A cada corpo sua própria face II: notas sobre a identidade
25 julho, 2010
Alain Badiou: filósofo marroquino radicado em França
Intercessores
Hoje pela manhã topei com “Fantasía Fascista”, um texto de Daniel Link publicado ontem no jornal argentino Perfil. Para minha (muito grata) surpresa, Daniel conversa gentilmente com minhas “notas sobre a 'lei da Burqa'”. Vencido o aturdimento pela notícia – um tanto estranha, é certo – acerca de uma lei dessa espécie, o texto de Daniel explica objetivamente a aparente filiação entre as disposições belgas e francesas e conclui:
“Repito, porque no se me ocurre nada más justo para decir, las conclusiones de mi fuente: una ley que prohibe la ocultación de la cara (además de introducir severas restricciones a las cirugías plásticas y otras formas de cosmética facial), sustrae la posibilidad al mismo tiempo ontológica y política de apropiarse del propio ser (del propio rostro).”
Alain Badiou, uma gestão das identidades
Ainda ontem lia uma passagem de um livro de Alain Badiou; já havia me desapegado completamente desse tema da proibição da Burqa e das políticas de visibilidade e controle do Rosto nas sociedades de controle; estava contente com a explicação; não era necessário nada mais senão uma pitada de Foucault, uma de Deleuze e um tantinho mais de Agamben. Eis que Badiou, ao falar sobre a “Contemporaneidade de Paulo” em seu “São Paulo” - com tradução brasileira de Wanda Caldeira Brant, saída em 2009 pela Boitempo Editorial – escreve:
O cosmopolitismo contemporâneo é uma realidade salutar. Demandaremos somente que a visão de uma jovem que usa véu não coloque em transe seus defensores, o que tememos uma vez que eles não desejam, na realidade, mais do que um verdadeiro tecido de diferenças instáveis, a ditadura uniforme do que acreditam ser a “modernidade”. A questão é saber o que as categorias identitárias e comunitaristas têm a ver com os processos de verdade, por exemplo, com os processos políticos. Respondemos: essas categorias devem ser ausentadas do processo, sem o que nenhuma verdade tem a menor chance de estabelecer sua persistência e de acumular sua infinidade imanente. Aliás, sabemos que as políticas identitárias consequentes, como o nazismo, são guerreiras e criminosas. A ideia de que se possa, mesmo sob a forma da identidade francesa “republicana”, manipular inocentemente essas categorias é inconsistente. Oscilaremos forçosamente entre o universal abstrato do capital e perseguições locais (BADIOU, 2009, p. 19).
Esse texto, que soa tão atual, data do ano de 1997. Adiante, Badiou critica lógica identitária partilhada pelas minorias. Por maiores que sejam as reservas que alguns deleuzianos (inclusive as que eu mesmo nutro) acerca de algumas interpretações de Badiou, seu aporte crítico ainda poderia ser aproveitado, se não em seu fundo, em alguma medida por sua eficácia crítica:
a lógica identitária, ou minoritária, longe de se voltar para uma apropriação dessa tipologia, propõe apenas uma variante da superposição nominal capitalista. Ela polemiza contra todo conceito genérico de arte e o substitui por sua própria conta pelo de cultura, concebido como cultura do grupo, amálgama subjetivo ou representativo de sua existência, destinada a si e potencialmente não universalizável. Além disso, ela não hesita em enunciar que os termos constitutivos dessa cultura são plenamente compreensíveis somente se pertencerem ao subconjunto considerado. Daí os enunciados catastróficos do gênero: somente um homossexual pode “compreender” o que significa ser homossexual, um árabe o que significa ser árabe etc. Se, como pensamos, somente as verdades (o pensamento) permitem distinguir o homem do animal humano que o subentende, não é exagerado dizer que esses enunciados “minoritários” são realmente bárbaros. […]. no caso do amor, demanda-se simetricamente seja o direito genético de ver reconhecido como identidade minoritária esse ou aquele comportamento sexual específico, seja a volta pura e simples às concepções arcaicas, culturalmente estabelecidas, como a conjugabilidade estrita, o aprisionamento das mulheres etc. Os dois podem combinar perfeitamente na reivindicação dos homossexuais de unir o grande tradicionalismo do casamento e da família, ou de vestir, com a bênção do papa, os hábitos do monge. (BADIOU, 2009, p. 19-20)
Nesse ponto, Badiou exagera; ele não se volta contra singularidades, mas guerreia toda pretensão a identidades não-universalizáveis. Nisso, sua pesada – e, a meu ver, em certa medida injusta - crítica àquilo que julga ser uma política identitária dos movimentos homossexuais, quando, como já disse aqui, parece ser mais uma questão de liberar os devires, do que de reconhecimento ou simetria de direitos.
No entanto, Badiou parece apontar para um perigo essencialmente político que Deleuze cansou de repetir; nas palavras de Deleuze: “nunca bastará uma linha de fuga”, é preciso certa prudência ao manejá-la. Embora políticas minoritárias, até mesmo a lei ou o estado possam inaugurar um espaço liso, “Um espaço liso”, dizia ele, “não é nunca libertador por si mesmo”. O problema ainda se encontra na corrente redução das políticas minoritárias com políticas de identidades; quando uma política minoritária se converte em identitária, estão perdidos os devires; toda a potência liberatória esgota-se em uma forma incapaz de variações.
O “Naïf” invisível
Acompanhei com certo interesse nas últimas horas a caixa de comentários ao texto de Daniel Link no jornal argentino Perfil. Os comentários, em sua maioria críticos, são exemplares de que a própria sujeição também é da ordem do desejo. Há comentários um tanto mais elaborados, mas creio que dois dentre os menos elaborados sejam os mais exemplares.
O primeiro, de alguém identificado como trabajador, afirma categoricamente: “LOS CUIDADANOS DEBEN DE ESTAR IDENTICABLES”.Outro, afirma ser estúpido criticar e qualificar como “nazi” medidas que impedem a ocultação do rosto no espaço público; ainda, acusa Daniel de esconder-se atrás de opiniões alheias, embora de bons autores, como Deleuze, Agamben etc. Isso significaria, em última análise, ocultar sua própria opinião.
Tanto o inidentificável trabajador, como Daniel, podem ter precipitado, sem perceber, uma micropolítica de invisibilidades – talvez uma das possíveis formas de resistir a injunções e controles infinitesimais que exigem – nas circunstâncias mais cotidianas - a transparência, a face limpa, a identidade e o fixismo. A resistência pode ser até mesmo inconsciente; no momento em que nos tornamos um trabajador qualquer, ingênuo e impredicável, que fala de “los ciudadanos” como se falasse de outros, sem, no entanto, identificar-se com eles, tampouco consigo mesmo; ou, então, quando nos tornamos, como Daniel é acusado, ghosts writers de sujeitos singulares como Deleuze ou Agamben; resistimos inconscientemente a uma opinião demasiadamente própria, identitária, esgotada. Tiqqun e Foucault teriam muito a ensinar-nos a respeito da perda de sentido do conceito de autor. Os devires são fluxos anônimos e, como eles, permanecemos encarregados da tarefa intensa de suscitar invisibilidades, devires-imperceptíveis que, em Deleuze, não são outra coisa senão devir-todo-mundo; essa pode ter se tornado, então, uma das mais urgentes tarefas do pensamento, da arte e da política: repetir, diferentemente e à nossa maneira, o gesto simples de Deleuze enfiando as unhas no bolso do casaco.
Para debater: uma (muito controversa) entrevista de Alain Rouquié
22 julho, 2010
Redemocratização com “jeitinho”
Alain Rouquié: "Os militares têm muito poder(...) porque no Brasil eles fizeram as coisas de maneira bastante consensual." (Conhecemos bem essa filosofia militarista consensual do "Concordaremos em você parar de discordar, quer queria, quer não", @_mdcc).
* Entrevista por Leneide Duarte-Plon, para a Revista Trópico.
Embaixador francês Alain Rouquié, que lança livro sobre a América Latina, diz que regime militar foi “moderado” no Brasil e que transição "suave" e conciliatória para a democracia dificulta a revisão da Lei de Anistia
Embaixador da França no Brasil entre 2000 e 2003, o cientista político Alain Rouquié, especialista na América Latina contemporânea, lançou em março em Paris o livro “A l’Ombre des Dictatures – La Démocratie en Amérique Latine” (“À Sombra das Ditaduras”, Ed. Albin Michel). Na obra, ele examina como as atuais democracias sul-americanas lidam com a herança política deixado pelos regimes militares dos anos 60 e 70.
“Do Brasil, não se pode dizer que ele seja prisioneiro do regime militar, mas sim que os militares conservaram uma espécie de poder de veto extremamente importante”, analisa Rouquié na entrevista abaixo, concedida à Trópico, em Paris.
Para o embaixador, a transição da ditadura militar à democracia no Brasil se passou de maneira “mais suave” do que em outros países latino-americanos e foi acompanhada de um esforço de conciliação dos políticos entre si e deles com os militares, o que dificulta a discussão do passado da repressão.
“Houve uma reconciliação da classe política, a antiga e a nova, os que estavam incluídos e os que estavam excluídos, e tudo se passou à brasileira, com o famoso ‘jeitinho’. É, portanto, difícil fazer processos e acerto de contas”, diz o embaixador.
Ele também afirma que o regime militar brasileiro foi “relativamente moderado”, se se compara o número de suas vítimas no Brasil e as dos regimes chileno e argentino.
Autor de importantes obras sobre os países lationamericanos, como “L’Etat Militaire en Amérique Latine” (1982) e “Le Brésil au XXIe siècle”, (2006), Rouquié lançou seu novo livro na Maison de l’Amérique Latine, da qual é presidente, num debate do qual participaram os pesquisadores Jean-Michel Blanquer, Marcel Gauchet e Carlos Quenan. Na platéia, entre cientistas políticos, jornalistas e diplomatas, estava o sociólogo Alain Touraine.
“O presidente Lula garantiu a continuidade da política econômica, ampliou a política social de seu predecessor, aprofundou-a e se comportou como um democrata, não tentou mudar a Constituição para ter um terceiro mandato. Ele deu uma projeção internacional ao Brasil como nunca se viu”, afirma Rouquié sobre o governo brasileiro atual.
Apesar disso, ele diz não ser evidente que Lula possa eleger sua sucessora. “Carisma não é transferível, e um presidente é eleito pelo seu programa e não pelo balanço positivo de seu predecessor”, declara.
A seguir a íntegra da entrevista exclusiva que Alain Rouqié concedeu à Trópico.
A cada corpo a sua própria face: notas sobre a "lei da Burqa"
19 julho, 2010
« Si vous êtes pris dans le rêve de l’autre, vous êtes foutu ».
Gilles Deleuze
Todos esses argumentos – absolutamente válidos – já foram explicitados em diversas ocasiões desde o dia 13 de julho. Por serem exemplares, cito os textos de Raphael Neves, Hugo Albuquerque, André Egg, Sergio Leo e Raphael Garcia. Sem dúvida, há outros; cito os cinco porque os li, e porque os creio exemplares de alguns argumentos dessa série que tento alinhar sob um mesmo continuum.
*
Não, eu não sou contra; não, eu não sou a favor. Não, eu não sou indiferente. Em primeiro lugar, não se trata de um projeto que simplesmente proíbe a utilização de Burqa ou Niqab por mulheres, e não vai liberá-las definitivamente deles. Trata-se de « Projet de loi interdisant la dissimulation du visage dans l’espace public », i.e., projeto de lei que proíbe a ocultação da face no espaço público francês. Por isso, o artigo 1º do texto legal afirma: « Nul ne peut, dans l’espace public, porter une tenue destinée à dissimuler son visage ». O dispositivo proíbe a todos (“Nul ne peut”) de se vestirem de maneira a ocultar a face no espaço público (com exceções durante o Carnaval, por exemplo, o que, por si, já faz a regra fazer eco à exceção).
O projeto de lei em questão tem uma intenção manifesta, expressa em sua exposição de motivos:
La pratique de la dissimulation du visage qui peut au surplus être dans certaines circonstances un danger pour la sécurité publique, n’a donc pas sa place sur le territoire de la République. L’inaction des pouvoirs publics témoignerait d’un renoncement inacceptable à défendre les principes qui fondent notre pacte républicain. (Trad. livre: “A prática de ocultação da face que, em excesso e em certas circunstâncias, pode ser um perigo para a segurança pública, não tem lugar no território da República. A inação dos poderes públicos testemunharia uma renúncia inaceitável em defender os princípios que fundam nosso pacto republicano”.)
Outro dispositivo que creio ser digno de nota é o do artigo 4º do projeto, que criminaliza a ocultação forçada da face, e inclui o artigo 225-4-10 no Código Penal Francês com a seguinte redação:
« Après la section 1 bis du chapitre V du titre II du livre II du code pénal, il est inséré une section 1 ter ainsi rédigée :
« Section 1 ter
« De la dissimulation forcée du visage
Art. 225-4-10. – Le fait pour toute personne d’imposer à une ou plusieurs autres personnes de dissimuler leur visage par menace, violence, contrainte, abus d’autorité ou abus de pouvoir, en raison de leur sexe, est puni d’un an d’emprisonnement et de 30 000 € d’amende.
« Lorsque le fait est commis au préjudice d’un mineur, les peines sont portées à deux ans d’emprisonnement et à 60 000 € d’amende. »
O tipo incrimina o fato de « impor » a uma ou mais pessoas a ocultação da face mediante ameaça, violência, constrição, abuso de autoridade ou poder, em razão do sexo, e comina pena de privação de liberdade com duração de um ano e multa de trinta mil euros. As penas de encarceramento e multa são dobradas no caso de a conduta descrita no tipo ser cometida contra menor de idade. Fosse o caso de proteger as mulheres, bastaria esse dispositivo; mas a lei vai muito além de suas boas intenções.
O primeiro país europeu a editar uma medida semelhante foi a Bélgica. Lá, a lei foi concebida como uma simples positivação legislativa dos diversos regulamentos de polícia que já vigiam em quase todas as comunas belgas e que vedavam, “por razões de ordem pública”, circular em vias públicas com o rosto encoberto.[i]
Na lei belga, como no projeto francês, não há menção explícita ao véu islâmico; tampouco ao rosto feminino, a não ser indiretamente, no tipo penal inserido no artigo 4º que cria o artigo 225-4-10 do Código Penal Francês, quando alude a “em razão do sexo". A questão toca, efetivamente, à peculiar condição das mulheres muçulmanas em país estrangeiro, mas os efeitos práticos, políticos e jurídicos de seu artigo 1º, especialmente, atingem a totalidade dos cidadãos. As leis não têm, via de regra, destinatários específicos, não são atos normativos concretos. Tanto a lei belga como o projeto francês interditam puramente a ocultação da face com o uso de vestimentas no espaço público; nada mais.
Todo argumento que discute a atual pertinência do texto legal tem por horizonte interpretativo esse núcleo histórico e circunstancial de produção da norma. No entanto – como se aprende nos primeiros anos de direito –, as normas são editadas a fim de vigorarem pro futuro e indefinidamente, de modo geral e abstrato, independentemente da intenção legislativa original.
Não se trata de desqualificar a discussão sobre a condição feminina, especialmente das mulheres que comungam da religião muçulmana, nem de invalidar a priori os debates sobre a tensão entre universalidade dos direitos humanos e multiculturalismo. Essas são importantes frentes de análise, mas não parecem engendrar questões capazes de esgotar o problema político e jurídico que uma lei, como a da interdição da ocultação da face, coloca - especialmente nas sociedades de controle.
O projeto francês, ou a lei belga, não devem ser encarados apenas como atentados a liberdades individuais, ou como iniciativas intensamente liberatórias; é igualmente impróprio chamar “Lei da Burqa” a uma lei que continua e intensifica uma estratégia governamental que controla o rosto humano com base na expropriação de sua experiência política.
Essa lei pode e deve ser vista como dispositivo governamental; como tal, discutir sua benevolência ou maldade intrínsecas nos desarma para compreender o que está realmente em jogo: a interdição do acesso ao rosto. Tanto o comando “cubra” quanto o comando “descubra”, oriundos de fontes heterogêneas - é certo -, partem do mesmo princípio: usar a lei (divina ou humana) para realizar um controle político do rosto.
Tomemos Foucault e sua “Microfísica”: os poderes circulam, estão disseminados em todos os níveis da sociedade, não são apenas verticais, mas horizontais, transversais etc. Tomemos Agamben – especialmente como leitor de Foucault e Tiqqun: o corpo a corpo com os dispositivos governamentais de todo tipo, disseminados no corpus social, produz um complexo subjetivações-dessubjetivações. E “poder” é isso: um dispositivo (que pode apresentar-se como uma vestimenta ou uma lei) que subjetiva-dessubjetiva (produz um sujeito). A lei que proíbe a ocultação da face subtrai a possibilidade ao mesmo tempo ontológica e política de apropriar-se do próprio ser na aparência exposta; interdita, enfim, apropriar-se do próprio rosto, “o lugar da comunidade, a única cidade possível”, como escreveu Giorgio Agamben.
O rosto, porém, não coincide com a face. A face é mera exposição; o rosto, a exposição e a possibilidade de apropriar-se de sua impropriedade – seu próprio ser exposto que, todavia, não o pertence como essência ou atributo. Apenas na medida em que estamos no aberto e podemos apropriar-nos de nosso próprio ser exposto é que a exposição pode ser o lugar da política. Quando um dispositivo, seja um tecido opaco ou uma lei transparente, comandam “cubra-se” ou “descubra-se”, vive-se como impotência prática e política a destruição da experiência dessa apropriação; o rosto torna-se sagrado, intocável.
Por isso, em 1996, Agamben escrevia em Mezzi senza fine que:
A verdade, o rosto, a exposição, constituem, hoje, objeto de uma guerra civil planetária, cujo campo de batalha é toda a vida social, cujas tropas são os media, cujas vítimas são todos os povos da terra. Políticos, mediocratas e publicitários compreenderam o caráter insubstancial do rosto e da comunidade que ele abre, e transformam-no em um segredo miserável cujo controle se trata de assegurar a todo custo. O poder dos Estados não é mais fundado, hoje, sobre o monopólio do uso legítimo da violência (que eles compartilham sempre mais de bom grado com outras organizações não-soberanas – ONU, organizações terroristas), mas, sobretudo, sobre o controle da aparência (da doxa).[ii]
O projeto francês e a lei belga originam-se de dispositivos de segurança que se apóiam em estratégias de controle político do rosto, e são enformados por um princípio de identificação radical: a exposição do rosto no espaço público (que sempre foi constitutiva da política) deixa de ser uma experiência comunitária, de simultaneidade de semblantes e “foras” apropriados unicamente sob o signo do inapropriável pelo próprio homem, para se tornar a aberta claridade em que jamais um homem será capaz de esconder-se. A comunidade é rarefeita, os semblantes, partidos, desfigurados e reduzidos a face e a princípio de identificação.
A cada corpo atribui-se, tão-somente, a sua própria face. O rosto, como a política, permanecem estilhaçados, interditados, expropriados, incompossíveis com o espaço público. O rosto torna-se um objeto privilegiado de controle por meio dos mais heterogêneos dispositivos governamentais, desde os familiares, religiosos, morais, como a Burqa, ou o Niqab, às leis que interditam a ocultação da face. Não há – é sempre bom lembrar – dispositivos governamentais, ou subjetivações, liberadores. Quando, por obra dos dispositivos, os devires permanecem separados daquilo que eles podem, é nosso, e alheio, o rosto aprisionado no sonho do outro.
[i] Nesse sentido, confira-se o artigo saído sobre a lei belga em 29.04 no jornal italiano La Reppublica: “Belgio, divieto assoluto di Burqa. Primo paese a bandilo in Europa”., especialmente a seguinte passagem: “Si tratta di una decisione il cui valore è quasi puramente simbolico. L'uso del velo integrale è poco diffuso in Belgio, dove la comunità musulmana è principalmente di origine turca o magrebina. Inoltre in quasi tutti i comuni sono già in vigore regolamenti di polizia che vietano, per motivi di ordine pubblico, di circolare per strada con il volto coperto. Nella sola regione di Bruxelles l'anno scorso la polizia ha contestato 29 contravvenzioni al regolamento.”
Argentina e união homossexual: uma partilha dos devires
15 julho, 2010
Sobre o reconhecimento jurídico das uniões civis homoafetivas na Argentina, o jurista italiano Luigi Ferrajoli disse tratar-se da “homologación jurídica de las diferencias”. Talvez fosse preferível encará-lo como uma partilha dos devires.
Se com Gilles Deleuze aprendemos a desprezar os universais como explicações – ao contrário, é o universal que deve ser explicado –, Michel Foucault teria ensinado, em algumas das mais belas páginas da filosofia ocidental, o sentido intenso de uma forma de existência homossexual. Isso nada tem a ver com a sexualidade em sentido estrito, mas sim com as possibilidades de vida que uma existência homossexual seria capaz de suscitar, uma nova política de virtualidades que se abririam à discussão e constituição de novas formas de vida e partilha da existência.
Há uma leitura antiinstitucionalista e antinormativista bastante equivocada de Foucault nesse ponto: a ideia de que só se podem suscitar novos modos de existência do lado de fora das instituições ditas tradicionais. A própria biografia de Foucault revela o engano dessa concepção. Foucault era pesquisador e professor no Collège de France, uma das instituições mais tradicionais de França, e diversas vezes foi criticado precisamente por isso. Sua resposta era das mais interessantes; ele afirmava fazer de seu pensamento e de sua escritura uma guerra de guerrilhas – e que guerrilheiro fugiria a uma fronteira interior, intra-sistêmica? Por que se negar a conduzir sua guerrilha por dentro das trincheiras do antagonista? Por que não roer as instituições por dentro?
Não se trata de simplesmente destruir ou abolir as instituições – ao menos, não era isso que Foucault ou Deleuze queriam dizer; fazê-lo seria simplesmente transformar o potencial liberatório dos devires em linhas fascistas de abolição. Nesse sentido, o primeiro texto de Daniel Link sobre o reconhecimento da união civil homossexual na Argentina – ao qual cheguei pela amiga Flávia Cera – é exemplar em prová-lo. Trata-se, isso sim, de desembaraçar-se das instituições para pensar, mas de nunca se negar a conduzir nossas guerras de guerrilhas, bem como nossas ações políticas, ao interior das fronteiras mais heterogêneas – sem que isso signifique a pura pretensão de aboli-las por completo. Só assim se pode fazer uma micropolítica de intensidades, reunir mesmo as instituições mais tradicionais àquilo que elas podem, lançá-las a um devir.
Reconhecer a união homoafetiva não é um golpe no casamento, especialmente o religioso, simplesmente porque essa não é a guerrilha dos homossexuais. Tampouco se trata de uma pura e simples luta pelo reconhecimento social. Trata-se, sim, de algo mais singelo: institucionalizar mais uma possibilidade de existência... Nisso, não se destrói a instituição do matrimônio (heterossexual, civil ou cristão), e tampouco se o reafirma como modelo.
Os efeitos políticos desse "reconhecimento" institucional atingem não apenas os homossexuais, mas, sem dúvida, também os heterossexuais - e positivamente. Não invalidam o matrimônio tradicional, mas virtualizam novas possibilidades de vida – institucionais e não-institucionais – a homo e heterossexuais. Essas novas formas de existência, institucionalizadas, atingem o seio do comum: a partilha homogênea do amor e seus signos heterogêneos; atingem, por outro lado, também a partilha homo-heterossexual de um potencial político para inventar outros modos de viver-junto - a partilha homogênea de devires heterogêneos, no interior e para além das instituições.
Assinar:
Postagens (Atom)