Félix Guattari: Seminários (1981-1988)

30 dezembro, 2010


1980
09/12/80 : Félix Guattari, Présentation du séminaire
1981
13/01/81 : Félix Guattari, Les quatre inconscients
10/02/81 : Félix Guattari, La pulsion. Le trou noir
10/03/81 : Félix Guattari, Des problèmes
28/04/81 : Félix Guattari, L'acte et la singularité I et II
26/05/81 : Félix Guattari, Transistantialités
08/12/81 : Félix Guattari, Agencements. Transistances. Persistances

1982
26/01/82 : Félix Guattari, Les formations du noyau d'agencement
16/02/82 : Félix Guattari, Flux. Synapses. Composantes de passage 
23/03/82 : Félix Guattari, Les transferts
04/05/82 : Félix Guattari, De l'efficience sémiotique
01/06/82 : Félix Guattari, Ligne hylemorphique 
01/06/82 : Mony Elkaïm, Les niveaux logiques 
23/11/82 : Félix Guattari, La quantification analytique 
07/12/82 : Gisèle Donnard & Marie-Odile Suppligeau, Les rêves 

1983
01/03/83 : Félix Guattari, Réhabilitation du symptôme
22/03/83 : Félix Guattari, Le temps du rêve
03/05/83 : Jean-Claude Polack, Le jeu d'échec (Chimères n° 2)
16/09/83 : Madie Lafargue, Le périssable (Chimères n° 2)
08/11/83 : Danielle Sivadon, Le voyage de Pierre (Chimères n° 2)
08/11/83 : Félix Guattari, A propos d'un rêve
13/12/83 : Françoise Garbarini, Notes de la claviste
13/12/83 : Eric Alliez, Trois figures du temps

1984
06/02/84 : Michel Veuille, La machine: biologie Christiane Frougny, La machine: mathématiques
03/04/84 : Félix Guattari, La crise de production de subjectivité
25/04/84 : Félix Guattari, Substituer l'énonciation à l'expression
22/05/84 : Jean-Claude Polack, L'éclipse et l'écho (Chimères n° 1)
21/06/84 : Félix Guattari, Les schizoanalyses (Chimères n° 1)
30/10/84 : Félix Guattari, Un oubli et un lapsus dans un rêve

1985
22/01/85 : Félix Guattari, Singularité et compléxité
12/03/85 : Félix Guattari, Machine abstraite et champ non discursif
01/10/85 : Mony Elkaïm, Whitehead et Russel ; Félix Guattari
29/10/85 : Isabelle Stengers, Whitehead


1986
21/01/86 : Barbara Glowczewski, Récit d’un mythe Warlpiri
18/02/86 : Félix Guattari, Les schizoanalyses (suite), cartographies spéculatives
25/03/86 : Bertrand Gerard, Les Kurumba
08/04/86 : Guy Trastour, Histoire et avatars d'une équivoque
13/05/86 : Michel Henochsberg, De la monnaie
08/06/86 : Gilles Châtelet, L'enchantement du virtuel (Chimères n° 2)
07/10/86 : Félix Guattari, Le cycle des agencements


1987
27/01/87 : Dominique Maugendre + discussions, Création extemporanée ou instantanée
07/04/87 : Enzo Cormann, Schizo-théâtre (Chimères n° 3)
05/05/87 : Félix Guattari, Référence et consistance
15/09/87 : Félix Guattari, Discution sur "ritournelles et affects"

1988
12/01/88 : Esther Joly, Objets-Temps, + Discussion
01/03/88 : Philippe Adrien, L'improvisation (Chimères n° 7)
22/03/88 : François Fourquet, La Fonction de pensée
22/03/88 : Impuissance de la pensée, Discussion sur l'eposé de F. Fourquet
15/11/88 : Yves Buin, L'improvisation chez Monk (Chimères n° 10)
Jean Claude Polack, La sauterelle chez Dali
Jean Claude Polack, La sauterelle chez Dali (suite)


Luis Alberto Warat: amanheceremos órfãos

17 dezembro, 2010



Amanheceremos órfãos. Ontem, 16 de dezembro de 2010, desapareceu o filósofo do direito Luis Alberto Warat - um dos maiores críticos do Direito que já passaram pelo Brasil. Warat, argentino radicado no Brasil durante a ditadura militar argentina, ex-professor da UFSC e da UNb, foi um erudito intérprete de clássicos da Teoria Geral do Direito; profundo conhecedor de lógicas formal e jurídica, e linguagem jurídica, não se limitou a elas. Conhecido por sua irreverência, após ter explicado Kelsen em textos “acadêmicos”, “sérios”, decidiu que o exporia também na versão em quadrinhos, e assim criou os célebres “Quadrinhos Puros do Direito”. Warat se fazia acompanhar sempre de uma espécie de anima que alguns chamavam loucura e nós, que partilhamos seu delírio, ousávamos responder: “– Loucura é não perceber que é sonho!”.

Warat era uma figura controversa; alguns o compreendiam erradamente, levavam-no a mal: “é um deslocado”, diziam. Mas, não: Warat era desterritorializante – e seria uma delicadeza cruel demais pedir a quem tem os pés bem presos ao chão que interpretasse o movimento delirante do surrealismo jurídico de Warat como qualquer coisa diferente de um deslocamento ainda demasiadamente corpóreo. Para nós, as velocidades eram espirituais: da literatura ao cinema, do cinema ao delírio, de Breton a Barthes, de Barthes a Deleuze e Guattari, da Psicanálise freudo-lacaniana, até Borges com Bachelard e Woody Allen. Warat era Bakhtin com Dostoiévski, Artaud com Benjamin, um múltiplo vínculo orgânico de tudo com tudo.

Warat não era um escritor – era uma máquina expressiva, transgressora, desejante, delirante. Sabia que “o novo nunca pode instalar-se como consequência de tradições monolíticas”, e por isso a literatura de Cortázar, o surrealismo de Breton e Dalí, juntar Ciência Jurídica com Dona Flor e seus Dois Maridos, o percurso amoroso de um Warat apaixonado por Paula em “O amor tomado pelo amor”. Em um país em que a Crítica Jurídica ainda não despertou de seu sono axiomático, Warat tomava de empréstimo o mundo para fazê-lo proliferar com o direito. No seio de uma crítica jurídica que respirava um marxismo militante, mas que fraquejava em proposições e novidade pujantes, Warat aproximou, novamente, vida, invenção, corpo e Ciência Jurídica.

Nunca me esqueço disso: o primeiro texto que li na faculdade foi “Incidentes de Ternura”, em que Warat descrevia nossos tempos como pós-totalitários e apresentava sua crítica à falência do ensino jurídico. E minha vida mudou. O direito mudou, para mim. Nunca estudei Direito senão como uma certa inspiração waratiana: cínica, bem-humorada e ativa – mesmo quando estudava Direito Comercial a contragosto.

Devo confessar – já não é sem tempo: Warat mudou minha vida para sempre; ingressei no curso de Direito porque queria ser diplomata. Ao encontrar Warat, minha vida mudou: virei professor de Filosofia do Direito, e nunca fiz ciência frígida. É bem verdade que só conversamos quatro ou cinco vezes pessoalmente, mas quem precisa dos sujeitos quando se têm as máquinas expressivas à disposição? É isso o que cada texto de Warat oferece – máquinas e máquinas e máquinas...

Quando a vida mesma encarrega-se de fazer desaparecer um cronópio inspirador como Warat, lembro-me de André Malraux, que costumava dizer que a obra de arte é o que é capaz de resistir à morte.  Hoje, a nós, órfãos e legatários do imaginário waratiano, cabe oferecer a Warat o mais desejável dentre os tributos: chorar um pouco, viver o afeto e, depois, recomeçar o novo. Recomeçar o novo é a prova de que os indivíduos passam “como el água”, dizia Borges, mas a vida não morre jamais.

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Tradução: "Sem classe", de Giorgio Agamben

07 dezembro, 2010

L'Enfant Sauvage, de Truffaut

Sem Classe
Giorgio Agamben

* Tradução de Murilo Duarte Costa Corrêa••

A máquina antropológica do humanismo é um dispositivo irônico que verifica, no Homo, a ausência de uma natureza própria, mantendo-o suspenso entre uma natureza celeste e uma terrena, entre o animal e o humano – e, assim, seu ser sempre menos e mais que si mesmo. Isso é evidente naquele “Manifesto do humanismo” que é a oração de Pico, que se continua impropriamente a chamar de hominis dignitate, ainda que não contenha – nem pudera, em todo caso, referir ao homem – o termo dignitas, que significa simplesmente “classe”. O paradigma que se apresenta não é nada edificante. A tese central da oração é, na verdade, que o homem, encontrando-se plasmado quando os modelos da criação estavam todos exauridos (iam plena omnia [scil. archetipa]; omnia summis, mediis infimisque ordinibus fuerant distributa), não pode ter nem arquétipo, nem lugar próprio (certam sedem), nem classe específica (nec munus ullum peculiare: Pico della Mirandola, 102). Ao revés, porque a sua criação se dera sem um modelo definido (indiscretae opus imaginis), ele não possui sequer uma face (nec propriam faciem: ibid.) e deve, a seu arbítrio, modelá-la em forma bestial ou divina (tui ipsius quasi arbitrarius honorariusque plastes et fictor, in quam malueris tute formam effingas. Poteris in inferiora quae sunt bruta degenerare; poteris in superiora quae sunt divina ex tui animi sententia regenerari: Pico della Mirandola, 102-104). Nessa definição, por meio de uma ausência de rosto, funciona a mesma máquina irônica que, três séculos mais tarde, impelirá Lineu a classificar o homem entre os Anthopomorpha, entre os animais “similares ao homem”. Enquanto não há nem essência nem vocação específica, Homo é constitutivamente não-humano, e pode receber toda natureza e toda face (Nascenti homini omnifaria semina et omnigenae vitae germina indidit Pater: ibid., 104) – e Pico pode sublinhar ironicamente a inconstância e a inclassificabilidade definindo-o o “nosso camaleão” (Quis hunc nostrum chamaleonta non admiretur?: ibid.). A descoberta humanística do homem é a descoberta de seu faltar a si mesmo, de sua irremediável ausência de dignitas.

A essa labilidade e a essa inumanidade do humano corresponde, em Lineu, a inscrição na espécie Homo sapiens da enigmática variante Homo ferus, que parece desmentir ponto por ponto as características do mais nobre dos primatas: ele é tetrapus (caminha sobre quatro patas), mutus (privado de linguagem), hirsutus (coberto de pêlo). O elenco que segue na edição de 1758 especifica sua identidade anagráfica: trata-se dos enfants sauvages ou meninos-lobo, dos quais o Systema registra cinco aparições em menos de quinze anos: o jovem de Hannover (1724), os dois pueri pyrenaici (1719), a puella transisalana (1717), a puella campanica (1731). No ponto em que as ciências do homem começam a delinear os contornos de sua facies, os enfants sauvages, que aparecem a cada vez com maior freqüência nas fronteiras das vilas da Europa, são os mensageiros na inumanidade do homem, as testemunhas de sua frágil identidade e de sua ausência de um rosto próprio. A paixão com a qual os homens do Ancien régime, defronte a esses seres mudos e incertos, tentam reconhecer-se neles e “humanizá-los” mostra a que ponto estavam conscientes da precariedade do humano. Como escreve lord Monboddo no prefácio da versão inglesa da Histoire d’une jeune fille sauvage, trouvée dans les bois à l’age de dix ans, eles sabiam perfeitamente que “a razão e a sensibilidade animal, por mais distintas que possamos imaginá-las, prolongam-se uma na outra por meio de transições a tal ponto imperceptíveis, que é mais difícil traçar a linha que as separa que aquela que divide o animal do vegetal” (Hecquet, 6). Os traços do rosto humano são – não por muito tempo – de tal forma indecisos e aleatórios, que esses estão sempre a ponto de desfazerem-se e de cancelarem-se como aqueles de um ser momentâneo: “Quem pode dizer” – escreve Diderot no Rêve de d’Alembert – “se esse bípede disforme, de apenas quatro pés de altura, que, na vizinhança de Polo, agora se chama homem, e que não tardaria a perder esse nome se se deformasse ainda um pouco, não seja mais do que a imagem de uma espécie que passa?” (Diderot, 130).

• Tradução do original, em italiano, AGAMBEN, Giorgio. L’Aperto: l’uomo e l’animale. Torino: Bollati Boringhieri, 2002, p. 35-37.Tradução publicada originalmente no site O Estrangeiro.
•• Professor de Filosofia do Direito e Teoria do Direito, vinculado ao Departamento de Propedêutica do Direito da Faculdade de Direito do Centro Universitário Curitiba (DPDFDC/UNICURITIBA); Professor do Curso de Direito do Centro de Ciências Sociais e Aplicadas da Fundação de Estudos Sociais do Paraná (CCSA/FESP-PR). Doutorando em Filosofia e Teoria Geral do Direito (USP). Mestre em Filosofia e Teoria do Direito (UFSC). Graduado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR).





Chaïm Perelman: argumentação e exceção

05 dezembro, 2010



Há muito tempo não me surpreeendia, mas aconteceu de novo. Aqueles que, como eu, pesquisam o estado de exceção ou a sociedade de controle, lêem Agamben, Foucault ou Deleuze, geralmente são acusados de paranóicos, de alucinarem a existência de fascistas até debaixo da própria cama. Claro que esse argumento é ad hominem e sobretudo ingênuo. De toda forma, partilho um dos últimos delírios.
Uma das hipóteses-mestras de minha dissertação [Do mesmo à ruptura: ensaios... (2009)] buscava avaliar se, e até que ponto, as teorias contemporâneas do direito (do neoconstitucionalismo à teoria do direito como interpretação, ou argumentação racional) serviriam como passagens móveis entre um esquema jurídico-disciplinar e a implantação do estado de exceção como paradigma de governo; nesse paradigma, o ponto de gravidade não é a ausência de normas, mas, grosso modo, uma indeterminação entre normas e fatos que gera uma zona de anomia, mantendo a totalidade do ordenamento jurídico vigente, mas suspenso, sem aplicação.
Hoje percebo que, durante a dissertação, simplesmente ignorei um texto que, embora ordinário, é qualitativamente exemplar (em sentido escolástico) dessa função que quisera demonstrar: “O raciocínio judiciário depois de 1945”, capítulo III de Lógica Jurídica (1979), livro do filósofo do direito polonês, Chaïm Perelman, radicado na Bélgica até seu falecimento (1984), e ex-professor da Universidade de Bruxelas.
O capítulo sobre as teorias relativas ao raciocínio judiciário pós-1945 segue-se à explicação das linhas gerais da Escola da Exegese, a partir do Código de Napoleão, e das concepções funcional, teleológica e sociológica do Direito, que, em linhas gerais, já preconizam uma certa precedência dos fatos sobre o Direito.
Perelman reconhece que o Direito constitui um empreendimento público, devendo-se evitar a subjetividade e a arbitrariedade, de forma tal que não se poderá identificar o “justo” com aquilo que se parece justo a um indivíduo – pouco importa seja ele juiz ou não (Perelman, 2004, p. 98).
O aparecimento da justificação da exceção e da anomia no interior do ordenamento jurídico dá-se no momento em que Perelman busca exemplificar a possibilidade de decidir com base em princípios gerais do direito não-formulados explicitamente em ordens jurídicas nacionais vigentes. A sua aplicação mesmo na ausência de um texto, não implicaria uma criação jurisprudencial, nem mesmo uma concretização de uma regra de equidade ou consuetudinária. Os princípios gerais de direito, ao contrário, tendo valor de direito positivo, não seriam constituídos pelo julgado, mas reconhecidos e declarados pela decisão de um juiz que se limita a constatar-lhes a existência.
A fim de prová-lo, Perelman oferece diversos exemplos, mas o mais interessante deriva de um exemplo de reconhecida exceção. Um acórdão da Corte de Cassação Belga, prolatado em 11 de fevereiro de 1919, é tomado como um exemplo da possibilidade de os princípios gerais do direito autorizarem decisões contra legem.
No período entre 1914-19, o território belga encontrava-se ocupado pelas tropas alemãs, o que impedia as reuniões das Câmaras e Senado, e exigia que o Rei exercesse sozinho o poder legislativo sob a forma de decretos-lei. No entanto, o artigo 26 da Constituição Belga preconizava que “O poder legislativo é exercido coletivamente pelo Rei, pela Câmara dos Representantes e pelo Senado”, sem previsão de exceções ou abrandamentos. Diferentemente de algumas Constituições européias que, a essa época, previam formalmente a possibilidade de decretação do estado de exceção, o . artigo 130 da Constituição Belga previa que “a Constituição não pode ser suspensa no todo ou em parte”.
Com base no artigo 25, que estatuía a impossibilidade de o Poder Legislativo ser exercido senão de acordo com o artigo 26 da Constituição, e no forte argumento normativo do artigo 130, que vedava a suspensão parcial ou total da Constituição, a validade dos decretos-lei foi atacada. No entanto, a Corte de Cassação Belga compreendeu que o Rei tornou-se legislador no período 1914-19 precisamente em virtude da aplicação de princípios constitucionais e de princípios gerais do direito, chegando a uma decisão manifestamente contrária ao texto constitucional.
Perelman (2004, p. 106) reproduz integralmente o arrazoado da Corte de Cassação, do qual destaco dois parágrafos que suponho nodais:

Uma lei – constituição ou lei ordinária – nunca estatui senão para períodos normais, para aqueles que ela pode prever. Obra do homem, ela está sujeita, como todas as coisas humanas, à força dos acontecimentos, à força maior, à necessidade.
Ora, há fatos que a sabedoria humana não pode prever, situações que não pode levar em consideração e nas quais, tornando-se inaplicável a norma, é necessário, de um modo ou de outro, afastando-se o menos possível das prescrições legais, fazer frente às brutais necessidades do momento e opor meios provisórios à força invencível dos acontecimentos.

A decisão concretizava, portanto, um valor supremo que permitia entrever o descolamento entre legalidade e soberania política que a argumentação, ou a interpretação, são capazes.  Os “axiomas de Direito Público”, enunciados pelo procurador-geral Terliden, demarcavam precisamente o envolvimento entre anomia, estado de exceção e soberania:

I – A soberania da Bélgica jamais foi suspensa.
II – Uma nação não pode dispensar um governo.
III – Não há governo sem lei, isto é, sem poder legislativo.

Não obstante, Perelman reconhece que desses axiomas deriavriam, como Terlinden quisera provar, “a necessidade inelutável de que o Rei legifere sozinho, quando os dois outros ramos o poder legislativo estão impedidos de desempenhar sua função” (Perelman, 2004, p. 107). Isso, em ultima análise, transforma a lei em um dispositivo que une governamentalidade (“Não há governo sem lei”) e Soberania (“Uma nação não pode dispensar um governo”, “A soberania da Bélgica jamais foi suspensa”), o que, no seio do estado de exceção, coincide sem resíduos.
Apesar de o exemplo belga servir claramente para indicar o momento em que a interpretação, ou a argumentação, assumem a função de fazer a passagem móvel entre a legalidade estrita e a exceção, este parece, em princípio, descolado da realidade, historicamente distante de nós e isolado no tempo (1914-1919). No entanto, é precisamente o argumento transcendente da necessidade, do inadiável, do inelutável ou do extraordinário – como se o acontecimento tivesse a força de um Deus - que não parou de se repetir. As primeiras páginas dos jornais, hoje, no Rio, já não se preocupam em justificar o injustificável, ou a identificação de uma política de pacificação que, em sua ponta extrema, coincide com uma política de extermínio. O argumento da necessidade foi implantado no desejo; tornou-se, assim, paradoxal e inteiramente desnecessário quando demos nosso assentimento.

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