísica, os exemplos da potência-de-não são quase sempre retirados do âmbito das técnicas e dos saberes humanos (a gramática, a música, a arquitetura, a medicina etc.), podemos então dizer que o homem é o ser vivo que existe em modo eminente na dimensão da potência, do poder e do poder-não. Toda potência humana é, cooriginariamente, impotência; todo poder-ser ou -fazer está constitutivamente relacionado, para o homem, com a própria privação. E essa é a origem da incomensurabilidade da potência humana, muito mais violenta e eficaz que aquela dos outros seres vivos. Os outros seres vivos podem apenas a potência específica deles, podem apenas este ou aquele comportamento inscrito na vocação biológica deles; o homem é o animal que pode a própria impotência. A grandeza da sua potência é medida pelo abismo da sua impotência.


POTÊNCIA, NÃO LIBERDADE

Poder-se-ia sentir a tentação de reconhecer nessa doutrina da natureza anfibólica de toda potência o lugar no qual o problema moderno da liberdade poderia encontrar o seu fundamento. Isso ocorre porque a liberdade como problema nasce justamente do fato de que todo poder é também, imediatamente, um poder-não, toda potência também uma impotência. Autenticamente livre, nesse sentido, seria não quem pode simplesmente realizar esse ou aquele ato, nem simplesmente quem pode não realizá-lo, mas aquele que, mantendo-se relacionado com a privação, pode a própria impotência.
Como, então, Aristóteles, além de não mencionar nunca nesse contexto o termo "liberdade", também não evoca de nenhuma forma o problema da vontade e da decisão? É evidente, como Schlomo Pines mostrou com clareza, que para um grego o conceito de liberdade define um status e uma condição social e não, como para os modernos, algo que possa se referir à experiência e à vontade de um sujeito. Mas decisivo é o fato de que, para Aristóteles, a potência, enquanto se determina como exis de uma privação, como potência de não-fazer e de não-ser, não pode ser destinada a um sujeito como um direito ou como uma propriedade. No dicionário filosófico contido no livro delta da Metafísica (1022b, 7-10), lê-se que se a exis é uma relação entre aquele que tem e aquilo que é tido, então "é impossível ter uma exis (echein exin; exis, habitus é o deverbal de "ter"), já que se chegaria ao infinito, se fosse possível ter o hábito daquilo que se tem".
Que a exis de uma potência não possa ser, por sua vez, possuída, isso significa a impossibilidade de um sujeito no sentido moderno, isto é, de uma consciência auto-reflexiva como centro de imputação das faculdades e dos hábitos. Mas isso significa também que o problema da potência não tem, para um grego - e provavelmente com razão -, nada a ver com o problema da liberdade de um sujeito.


NADA HAVERÁ DE IMPOTENTE

Chegou o momento de questionar mais de perto a relação entre potência e impotência, entre poder e poder-não. Como pode, de fato, uma potência passar ao ato, se toda potência já é sempre potência de não passar ao ato? E como podemos pensar o ato da potência-de-não? O ato da potência de tocar piano é certamente, para o pianista, a execução de um trecho no piano; mas qual será, para ele, o ato da sua potência de não tocar? E o que acontece com essa potência de não tocar no momento em que ele começa a tocar? Assim, o ato da potência de pensar será pensar este ou aquele pensamento; mas como pensar o ato da potência de não-pensar? Será que as duas potências são tão assimétricas e heterogêneas que essas perguntas simplesmente não têm sentido? E, no entanto, se nas palavras de Aristóteles, "toda potência é impotência do mesmo e em relação ao mesmo", o problema do destino da impotência na passagem ao ato não pode simplesmente ser deixado de lado.
A resposta que Aristóteles dá a essas perguntas constitui, mesmo na sua drástica brevidade, um dos resultados mais extraordinários do seu gênio filosófico; e, todavia, não foi ouvida na tradição da filosofia:
Esti de dynaton touto, hoi ean yparxei he energeia hou legetai echein ten dynamin, ouden estai adynaton. (Met. 1047a, p. 24-25).
É potente aquilo para o qual, se ocorre o ato do qual é dito haver a potência, nada haverá de impotente.
A leitura comum entende essa frase como se Aristóteles quisesse dizer: é possível, isto em relação a que não há nada de impossível. Já Heidegger, no seu curso sobre o livro theta da Metafísica, tinha ironizado sobre a "vácua sutileza" dos intérpretes que, com um "sentimento de triunfo mal dissimulado", atribuem a Aristóteles uma semelhante tautologia. A impotência, da qual se diz que no momento do ato não será nada, não pode ser, na verdade, senão aquela adynamia que, segundo Aristóteles, pertence a toda dynamis: a potência de não (ser ou fazer). A tradução correta é, portanto: "é potente aquilo para o qual, se ocorre o ato do qual é dito haver a potência, nada haverá de potente não (ser ou fazer)". Mas como entender, então: "nada haverá de potente não -"? Como a potência pode neutralizar a impotência que lhe co-pertence?
Uma passagem do De Interpretatione fornece algumas indicações preciosas. Em relação às negações dos enunciados modais, Aristóteles distingue, e ao mesmo tempo relaciona, o problema da potência e o da enunciação modal. Enquanto a negação de um enunciado modal deve negar o modo e não o dictum (por isso a negação de "possível que seja" é "não possível que seja" e a negação de "possível que não seja" é "não possível que não seja"), no plano da potência as coisas não são diferentes e negação e afirmação não se excluem. "Já que aquilo que é potente não é sempre em ato", escreve Aristóteles, "a negação também lhe pertence: de fato, pode até não caminhar aquilo que é capaz de caminhar, e pode não ver aquilo que pode ver" (21b, 14-16). Por isso, no livro theta e no De anima, a negação da potência (ou melhor, a sua privação) tem, como vimos, sempre a forma: "pode não" (e nunca a forma: "não pode"). "Por isso parece que as expressões 'possível que seja' e 'possível que não seja' sucedem uma à outra, já que a mesma coisa pode ser e não ser. As enunciações desse gênero não são, portanto, contraditórias. Por outro lado, 'possível que seja' e 'não possível que seja' nunca estão juntas" (21b, 35-22a, 2).
Se chamamos de privação o estatuto da negação na potência, como entender em modo privativo a dupla negação contida na frase: "nada haverá de potente não (ser ou fazer)"? Enquanto não contraditória em relação à potência de ser, a potência de não ser não deve aqui se anular simplesmente, mas, voltando-se para si mesma, deverá assumir a forma de um poder não-não ser. A negação privativa de "potente não ser" é "potente não-não ser" (e não "não potente de não ser").
Aquilo que Aristóteles diz na passagem em questão é, portanto, algo muito diferente e mais interessante do que aquilo que a leitura tautológica dos comentadores modernos lhe faz dizer. Se uma potência de não ser pertence originalmente a toda potência, será verdadeiramente potente apenas quem, no momento da passagem ao ato, não anulará simplesmente a própria potência de não, nem a deixará para trás em relação ao ato, mas fará com que ela passe integralmente nele como tal, isto é, poderá não-não passar ao ato".


DOAÇÃO E SALVAÇÃO

Podemos agora responder às perguntas que tínhamos feito: o que acontece com a potência de não, no momento em que o ato se realiza? Como pensar o ato de uma potência de não - ? A interpretação que propomos obriga-nos a pensar, de uma forma nova e não banal, a relação entre potência e ato. A passagem ao ato não anula nem exaure a potência, mas esta se conserva no ato como tal e marcadamente na sua forma eminente de potência de não (ser ou fazer). É o que Aristóteles diz com clareza numa passagem do De anima (417b, 2-16), da qual podemos agora compreender todas as implicações decisivas.
"Padecer (paschein) não é um termo simples, mas, em um certo sentido, significa uma certa destruição por obra do contrário, em um outro, significa na verdade a conservação (soteria) daquilo que é em potência naquilo que é em ato e se parece com ele, da mesma forma que a potência (se conserva) em relação ao ato. De fato, aquele que possui a ciência torna-se contemplante em ato (theoroun) e isso não é uma alteração (alloiusthai, tornar-se outro), visto que há doação para si mesmo (epidosis eis eauto) e para o ato".
A potência (a única potência que interessa a Aristóteles, aquela que parte de uma exis) não passa ao ato sofrendo uma destruição ou uma alteração; o seu paschein, a sua passividade consiste, na verdade, em uma conservação e em um aperfeiçoamento de si (epidosis, literalmente "doação acrescida", significa também "acréscimo": Willem van Moerbeke traduz in ipsum id additio, e Temístio glosa teleiosis, cumprimento).
Nós devemos ainda medir todas as conseqüências dessa figura da potência que, doando-se a si mesma, se salva e cresce no ato. Ela obriga-nos a repensar do zero não apenas a relação entre a potência e o ato, entre o possível e o real, mas também a considerar de uma forma nova, na estética, o estatuto do ato de criação e da obra, e na política, o problema da conservação do poder constituinte no poder constituído. Mas é toda a compreensão do ser vivo que deve ser revogada em questão, se é verdade que a vida deve ser pensada como uma potência que excede incessantemente as suas formas e as suas realizações. Talvez apenas sob essa perspectiva podemos enfim entender a natureza do pensamento, se é verdade, como Aristóteles não se cansa de repetir, que é a potência que define a sua essência. Como ele escreve numa passagem ampliada do De anima(429b, 6-10):
Quando (o pensamento) tornou-se cada coisa, no sentido em que aquele que sabe é dito tal em ato (e isso acontece quando pode passar ao ato por si), então de alguma forma ele permanece também em potência... e pode portanto pensar a si mesmo.
Aquilo que a tradição filosófica habituou-nos a considerar como o vértice do pensamento e, ao mesmo tempo, como o próprio cânone da energeia e do ato puro - o pensamento do pensamento - é, na verdade, a doação extrema da potência a si mesma, a figura completa da potência do pensamento. 


*Referência: AGAMBEN, Giorgio. A potência do pensamento. Rev. Dep. Psicol.,UFF,  Niterói,  v. 18,  n. 1, June  2006. Available from . access on  25  May  2010.  DOI: 10.1590/S0104-80232006000100002.


Evento: História Conceitual e Linguagens do Ideário Político

26 maio, 2010



Segue notícia de um interessante evento de História do Direito que terá lugar no CPGD/UFSC. Digo interessante, principalmente, pelos debates acerca das obras de Skinner, Pocock e Koselleck. Aqueles que estiverem em Florianópolis, vale conferir de perto. Inscrições gratuitas. [Fonte: http://www.cpgd.ufsc.br/

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O CPGD e o Instituto Brasileiro de História do Direito (IBHD) convidam a todos para o seminário História conceitual e linguagens do ideário político- Novos horizontes para a abordagem histórica do direito, que terá lugar no CPGD (3. andar do Centro de Ciências Jurídicas da UFSC, Campus Trindade) no dia 27 de maio de 2010, das 14:00h às 18:40h. Além de discutir as obras de Skinner, Pocock e Koselleck, bem como o diálogo destes com a História do Direito (Stolleis, Gagnér, Mohnhaupt), o evento apresentará novos métodos e novas linhas de pesquisa que estão surgindo no campo da história do direito brasileiro.

As inscrições, gratuitas, poderão ser feitas no próprio local do evento.
História conceitual e linguagens do ideário político- Novos horizontes para a abordagem histórica do direito

Coordenador: Prof. Dr. Airton Cerqueira Leite Seelaender
Local/data: CPGD (CCJ/UFSC, 3. andar), 27 de maio de 2010.


Programação:
14:00h Abertura: Prof.Dr. Antônio Wolkmer (UFSC/IBHD) Prof.Dr. Arno Dal Ri Jr (UFSC/IBHD)
14:15h-16:15 1a.Mesa: Linguagem política e historicidade Presidência: Profa.Dra. Thais Colaço (UFSC/IBHD)
14:15h-15:00h Prof. Dr. Ricardo Silva (UFSC): História e linguagem política na obra de Quentin Skinner
15:00h-15:15h Debates
15:15h-16:00h Prof. Dr. Christian Lynch (UFF):
Linguagens políticas e direito constitucional: o caso imperial brasileiro.
16:00h-16:15h Debates

16:15h-16:45 Pausa para café

16:45-18:30h 2a.Mesa: História da linguagem política e história conceitual: novos desafios para a História do Direito Presidência: Profa.Dra. Jeanine Philippi (UFSC)
16:45h-17:30 Prof. Dr. Airton Seelaender (UFSC/IBHD): A trilha dos conceitos: a nova história do direito e seus novos desafios.
17:30h-18:15 Prof. Dr. Arno Wehling (IHGB/UGF/IBHD): Conceitos histórico-jurídicos e construção da estatalidade no Brasil.
18:15h-18:40h Debates
18:40h Encerramento: Prof.Dr.José Isaac Pilati (UFSC/IBHD)


Seminário de Agamben: uma genealogia do monasticismo

24 maio, 2010



Subtrações: sexo, corpo, experiência



#Suscitar acontecimentos


Coluna mensal de Murilo Duarte Costa Corrêa n'O Pensador Selvagem
Editor do blog de Filosofia e Teoria do Direito 
A Navalha de Dalí



1. Se retornássemos ao período vitoriano, em meados do século XIX, veríamos, como Michel Foucault, o sexo elevado à condição de tema central das preocupações de uma cultura. Normalizar um aspecto da vida, seja ele a loucura, o crime, a doença mental ou a sexualidade, implica por em obra dispositivos culturais que se ocupam em produzir e em constituir em suas margens os próprios fenômenos da loucura, do crime, da doença mental e da sexualidade. Eis o que, em Foucault, dá sentido à tese de poderes constitutivos, fabris e não meramente repressores ou negativos.
Por um lado, essas ocupações ocorrem no interior de um sistema de práticas bem-delimitado, chamado normal; ao mesmo tempo que se normaliza o sexo ou a loucura, em que eles dispõem de uma espécie de norma, cria-se, co-extensivamente, mais perversão e mais delírio, na medida em que a perversão e o delírio tornam-se operadores conceituais necessários ao sexo-norma ou ao modelo do razoável). O período vitoriano teria sido exemplar como prova disso: a maciça repressão sexual e ao corpo não apenas constituiu o sexo como um objeto digno de um campo de preocupações próprio, mas pôde conviver durante um longo período com pequenas efervescências perversas, que foram capturadas, mais tarde, pela própria medicina ao estabelecer o comportamento sexual cosidetto normal, mas também pela literatura de Sade e Sacher-Masoch, por exemplo.

2. Georges Battaille (1960, p. 71), em L’Erotisme, afirmara que “a transgressão suspende o interdito sem suprimí-lo”; indo além de Bataille, mas aproveitando a relação referencial entre o ato de transgressão e a afirmação dos conteúdos e da própria vigência da lei violada no seio dessa mesma transgressão, pode-se notar que a lei não se constitui sem constituir a possibilidade da transgressão. Assim como o sexo normal não pode ser constituído sem atrelar-se negativamente a uma série de perversões às quais parece negar vigência, tampouco o conceito de loucura pode estabelecer-se sem implicar uma certa dinâmica entre psiquismo normal e delirante. No seio do sexo-norma, como no da razão, constituem-se os conceitos de perversão e de delírio como seus limites negativos. O que não se pode dizer com certeza é até que ponto eles são exteriores ou interiores aos conceitos que constituem.
Embora na filosofia de Foucault não se possa confundir Lei e norma, ambas possuem sempre um referente, uma espécie de exterioridade impura que capturam excluindo-a do âmbito de sua aplicação com a finalidade, aparentemente paradoxal, de constituir seu âmbito normal de incidência.
Disso já podemos compreender o grande mal-estar de Giorgio Agamben ao arrostar um projeto político como o battailliano. A lei só se constitui supondo seu próprio bando – esse momento “excepcional”, mas ao mesmo tempo tão ordinário, em que se aplica desaplicando-se. Não é da condição normal da lei aplicar-se sobre a transgressão, mas como ela deixaria de aplicar-se se o ato de transgressão traz em si a marca simbólica daquilo que atravessa e constitui a lei em seus conteúdos cingidos por uma forma pura? Isso, entretanto, está muito longe de ser uma aporia. Ao contrário, constitui a própria dinâmica paradoxal que faz com que a norma encontre fundamento apenas na exceção.

3. Se o período vitoriano ocupava-se do sexo, mas apenas como quem se ocupa de um segredinho nojento, hoje não deixamos de ocupar-nos com ele; nem tão secreto, nem tão nojento. Fala-se, mesmo, em uma espécie de retorno do dionisíaco e do orgiástico que, ao que parece, faz-se de maneira intensamente liberadora; contudo, em seu fundo, ainda podemos encontrar a sexualidade como um dos terrenos par excellence em que se revela o corpo a corpo entre homens e dispositivos. O dispositivo da sexualidade, dentre outros dispositivos que anexamos a ele, produz correntes de subjetivação (fabricam sujeitos) ou de dessubjetivação (desconstituem, ou dissolvem, sujeitos).
Gostaria de citar alguns exemplos. É comum ouvirmos que vivemos uma espécie de retorno do culto ao corpo; jovens são capazes de passar horas enfurnados nas academias; idosos fazem musculação diariamente porque assim acreditam evitar os males da osteoporose, ou ganhar sobrevida – mesmo que não saibam exatamente muito bem para quê. Contudo, isso parece ir na contramão de tudo o que diz respeito a um retorno de culto ao corpo e aos prazeres, a um hedonismo eudemonista.
Já não cultuamos o corpo como puro meio, como um suporte físico a ser consumido pela vida compreendida como experiência. Tampouco somos capazes de ver no corpo um servo fiel do gozo; hoje, cultuamos o corpo como pura forma. O bodybuilding constitui o paradigma e o programa de nossa atual relação com o corpo: severas restrições alimentares, dieta, exercícios permanentes, ocupações infinitesimais, não com o corpo, mas para dar forma a ele. O corpo é apenas o suporte material sobre o qual se aplica uma pura forma. O corpo natural é feio, vadio, informe; algo a ser modificado, remodelado como artefato. Assim como os primeiros homens teriam modificado o estatuto da natureza, o corpo constitui a mais íntima natureza a ser enformada pela ação humana.
Quando o corpo passa a ser pura forma, como no caso do fisiculturismo – que há muito não é um território exclusivamente masculino – é sinal de que algo mudou nas relações entre nossos corpos e os dispositivos. A própria lei, que antes vigia como pura forma, que regrava e circunscrevia um âmbito próprio aos prazeres, passa a inscrever-se sobre o próprio corpo, a enunciar na forma que um corpo deve apresentar, toda a norma aplicável aos corpos dos homens.

4. O dispositivo da sexualidade também parece, algumas vezes, ter sido assaltado por uma pura forma. A pornografia sempre fora um dispositivo que subtrai a própria experiência do ato sexual. Não por acaso Laurent de Sutter falou recentemente a respeito da pornografia como uma metafísica do sexo, algo que não pertence à ordem da sexualidade concreta, mas àquela da “rêverie abstraite”.
Também recentemente, Gilles Lipovetsky pôde compreender nisso um exemplar do fenômeno da hiper-sexualidade: a convivência paradoxal entre infinitas possibilidades de rapports sexuais irreais, impessoais e ilimitados via internet (as jovens com suas webcams, as moças, célebres ou anônimas, que já não dividem suas camas apenas com os namorados, mas também com as filmadoras, câmeras fotográficas e gadgets de todo o tipo), contrasta com a decepção recorrente em atribuir-se um comportamento sexual efetivo apenas modesto e bem-comportado.

5. Agamben já falou do momento em que a pornostar olha fixamente na direção da câmera e, indiferente a seu partner, já não simula o prazer, mas adquire um semblante inexpressivo; o rosto angelical de Chloë des Lysses permanece indiferente ao parceiro e, a um só tempo, igualmente indiferente a toda a partilha de olhares com os espectadores. A pornostar vaza no próprio rosto um olhar fixo e vazio, realiza uma troca impossível com a câmara escura da filmadora. Seu rosto inexpressivo “rompe toda relação entre o vivido e a esfera expressiva”; torna-se, segundo Agamben, um puro meio, e engendra um potencial profanatório que o dispositivo da pornografia visa a neutralizar. “O consumo solitário e desesperado da imagem pornográfica acaba substituindo a promessa de um novo uso”, e assim o dispositivo pornográfico subjetiva o consumidor ao mesmo tempo em que o captura na distração de uma intenção propriamente profanatória (Agamben: 2007, p. 78).
O vazio do olhar de Chloë des Lysses engendra uma desarticulação entre a experiência e a expressão, entre a sensação demasiadamente atual, percutida no corpo, e um “semblante impassível”. Não é isso que Agamben contesta. Essa desarticulação indica a possibilidade de um novo uso do sexo a partir da intenção profanatória que radica na pornografia, e que não se confunde com uma simples perversão, na medida em que seria capaz de desarticular a própria relação de exceptio que mantém com a lei. Não se trata do que faz Chloë des Lysses, das obscenidades ou das sevícias que um corpo delgado suporta, mas persiste um campo de indiferença entre sensação e expressão, experiência e uso imediato do sexo: isto é, o potencial profanatório da pornografia estaria em liberar o sexo como puro meio benjaminiano, como meio sem-fim. Porém, quando o dispositivo pornográfico prescreve um uso com incidência no campo da normalidade (o consumo solitário, distraindo-nos da intenção de estabelecer um novo uso, capturando nossa atenção), o que se faz é substituir aquilo que constitui a própria experiência: a faculdade de fazer um uso livre de um objeto separado em uma esfera própria, divina, intocável pelos homens.

6. Não precisaríamos ir além do corpo, do sexo ou da pornografia para descobrir o potencial profanatório dessa desarticulação entre experiência e máquina de expressão e rostificação. Ela se apresenta em situações até mesmo mais derrisórias, como no turismo. Nele, fica patente a substituição da experiência da visão, do corpo, do prazer de ver e tocar, por uma espécie de gozo de prótese proporcionado pelas filmadoras e máquinas fotográficas digitais. Esse consumo imediato também está presente na pornografia; é o caso do “first-person shoot view” do pornô amateur. O consumidor solitário distrai-se com a visão em primeira pessoa de um partner completamente alheio à própria experiência que suas objetivas registram.
O que entra em jogo nessa normalização da experiência é o conceito de museificação do mundo, como aquilo que designa uma radical impossibilidade de uso. Um turista veneziano experimenta uma verdadeira exposição da impossibilidade do uso capturando imagens de Veneza com suas objetivas. Não se pode tocar na história, ela se tornou um objeto fora de alcance e fora de uso.
O quotidiano dos homens constrói-se neste infinito corpo a corpo travado com os dispositivos de captura. Mesmo os elementos mais derrisórios como o turismo, a escrita, a caneta, a linguagem, os telefones celulares, os microblogs, e até mesmo a forma-homem podem ser descritos como dispositivos atualmente em obra em nossa cultura. Em sua operação, encontramos a distração dos sujeitos, sob a forma organizada de sua própria subjetivação-dessubjetivação, a captura de “desejos demasiadamente humanos de felicidade”, que são separados de sua potência e intenção propriamente profanatórias. Subtrações infinitesimais atingem-nos corpos, sexos e interditam-nos a própria experiência. Por isso, Agamben diz que a tarefa de uma política que vem é, precisamente, desfazer essa interdição, recuperar a experiência, “profanar o improfanável”; mas para isso, nada é mais urgente que desarmar os dispositivos.


[Texto originalmente publicado em 23 de maio de 2010, em minha coluna mensal,  "Suscitar Acontecimentos", na seção Ciências e Humanidades do site "OPS! - O Pensador Selvagem". Para ler no original, clique aqui!]